A NATO não nasceu para responder
a qualquer acção contrária, uma vez que o Tratado de Varsóvia só foi
fundado quatro anos depois, nem para defender a democracia, porque
integrou, à nascença, uma ditadura fascista – a portuguesa.
José Goulão | Abril Abril | opinião
Para assinalar o significado do
70º aniversário da NATO talvez fosse suficiente passar os olhos pela guerra que
há 18 anos destroça o Afeganistão, ou pelo caos em que a Líbia continua
mergulhada ou pelas violações do direito internacional patrocinadas pela organização
nos Balcãs, designadamente o aterrador desmembramento da Jugoslávia.
Talvez fosse suficiente… Mas
estaríamos longe de fazer justiça à amplitude e longevidade de uma acção cada
vez mais global e próxima de comportamentos gangsteristas como a que
caracteriza a aliança. Sendo que a enxurrada de considerações épicas em torno
dos mitos que a sustentam é de tal modo ameaçadora nestes dias que todas as
oportunidades serão poucas para aprofundar o contraditório.
Não surpreende que a NATO seja o
que é. O que poderá causar alguma perplexidade, sobretudo entre quem anda um
pouco mais a par da realidade internacional e quem vai além da informação
mainstream, é a desfaçatez com que dirigentes altamente posicionados em nações
e no mundo tentam interligar os seus belos discursos sobre a aliança com as
práticas sangrentas desta. Ou acreditam nas suas próprias mentiras ou confiam
demasiado na propaganda e na consequente alienação do cidadão comum.
A NATO nasceu no meio de mentiras
e de mitos propagandistas tão em vigor hoje como há 70 anos, apesar de serem
facilmente desmontáveis. Mas os servidores da organização têm fé no efeito de
repetição e num universo mediático reverente.
A NATO não nasceu para responder
a qualquer acção contrária, uma vez que o Tratado de Varsóvia só foi fundado
quatro anos depois. E também não veio para defender a democracia, porque fez
questão de integrar, à nascença, uma ditadura fascista – a portuguesa –
adoptando outras com o correr do tempo, como foi o caso da grega e da turca.
A «aliança defensiva»
Porém, o mito fundador que mais
foi refinando com o tempo e a prática é o da «aliança defensiva», uma espécie
de culto de Calimero a uma escala bastante viril.
A NATO nunca ataca; defende-se
sempre de um qualquer inimigo, que trata de inventar quando não existe. Quando
instala armamentos, cada vez mais exterminadores, é para defender-se; quando
avança os seus meios militares pela Europa afora até às fronteiras russas, ou
em África, ou agora na América Latina é em legítima defesa.
A melhor defesa é o ataque,
argumenta-se em termos de táctica futebolística. A NATO adoptou-a ou
vice-versa, é uma dúvida semelhante à do ovo e da galinha. O que interessa é
saber-se que a NATO nunca ataca, defende-se.
Assim foi durante a Guerra Fria,
por exemplo recorrendo a organizações terroristas clandestinas, como a Gládio,
espalhando o sangue, o horror e o medo através de atentados sucessivos em
Itália para impedir o acesso dos comunistas à esfera do poder, mesmo quando o
povo assim o desejou em eleições legítimas e livres.
Ou não hesitando em conspirar
para promover golpes de Estado e mudanças de regime, dentro e fora da guerra
fria, como aconteceu em Portugal, na Grécia, na Turquia e mais recentemente na
Ucrânia – não interessando, também neste caso, que o resultado seja um regime
nazi-fascista. Sempre em nome da democracia e do mercado, a entidade que mexe
os cordelinhos democráticos e sabe o que é melhor para os cidadãos, mesmo que
estes desejem o contrário.
A NATO e o respeito pela própria
palavra
A NATO tem uma relação complicada
com a própria palavra. É o que acontece a quem vive da propaganda e não tem a
coragem de assumir perante os povos as reais motivações da sua missão.
A NATO esboça a sua realidade
virtual nos mapas e nas mensagens que transmite aos cidadãos; e depois procede
em conformidade mas de uma maneira real, agressiva, muitas vezes sanguinária,
espezinhando os direitos humanos.
A mentira que esteve na génese da
organização – a necessidade de responder a uma entidade de sinal contrário que
viria a nascer apenas quatro anos depois – vigorou até ao colapso da União
Soviética e do Tratado de Varsóvia, no início da década de noventa do ano
passado.
Agora é altura de a NATO se
dissolver, deixaram de existir razões para continuar, argumentaram então os ingénuos
e os que ainda acreditam na boa-fé dos discursos político-militares e das
instâncias que os produzem.
Não é bem assim… respondeu o
atlantismo. Reparem nos inimigos que ameaçam o «nosso civilizado modo de vida»,
o Irão, Saddam Hussein, Khaddafi, a Coreia do Norte, Cuba, Assad, Chávez,
al-Qaida, Bin Laden, os Talibã, eixos do mal cruzando-se, entrecruzando-se,
exigindo a presença vigilante, dissuasora, sempre defensiva da NATO, ainda que
alguns tenham sido amigos ou mesmo criados para bem do mercado e preservação da
democracia.
Portanto, nesta guerra «entre a
civilização e a barbárie», a NATO não pode dissolver-se; mas podem estar certos
de que não vai crescer uma polegada, em território e número de membros. Quem
assim falou foi James Baker, secretário de Estado norte-americano de George
Bush pai.
E se bem o disse melhor o fez;
ele, os sucessores, o chefe e herdeiros, no fundo toda a fina flor Atlântica.
Num ápice a NATO estava em
«tempestades no deserto» invadindo o Iraque, destruindo a Jugoslávia numa
das mais selváticas guerras modernas, invadindo o Afeganistão dando o pontapé
de saída na «guerra contra o terrorismo», no âmbito da qual foi dizimar a Líbia
em aliança com os terroristas islâmicos que dizia estar a combater.
E foi assim que o «nem uma
polegada» se transformou em muitos mais biliões de polegadas; que a “guerra
contra o terrorismo” descambou no recurso a informais braços terroristas como o
Estado Islâmico e a al-Qaida, por exemplo na participação clandestina do
atlantismo na agressão à Síria e, mais recentemente, na interminável invasão do
Afeganistão – onde o inimigo a derrotar – os Talibã – já controla dois terços
do país.
E onde se ouviu James Baker dizer
nem mais um membro deve ler-se duplicação da família dos aliados, porque em
meia dúzia de anos a NATO engoliu a maior parte dos países do antigo Tratado de
Varsóvia mais os Estados nascidos da ex-Jugoslávia, sem esquecer os que lhe
eram adjacentes nos Balcãs, como a Albânia.
A família defensiva já vai em 30
membros e não fica por aqui, porque ao Atlântico Norte juntam-se agora o
Mediterrâneo, os mares Adriático, Báltico e Negro e também o Atlântico Sul.
Graças a imaginativas normas de integração temos a caminho da NATO não só o
narco-Estado terrorista da Colômbia mas também o Brasil, uma vez reconvertido
ao fascismo. Porque a NATO sente urgência em defender-se da sempre ameaçadora
Cuba e, sobretudo, da temível Venezuela de Maduro.
Pelo que abundam razões para
acreditarmos piamente no que a NATO e os seus porta-vozes dizem e prometem.
Claro como água.
O mito da defesa solidária
Outro dos mitos fundadores e base
de propaganda da NATO é o da defesa solidária. Ou seja, qualquer Estado membro
pode contar com os restantes no caso de ser agredido por um Estado terceiro ou
organização inimiga. Todos acorrerão a defendê-lo…
Desde que…
O Estado em questão, como
qualquer outro dos membros, tenha abdicado previamente de parte da sua
independência; os seus governos se tenham submetido à autoridade
económico-militar do complexo militar, industrial e tecnológico que governa os
Estados Unidos da América – e a NATO, por inerência; e estejam dispostos a que
o seu território seja utilizado para que a NATO, isto é, os Estados Unidos da
América, se defendam atacando.
Em boa verdade, os Estados
membros da NATO são protectorados da estrutura imperial norte-americana, que
tem a aliança como seu braço armado: são obrigados a abdicar de uma política de
defesa independente, a colocar vultosos fundos orçamentais à disposição do
Ministério da Defesa dos Estados Unidos, a envolver-se em guerras por razões
que lhes são alheias, ou mesmo contrárias, a manter relações hostis com Estados
porque assim o exigem os interesses norte-americanos e não os interesses
nacionais.
Numerosos estudos demonstram que
os Estados Unidos da América têm entre 800 a mil bases militares em territórios
ocupados no estrangeiro. Nessas áreas, em bom rigor, os Estados hospedeiros
abdicam da sua soberania, cedem-na a Washington.
Ora estes estudos pecam por
defeito, porque não consideram muitas das instalações militares dos Estados
membros da NATO.
Estas instalações, em última
análise, estão ao serviço dos Estados Unidos, mesmo que tecnicamente não sejam
consideradas bases norte-americanas. As suas actividades não são independentes
ou autónomas da estratégia militar da NATO, logo dos Estados Unidos. Os Estados
membros da aliança não possuem instalações militares verdadeiramente próprias
porque não têm uma política de defesa por eles definida tendo em conta os
verdadeiros interesses dos seus povos.
Eis porque o Pentágono administra
um império de instalações militares mundiais muito mais amplo que as cerca de
mil unidades recenseadas.
Conflito constitucional
Na União Europeia entra-se mas
não se sai ou, pelo menos, não se sai a bem, como estamos a perceber
quotidianamente pelo caso do Reino Unido.
Acontece o mesmo com a NATO?
O assunto é académico, porque em
relação à Aliança Atlântica apenas temos assistido a entradas, não a saídas ou
tentativas de saída.
Na União Europeia ainda se
realizam alguns referendos esporádicos para decidir o relacionamento entre as
instituições centrais e Estados membros. Referendos, é certo, que têm sido repetidos
quando não dão os resultados que deveriam dar – segundo a perspectiva da União
– ou então sabotados.
Nada disso acontece na Aliança
Atlântica. A NATO representa, em absoluto, a vontade dos povos, razão que torna
qualquer consulta supérflua. Dir-se-ia um comportamento ditatorial, não
soubéssemos nós que a NATO é a essência da democracia.
Portugal foi fundador da NATO com
a ditadura de Salazar, continuou depois do 25 de Abril – que foi gravemente
ferido no 25 de Novembro com a colaboração prestimosa da aliança – e continua a
não questionar a presença, apesar da letra e do espírito da Constituição da
República.
Em Portugal, a propósito da NATO,
há um conflito constitucional latente, do qual todos os governos têm fugido
como o diabo da cruz. Salazar dizia que “a pátria não se discute”; os governos
de hoje assumem que a NATO não se discute ou, pelo menos, não se questiona.
Porque era isso que deveria
fazer-se à luz da Constituição, que determina o envolvimento de Portugal nos
esforços de paz e de dissolução dos blocos militares, isto é, da NATO.
Nada disso. O que fazem caças
portugueses violando espaço aéreo da Finlândia, por exemplo? Nada contra este
país, apenas uma sequela de uma presença agressiva, no âmbito da NATO, contra
uma nação – a Rússia - com a qual Portugal poderia e deveria ter relações
absolutamente naturais e normais, como acontece como tantas outras.
Essa presença em territórios
bálticos, em si mesma, é uma agressão à Constituição da República.
Em termos de democracia, porém, a
NATO sobrepõe-se à lei fundamental do país. A posição dos dirigentes nacionais
de hoje em relação à aliança não é muito diferente da que há 70 anos era tão
grata a Salazar: estão muito agradecidos pelo favor que a NATO faz em permitir
que o país faça parte de tão grande e defensiva família.
Esqueçam a Constituição.
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