Uma criada soprou ao general que
a PIDE o queria prender. Humberto Delgado pediu de imediato ajuda ao embaixador
do Brasil em Lisboa para o acolher e assim poder continuar a sua luta contra o
regime de Salazar. O neto do general, Frederico Delgado Rosa, autor de
“Humberto Delgado. Biografia do General Sem Medo”, deixa ao Expresso um
depoimento sobre esses dias do seu avô
Quando se fala no “caso Delgado”
pensa-se logo no assassinato de Humberto Delgado pela PIDE em 1965, mas no ano
de 1959 houve outro “caso Delgado” que foi justamente o asilo de Humberto
Delgado na embaixada do Brasil em Lisboa.
Tudo começou porque chegou-lhe a
informação de que a PIDE o ia apanhar através de uma criada que ouvira isso da
boca de uma figura da polícia política. Ao saber disso, ele reuniu-se com os
seus correlegionários e com a família também. Assim, na iminência de se ver
preso pela PIDE - o que estava completamente fora de aceitação pela sua parte,
porque ele queria continuar o combate contra o regime de Salazar e a respetiva
revolta armada -, pediu asilo ao embaixador Álvaro Lins, uma grande figura da
história do Brasil e também da literatura brasileira, e foi acolhido de
imediato na sua residência.
Curiosamente, a embaixada ficava
justamente ao lado da sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. É
extremamente irónico que o perseguido pela PIDE ficasse tão perto da própria
sede da PIDE. E, aliás, a embaixatriz Heloísa Lins cedo lhe relatou que ouvia
durante a noite os gritos dos torturados pela PIDE e que se queixara disso às
autoridades mas nunca obtivera resposta. A única que lhe tinham dado é que ela
estava equivocada e que esses barulhos eram dos elétricos a chiarem nas calhas
e, portanto, não eram gritos humanos...
Durante esses meses em que esteve
refugiado na embaixada do Brasil, em Lisboa, Humberto Delgado era diariamente
visitado pela sua mulher e pelas suas filhas, que tinham obrigatoriamente de
passar ao lado da PIDE. E esse jogo de gato e do rato, de pressão psicológica
de ter de estar a passar diariamente ao lado da PIDE e dos seus esbirros, teve,
claro, uma componente pessoal bastante forte. Como se eles [da PIDE] estivessem
sempre a dizer “isto está por dias para nós o apanharmos”.
Foi um braço de ferro muito
grande entre janeiro e abril de 1959, porque obviamente que o regime de Salazar
fazia de tudo para ele sair da embaixada sem passar a imagem de que era um
perseguido político. Claro que Humberto Delgado não queria sair da embaixada se
não fosse com as garantias de que a seguir ia para o Brasil. O regime tentou de
tudo para demonstrar que não o perseguia e que ele não corria qualquer perigo.
No decurso desses três meses
aconteceu a famosa mas malograda revolta da Sé - as pessoas esquecem-se que foi
uma tentativa de ‘golpe delgadista’ contra o regime encabeçada por oficiais e
civis em contacto com Humberto Delgado. Mas infelizmente essa revolta não
prosseguiu porque houve fugas de informação e um controlo tão apertado sobre os
oficiais envolvidos que impossibilitou qualquer hipótese de poder avançar.
Com os holofotes do mundo sobre
este caso de Humberto Delgado, levou muito tempo até se encontrar uma solução
entre os dois países. Acabou por se solucionar através da intervenção do
jornalista brasileiro João Dantas, diretor do Diário de Notícias do Rio de
Janeiro, que veio a Portugal e serviu de intermediário entre as duas nações.
Para a situação ser resolvida sem
ser o embaixador a levar Humberto Delgado debaixo do seu braço até o aeroporto,
digamos que foi o João Dantes que assumiu essa responsabilidade pela calada da
noite. E assim Humberto Delgado partiu para o Brasil, onde aterrou no dia do
Tiradentes, um feriado nacional celebrado a 21 de abril.
Na verdade, o embaixador Álvaro
Lins agiu por sua conta e soube lidar com este impasse diplomático porque o
Presidente do Brasil [Juscelino Kubitschek] não queria ficar de mal com o
Portugal de Salazar.
O meu avô ficou eternamente grato
ao embaixador Álvaro Lins e à sua esposa Heloísa. Humberto Delgado viveu
exilado no Brasil entre 1959 e 1964. E foram anos sem dúvida complicados porque
ele continuou a preparar ações revolucionárias contra o regime português que
culminaram na revolta de Beja, que foi igualmente malograda na passagem de ano
de 1961 para 1962. Isto passou-se no rescaldo da sua entrada clandestina em
Portugal: entrou e saiu do país e a PIDE carimbou-lhe o passaporte, ou seja, a
polícia que o queria prender permitiu que ele entrasse e saísse do país. Este
facto ridicularizou o regime aos olhos do mundo.
Expresso | Frederico Delgado Rosa
(depoimento recolhido por Bernardo Mendonça
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