Elas violam, sistematicamente, os
direitos humanos e a natureza. ONU negocia tratado para punir esses crimes, mas
enfrenta forte contradição: regular empresas que se infiltraram em sua própria
estrutura
Inês Castilho | Outras Palavras
Vivemos um tempo de capitalismo
extremo, em que as grandes empresas ganharam peso superior ao da maioria dos
Estados. Por um conjunto de mecanismos de captura do poder, elas deixam aos
governos nacionais e seus cidadãos margem de manobra cada vez mais reduzida em
defesa de seus direitos. Com sede num país e filiais em vários outros – aquele
geralmente no Norte e estes amiúde no Sul –, as multinacionais conseguem,
através de um arcabouço jurídico que as favorece, escapar de acusações e não
indenizar funcionários e comunidades locais prejudicadas mundo afora. Exemplo
maior é a Vale, ainda sem condenação pelos desastres socioambientais provocados
no Brasil.
É nesse contexto, e depois de 40
anos de demandas da sociedade civil, que a ONU negocia um Tratado de Direitos
Humanos como instrumento internacional vinculante, ou obrigatório, para regular
as atividades de corporações transnacionais que violem direitos humanos também
fora de seu país de origem. E desta vez as negociações estão abertas não apenas
às corporações, mas também a organizações não governamentais – algumas das
quais trabalham há décadas nesse tema.
A negociação do tratado teve
início depois da adoção pelo Conselho dos Direitos Humanos da ONU, em 2014, de
uma resolução apresentada pelo Equador e África do Sul, e permitirá expor
abusos que ficam sem julgamento.
“Hoje as corporações dispõem do
seu próprio aparato jurídico, como o International Centre for the
Settlement of Investment Disputes (ICSID)
e instituições semelhantes em Londres, Paris, Hong Kong e outros. Tipicamente,
irão atacar um país se este impuser regras ambientais ou sociais que o mundo
corporativo julga desfavoráveis, e processá-lo por lucros que poderiam ter
tido”, ensina o
professor Ladislau Dowbor, estudioso do assunto.
As queridinhas da ONU
O maior obstáculo para a adoção
do presente Tratado é a presença das corporações dentro da própria ONU. Desde a
década de 1990, uma cultura de “parceria” e integração do setor privado na
elaboração das regras e tomada de decisões foi sendo crescentemente incorporada
ao sistema das Nações Unidas. O símbolo desse estreitamento de relações é o
Pacto Global, lançado em 2000 pelo secretário-geral Kofi Annan, de caráter
voluntário e endossado por milhares de multinacionais nada exemplares, que
traçou 10 princípios relacionados a direitos humanos, trabalhistas, meio
ambiente e combate à corrupção.
O Pacto Global se beneficia do
rótulo da ONU sem impor nenhuma obrigação às empresas parceiras, afirmam os
ativistas. “Estudo do Global Policy Forum foca diretamente o fato dos
interesses corporativos terem adquirido uma influência desproporcional sobre as
instituições que redigem as regras globais. O documento apresenta ‘a crescente
influência do setor empresarial sobre o discurso político e a agenda’,
questionando ‘se as iniciativas de parcerias permitem que o setor corporativo e
os seus grupos de interesse exerçam influência crescente sobre a definição da
agenda e o processo decisório político dos governos’”, observa Dowbor.
O poder das transnacionais
agigantou-se também diante da falta de interesse de muitos Estados, ávidos por
impostos, em defender os Direitos Humanos. Vide a pactuação entre as políticas
europeias e as multinacionais do velho continente, aqui para construir uma
represa, lá para abrir uma mina, acolá para desenvolver uma indústria
exportadora explorando a força de trabalho.
No Brasil, decreto assinado
por Rodrigo Maia, presidente da República em exercício, e publicado pelo
governo federal em 21 de novembro de 2018, fragiliza o cumprimento dos direitos
humanos por empresas nacionais e multinacionais, previstos na Constituição e em
documentos internacionais adotados pelo país.
Soma-se a isso o fato da ONU
depender de recursos das corporações para financiar suas agências e eventos –
seja o patrocínio de conferências sobre clima ou parceria entre agências da ONU
e a Microsoft de Bill Gates; seja a doação de 1 bilhão de dólares pelo
empresário Ted Turner para a criação, em 1998, da “Fundação das Nações Unidas”,
que se tornou uma plataforma de captação de recursos de multinacionais para
agências da ONU e tem hoje como parceiros Nike, Shell e Disney.
Escândalos se acumulam
Atendendo pela primeira vez a uma
velha demanda da sociedade civil, o Grupo de Trabalho Intergovernamental criado
em 2015 para dar início à elaboração do Tratado foi ouvir in loco as
comunidades atingidas pelas corporações. Pavel Sulyandziga e Dante Pesce,
membros do GT, visitaram o Brasil entre 7 a 16 de dezembro daquele ano – logo em
seguida ao rompimento da barragem do Fundão, em Minas Gerais ,
controlada pela Samarco, empreendimento conjunto das maiores multinacionais de
mineração do mundo: a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton.
Com visitas a Brasília, São
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Mariana, Altamira e Belém, seu relatório inclui,
além do desastre socioambiental da Vale, a construção da usina hidrelétrica de
Belo Monte e as obras para as Olimpíadas de 2016. Mostra preocupação com os
assassinatos no campo e os conflitos por invasão de Teritórios Indígenas e
tentativas de retomada das terras ancestrais indígneas e quilombolas. Menciona
o assassinato e ameaças sofridas por ativistas de DH (29 dos 116 mortos em 17
países em 2014, conforme relatório Global Witness). Fala da tentativa de mudar
a definição de trabalho escravo e não mais tornar públicas a listas das
empresas envolvidas.
A pesquisadora Patricia Feeney cita dois
casos famosos: o envolvimento da ITT e outras empresas norte-americanas no
golpe do Chile, que derrubou o presidente Salvador Allende em 11 de
setembro de 1973, e os subornos pagos pela empresa Lockheed a oficiais
japoneses em troca de contratos militares.
Já o relatório “Impunidade
‘made in EU’”, publicado em outubro de 2018 pelo Observatório
das Multinacionais, traz 16 estudos de caso sobre violação dos Direitos
Humanos (DH) por multinacionais europeias tais como Shell, Syngenta ou
Volkswagen. No Brasil, detalha odesastre
da Samarco em
Minas Gerais , destacando que “os governos nacional e local
favoreceram a empresa ao promover mudanças na legislação”; e o greenwashing para
esconder o impacto sobre comunidades indígenas e violação de direitos
trabalhistas na construção da barragem da hidrelétrica
de Jirau. Traz ainda estudos de caso sobre a construção de grandes
barragens na Etiópia; a produção têxtil deslocada para fábricas no Paquistão; e
a exportação de agroquímicos na Índia, causando poluição, conflito social,
corrupção, instabilidade política. Produzidos por iniciativa de organizações
europeias e duas organizações da Argentina e Zâmbia, são lições cruciais para
as atuais negociações na ONU.
40 anos de ativismo
As denúncias sobre o impacto
gerado na vida de indivíduos e do ambiente por multinacionais começaram nos
anos 1970 , dando início a movimentos em prol da regulação internacional das
empresas. Uma comissão do Conselho econômico e social da ONU foi então
encarregada de desenvolver um código de conduta obrigatório para as
multinacionais – o qual, após muitas idas e vindas, acabou sendo desmantelada
nos anos 1990.
“Nas décadas de 70 e 80, boicotes
foram realizados contra agentes econômicos como forma de ativismo, em
particular com relação a empresas e bancos que apoiavam economicamente o regime
do apartheid na África do Sul. Durante este período, também foram
alvo de boicotes empresas que forneciam equipamentos militares a regimes
responsáveis por violações sistemáticas de direitos humanos (HANLON, 1990)”,
informa Patricia.
Nos anos 1990, uma nova
onda de protestos espalhou-se pelo mundo, particularmente Europa e
Estados Unidos. “No final da década de 90, foram realizados grandes protestos
em todo o mundo. A marcha de 100 mil pessoas em Seatle em protesto contra a
Organização Mundial do Comércio (OMC), acusada pelos ativistas de ser um
organismo criado com o intuito de aumentar a mobilidade e influência das
empresas no âmbito global, constitui o melhor exemplo desse tipo de ativismo”,
observa ela.
Em 2003, o Subcomitê das Nações
Unidas para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos propõe a criação de um
marco legal obrigatório para o controle das atividades das multinacionais. Mais
uma vez a pressão de empresas e governos ocidentais fez com o que projeto fosse
abandonado em favor de ações voluntárias, com a adoção em 2011 dos “Princípios
Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos” (UNGP).
O atual tratado internacional
sobre grandes empresas e direitos humanos é, portanto, uma nova etapa numa luta
que vem sendo travada há décadas. Seus promotores esperam que desta vez, diante
do acúmulo de escândalos, a pressão dos grupos da sociedade civil e opinião
pública permita superar as oposições: nada menos que o mundo dos negócios de
Estados Unidos e os governos da Europa, entre outros menos poderosos.
“O fato de que o projeto de
tratado continue avançando, apesar da oposição aberta ou inteligente de atores
poderosos, mostra que o sistema da ONU ainda tem algum poder”, considera Olivier
Petitjean, do Observatório das multinacionais.
O relatório “Impunidade made
in Europe” está disponível em
francês, inglês e espanhol. Os estudos de caso estão disponíveis em
inglês.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário