Brutal paradoxo: os mesmos que
exigem “liberdade” para o dinheiro e as redes sociais empenham-se em construir
muros que segregam os “não-seres”. Mas até nestes linhas de exclusão brota
resistência — talvez, desesperada esperança…
Boaventura de Sousa Santos | Outras
Palavras
Vivemos num tempo de abolição de
fronteiras ou num tempo de construção de fronteiras? Se tivermos em conta dois
dos poderes ou instrumentos que mais minuciosamente governam as nossa vidas – o
capital financeiro e a internet – é inescapável a conclusão de que vivemos num
mundo sem fronteiras. Qualquer tentativa de qualquer dos 195 Estados que
existem no mundo para regular estes poderes será tida como ridícula. No atual
contexto internacional, a avaliação não será muito diferente, se a regulação
for levada a cabo por conjuntos de Estados, por mais ominoso que seja o
provável desenlace da falta de regulação. Por outro lado, se tivermos em conta
a incessante construção ou reafirmação de muros fronteiriços, facilmente
concluímos que, pelo contrário, nunca as fronteiras foram tão mobilizadas para
delimitar pertenças e criar exclusões. Os muros entre os EUA e o México, entre
Israel e a Palestina, entre a Hungria e a Sérvia, entre a Crimeia e a Ucrânia,
entre Marrocos e o povo saharaui, entre Marrocos e Melila/Ceuta aí estão a
afirmar o dramático impacto das fronteiras nas oportunidades de vida daqueles
que as procuram atravessar.
Esta ambivalência ou dualidade do
nosso tempo não é nova. Para nos restringirmos ao mundo ocidental, podemos
dizer que ela existe desde o século XV, no momento em que a expansão
transatlântica europeia obriga a vincar os poderes gêmeos de eliminar e de
criar fronteiras. O Tratado de Tordesilhas de 1494 regulava a liberdade
marítima dos reinos de Portugal e de Castela, ao mesmo tempo que excluía os
outros países do comércio oceânico, o mare clausum. Quando, em 1604,
lhe contrapõe a doutrina do mare liberum, Hugo Grotiustem tem em vista
disputar as fronteiras existentes para as substituir por outras, mais
condizentes com as aspirações da emergente Holanda. Na mesma lógica de
conveniências, Francisco de Vitória, ao mesmo tempo que defendia a soberania
dos países ibéricos, defendia que o direito de livre comércio se sobrepunha a
qualquer pretensão de soberania dos povos das Américas.
Desde o Renascimento do século XV
até ao Iluminismo do século XVIII vai-se afirmando a universalidade sem
fronteiras da humanidade e do conhecimento, ao mesmo tempo que se vão vincando
as fronteiras entre civilizados e selvagens, entre colonizadores e colonizados,
entre livres e escravos, entre homens e mulheres, entre brancos e negros.
Immanuel Kant advoga a ideia do Estado universal, berço de todo o
cosmopolitismo eurocêntrico, um século depois de a Europa se ter retalhado
entre países soberanos no Tratado de Vestefália de 1648. Foi essa a única forma
de garantir a coexistência pacífica entre poderes e religiões que se tinham guerreado
de modo bárbaro na guerra dos trinta anos, onde morreu um milhão de pessoas. Um
século depois de Kant, as potências europeias, apostadas em garantir a expansão
sem limites do capitalismo emergente, reúnem-se em Berlim para desenhar as
fronteiras na partilha de África, sem que obviamente os africanos sejam
ouvidos. O relato poderia continuar com a instabilidade crônica das fronteiras
da Europa de Leste e dos Balcãs e a massiva deslocação forçada de populações
decorrente do colapso do império Otomano. Por sua vez, nos nossos dias, o
espaço Schengen ilustra bem como o mesmo poder pode simultaneamente eliminar e
criar fronteiras. Enquanto, para os europeus incluídos, este espaço tornou as
fronteiras internas num antiquado impedimento felizmente superado, para os
não-europeus, as fronteiras externas tornaram-se uma montanha opaca e
burocrática, quando não um pesadelo kafkiano.
Todas as situações conduziriam à
mesma conclusão: as fronteiras são instrumentais e são sempre expressão do
poder de quem as define. Por sua vez, a violação das fronteiras ou é expressão
de um poder emergente que se pretende sobrepor ao poder existente, ou é
expressão daqueles que, sem terem poder para redefinir ou eliminar as
fronteiras, as atravessam sem autorização de quem as controla.
Sendo instrumentais, as
fronteiras são muito mais que linhas divisórias geopolíticas. São formas de
sociabilidade, exploração de novas possibilidades, momentos dramáticos de
travessia, experiências de vida fronteiriça, linhas abissais de exclusão entre
ser e não ser, muros de separação entre a humanidade e a sub-humanidade,
tempos-espaços de exercício de poder arbitrário e violento. Neste domínio, o
que melhor caracteriza o nosso tempo é a diversidade de experiências de
fronteira, a aceleração dos processos sociais, políticos e culturais que erigem
e derrubam fronteiras, a valorização epistemológica do viver e pensar
fronteiriços e os modos de resistência contra fronteiras consideradas
arbitrárias ou injustas.
Vejamos algumas situações
paradigmáticas. A travessia das fronteiras tanto pode ser uma experiência
banal, quase irrelevante, como uma experiência violenta, degradante, em que a
única banalidade é a do horror quotidiano. Do primeiro caso são paradigmáticas
as travessias quotidianas, para comércio e convivialidade, das comunidades
africanas que foram separadas por fronteiras arbitrárias depois da Conferência
de Berlim em 1894-95; dos povos indígenas da Amazónia que têm parentes dos dois
lados da fronteira dos vários países amazónicos; ou das “gentes da raia” entre
Portugal e a Espanha (sobretudo na Galiza). No segundo caso, há que distinguir
entre travessias quotidianas e de duplo sentido e as travessias singulares ou
as experiências reiteradas e frustradas das travessias imaginadas, umas e
outras como de sentido único. Das primeiras são paradigmáticas as travessias
quotidianas dos palestinos a caminho do trabalho em Israel, através dos infames check-points,
onde podem passar horas ou não passar, em qualquer caso vítimas do mesmo poder
violento, arbitrário e totalmente opaco. Das segundas são paradigmáticas as
travessias logradas ou frustradas dos milhares de emigrantes, ou melhor, de
fugitivos da fome, da miséria, das guerras e das mudanças climáticas que
atravessam a América Central a caminho dos EUA, ou naufragam no Mediterrâneo ao
cruzá-lo a caminho da Europa. Nestas travessias, as temporalidades históricas
tanto se dramatizam como perdem sentido. Estes peregrinos da deserança moderna,
capitalista, colonial e patriarcal, fogem para o futuro ou fogem do futuro? Vêm
do passado ou vão para o passado? São filhos da espoliação colonial que tentam
libertar-se da devastação que ela criou ou são projetos de carne jovem para
reescravizar, desta vez nos interiores das fachadas das avenidas do glamour
metropolitano, e já não nos campos de extermínio nas plantações das colónias?
A sociabilidade de fronteira
tanto pode resultar do exercício permanente de deslocação das fronteiras, como
da vida suspensa junto a fronteiras fixas e bloqueadas, muros de cimento ou
redes de arame farpado. No primeiro caso, a fronteira é definida e deslocada
por quem tem poder para tal. É paradigmática a experiência de pioneiros,
bandeirantes, emigrantes que, ao longo dos séculos de expansão colonial, foram
invadindo e colonizando os territórios dos povos nativos. Por ter acontecido
num contexto supostamente pós-colonial, a experiência do far westnorte-americano
é particularmente reveladora da linha abissal que a fronteira vai desenhando
entre as zonas de ser e a zonas de não ser, como diria Frantz Fanon. Do lado de
cá da linha, sempre em movimento, está a sociabilidade dos pioneiros, uma
sociabilidade de tipo novo caracterizada pelo uso seletivo e instrumental das
tradições e a sua mistura com a criatividade das invenções de convivência que o
novo contexto exigia, pela pluralidade de poderes e hierarquias débeis entre os
diferentes grupos de pioneiros, pela fluidez das relações sociais e a
promiscuidades entre estranhos e íntimos. Do outro lado da linha estão os
índios, os donos do território, que os pioneiros convertem em seres inferiores,
indignos de tanta abundância, obstáculos ao progresso, a serem superados com a
inexorável conquista do Oeste. De um lado da fronteira, a convivência, do
outro, a violência. A matriz moderna da construção paralela de humanidade e de
desumanidade tem aqui uma das suas mais dramáticas e violentas ilustrações.
Por sua vez, a sociabilidade das
fronteiras bloqueadas está hoje bem presente nos campos de internamento de
refugiados que se vão multiplicando em vários países europeus e em países
associados para o efeito, como é o caso da Turquia. São, na verdade, campos de
concentração dos novos presos políticos do nosso tempo, os presos políticos do
capitalismo, do colonialismo e do patriarcado, populações consideradas descartáveis
ou sobrantes para estas três formas de dominação moderna que hoje parecem mais
agressivas que nunca.
As fronteiras são as feridas
incuráveis e expostas de um mundo sem fronteiras. O único motivo de esperança
que elas nos permitem é a emergência de movimentos e associações de jovens que
se rebelam contra as fronteiras e se solidarizam ativamente com as lutas dos
migrantes e refugiados. Não praticam ajuda humanitária, envolvem-se nas suas
lutas, facilitam a comunicação entre os migrantes, exploram meios legais e
ilegais de os libertar destas infames prisões. Estes jovens constituem a melhor
manifestação da desesperada esperança do nosso tempo.
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