O neoliberalismo subverte, se não
mesmo mina, a tradição liberal e os princípios políticos a ela associados.
Regina Queiroz | Público | opinião
Representando-se como liberais,
os apoiantes dos ideais neoliberais entendem que qualquer crítica ao
neoliberalismo é um ataque ao liberalismo. Interpretam as objecções ao
neoliberalismo como se estas emanassem de princípios forçosamente antiliberais.
Porém, o neoliberalismo subverte, se não mesmo mina, a tradição liberal e os
princípios políticos a ela associados (constitucionalismo, liberdade, império
da lei, individualismo, contrato, consentimento e vontade do povo).
Apesar das várias articulações de
ideias neoliberais em múltiplos locais (América Latina, Europa, China) e em
múltiplas escalas (nacional, internacional, global), o neoliberalismo traduz
para a sociedade a ordem mercado económico. Sob esta tradução, a sociedade é
constituída por indivíduos livres cujo bem-estar individual e agregado não
depende de um plano intencional humano e comum, mas da intervenção de uma força
espontânea (porque não intencional), grosso modo associada à metáfora
da mão-invisível. Como qualquer plano comum é sempre enviesado pelo interesse
privado, a sua aplicação pelos governos implica que alguns indivíduos impõem os
seus interesses privados aos demais. Consequentemente, o bem-estar de todos
depende de um poder espontâneo (do laissez-faire) que garante a realização
dos fins individuais independentemente de restrições públicas.
Dadas aquelas premissas, o
objetivo principal do neoliberalismo consiste em criar as condições políticas
formais para promover a salvaguarda do bem-estar geral independentemente dessas
restrições. Essa criação política transforma o laissez-faire do
mercado num imperativo político, de tal maneira que o domínio da deliberação
política é assim restringido, e mesmo destruído, pela necessidade
fatalista dos mecanismos do mercado económico. Portanto, a fim de criar
uma sociedade análoga a esse mercado, os governos devem fazer com que os
cidadãos irrestritamente obedeçam à ordem política, e já não apenas económica,
do laissez-faire. Doravante, os cidadãos devem renunciar a co-deliberar
sobre questões públicas, sob uma sua identidade política comum, ou seja, como
um povo. Em contrapartida, o âmbito da sua deliberação restringe-se às suas
escolhas puramente privadas para satisfazer fins também exclusivamente
privados.
Não há alternativa (There Is No
Alternative ou TINA, em inglês) desempenha um papel importante nesse
processo. Como resposta à existência do povo, TINA proíbe a
legislação resultante da deliberação pública, entendida como um limite
ilegítimo ao laissez-faire do mercado económico. Dito de outra
maneira, como uma estratégia retórica persuasiva, TINA convida os cidadãos a consentir
a inevitabilidade dos mecanismos do mercado económico e, finalmente, a
renunciar à sua liberdade política. Não é por isso casual que TINA tenha
acompanhado quase sempre a divulgação das políticas neoliberais (na
Grã-Bretanha no tempo de Thatcher, no Portugal de Passos Coelho, na Alemanha de
Merkel, na Grécia de Tsipras, no Chile de Pinochet, na Argentina de Menem, no
Brasil de Collor de Mello e no Peru de Fujimori).
Em contrapartida, ao invés de
estabelecer uma coincidência entre o Estado e o mercado, e apesar da constante
tensão entre a ordem económica e a ordem política (e.g. a imposição de limites
políticos à liberdade dos mercados e a reconfiguração do poder dos Estados), o
liberalismo económico (e.g. Adam Smith, Keynes) e os liberalismos políticos
clássico (e.g. John Locke e Immanuel Kant) e contemporâneo (e.g. John Rawls)
não fazem coincidir o mercado económico com o Estado político, não rejeitam a
noção de povo e não implicam a existência de TINA. Por exemplo, Smith reconhece
o papel do Estado como uma instituição pública autónoma (e.g. o Estado fornece
bens públicos, como a educação, segurança, defesa comum, administração pública
da justiça, o lazer e trabalho). De facto, uma coisa é a divergência teórica
sobre a descrição económica das regras do mercado económico (por exemplo, a
divergência entre marxistas e liberais), outra coisa completamente diferente é
supor que na perspetiva de Smith os princípios económicos dos mercados são
também aplicados aos Estados. Para além disso, Smith considera que os monarcas
deliberam na perspetiva das “diferentes ordens do povo” e não na perspetiva dos
indivíduos encapsulados nos seus interesses puramente privados.
Locke argumenta que quando os
indivíduos se unem para constituir uma sociedade política baseada no
consentimento este transforma-os num só povo ou corpo político. Subjacente às
constituições do governo e aos governos, o povo soberano pode e deve mudar a
legislação política, nos níveis parlamentar e constitucional, se ela for
arbitrária, abusiva ou se se tornar inadequada. Por essa razão, no liberalismo
de Locke, a escolha dos indivíduos tem um alcance coletivo — os indivíduos
escolhem os princípios políticos gerais da sua sociedade política — e é
primordial que eles estejam cientes de que a sua legislação política pode ser
diferente. Refira-se que o facto de os indivíduos deliberarem como um corpo
comum não implica a privação de direitos individuais (e.g. liberdade, propriedade).
A constituição do povo soberano é concomitante com o estabelecimento de uma
carta Constitucional cujo principal objetivo é proteger os direitos políticos
dos indivíduos.
Finalmente, Rawls aponta para o
desacordo inevitável na cultura pública das sociedades democráticas liberais
(por exemplo, as diferentes interpretações públicas das ideias fundamentais da
cultura pública de uma sociedade democrática inspiradas no socialismo,
social-democracia e liberalismo). Sublinhando a condicionalidade, avaliação e
limitação dos princípios políticos, o liberalismo político de Rawls estabelece
que uma característica essencial das comunidades políticas é a sua
contingência, i.e. o facto de as coisas poderem ser de outra maneira. Na
sociedade política há sempre alternativa(s).
Na eventualidade de duvidarmos da
necessidade de distinguir o neoliberalismo do(s) liberalismo(s), é conveniente
sublinhar que a TINA priva as sociedades dos meios liberais e democráticos (por
exemplo, a escolha política dos cidadãos) para canalizar os sentimentos e as
perceções dos cidadãos sobre a injustiça. A menos que o vazio deixado por um
sistema que no seu núcleo ideológico não satisfaz as reivindicações dos povos
seja ocupado pelo respeito da deliberação pública sob o império da lei, aquela
privação dificilmente impede que aqueles sentimentos e perceções sejam
canalizados pelas organizações e pelos políticos antidemocráticos e
antiliberais.
Acresce que no contexto da
globalização, i.e., de uma cada vez maior interdependência dos Estados e dos
povos, os liberais estão justamente preocupados com o incremento das tendências
iliberais. Por exemplo, o jornal Economist quer lançar o debate sobre
os valores políticos liberais. Admitindo que o valor político da co-deliberação
dos cidadãos, enquanto membros de um corpo político, é um valor liberal, é tão
inquietante a subversão do princípio da separação dos poderes na Polónia como o
facto de, na sequência da crise financeira de 2008, três partidos diferentes
(Nova Democracia, PASOK e Syriza), com ideologias políticas distintas, terem
governado a Grécia no âmbito do mesmo programa político. Para além da violação
dos princípios liberais do consentimento e do contrato social, tal facto
evidencia a exclusão da liberdade política dos cidadãos gregos.
A autora escreve segundo o novo
Acordo Ortográfico
*Professora de Ética e Filosofia
Política
**Publicado no jornal Público em
10 de Julho de 2018
Sem comentários:
Enviar um comentário