sexta-feira, 12 de abril de 2019

Delgado foi como Assange: escondido numa embaixada para fugir às autoridades


Uma criada soprou ao general que a PIDE o queria prender. Humberto Delgado pediu de imediato ajuda ao embaixador do Brasil em Lisboa para o acolher e assim poder continuar a sua luta contra o regime de Salazar. O neto do general, Frederico Delgado Rosa, autor de “Humberto Delgado. Biografia do General Sem Medo”, deixa ao Expresso um depoimento sobre esses dias do seu avô

Quando se fala no “caso Delgado” pensa-se logo no assassinato de Humberto Delgado pela PIDE em 1965, mas no ano de 1959 houve outro “caso Delgado” que foi justamente o asilo de Humberto Delgado na embaixada do Brasil em Lisboa.

Tudo começou porque chegou-lhe a informação de que a PIDE o ia apanhar através de uma criada que ouvira isso da boca de uma figura da polícia política. Ao saber disso, ele reuniu-se com os seus correlegionários e com a família também. Assim, na iminência de se ver preso pela PIDE - o que estava completamente fora de aceitação pela sua parte, porque ele queria continuar o combate contra o regime de Salazar e a respetiva revolta armada -, pediu asilo ao embaixador Álvaro Lins, uma grande figura da história do Brasil e também da literatura brasileira, e foi acolhido de imediato na sua residência.

Curiosamente, a embaixada ficava justamente ao lado da sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. É extremamente irónico que o perseguido pela PIDE ficasse tão perto da própria sede da PIDE. E, aliás, a embaixatriz Heloísa Lins cedo lhe relatou que ouvia durante a noite os gritos dos torturados pela PIDE e que se queixara disso às autoridades mas nunca obtivera resposta. A única que lhe tinham dado é que ela estava equivocada e que esses barulhos eram dos elétricos a chiarem nas calhas e, portanto, não eram gritos humanos...


Durante esses meses em que esteve refugiado na embaixada do Brasil, em Lisboa, Humberto Delgado era diariamente visitado pela sua mulher e pelas suas filhas, que tinham obrigatoriamente de passar ao lado da PIDE. E esse jogo de gato e do rato, de pressão psicológica de ter de estar a passar diariamente ao lado da PIDE e dos seus esbirros, teve, claro, uma componente pessoal bastante forte. Como se eles [da PIDE] estivessem sempre a dizer “isto está por dias para nós o apanharmos”.

Foi um braço de ferro muito grande entre janeiro e abril de 1959, porque obviamente que o regime de Salazar fazia de tudo para ele sair da embaixada sem passar a imagem de que era um perseguido político. Claro que Humberto Delgado não queria sair da embaixada se não fosse com as garantias de que a seguir ia para o Brasil. O regime tentou de tudo para demonstrar que não o perseguia e que ele não corria qualquer perigo.

No decurso desses três meses aconteceu a famosa mas malograda revolta da Sé - as pessoas esquecem-se que foi uma tentativa de ‘golpe delgadista’ contra o regime encabeçada por oficiais e civis em contacto com Humberto Delgado. Mas infelizmente essa revolta não prosseguiu porque houve fugas de informação e um controlo tão apertado sobre os oficiais envolvidos que impossibilitou qualquer hipótese de poder avançar.

Com os holofotes do mundo sobre este caso de Humberto Delgado, levou muito tempo até se encontrar uma solução entre os dois países. Acabou por se solucionar através da intervenção do jornalista brasileiro João Dantas, diretor do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, que veio a Portugal e serviu de intermediário entre as duas nações.

Para a situação ser resolvida sem ser o embaixador a levar Humberto Delgado debaixo do seu braço até o aeroporto, digamos que foi o João Dantes que assumiu essa responsabilidade pela calada da noite. E assim Humberto Delgado partiu para o Brasil, onde aterrou no dia do Tiradentes, um feriado nacional celebrado a 21 de abril.

Na verdade, o embaixador Álvaro Lins agiu por sua conta e soube lidar com este impasse diplomático porque o Presidente do Brasil [Juscelino Kubitschek] não queria ficar de mal com o Portugal de Salazar.

O meu avô ficou eternamente grato ao embaixador Álvaro Lins e à sua esposa Heloísa. Humberto Delgado viveu exilado no Brasil entre 1959 e 1964. E foram anos sem dúvida complicados porque ele continuou a preparar ações revolucionárias contra o regime português que culminaram na revolta de Beja, que foi igualmente malograda na passagem de ano de 1961 para 1962. Isto passou-se no rescaldo da sua entrada clandestina em Portugal: entrou e saiu do país e a PIDE carimbou-lhe o passaporte, ou seja, a polícia que o queria prender permitiu que ele entrasse e saísse do país. Este facto ridicularizou o regime aos olhos do mundo.

Expresso | Frederico Delgado Rosa (depoimento recolhido por Bernardo Mendonça

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