Corporações promovem guerra suja
para quebrar indústrias nacionais de medicamentos e perpetuar patentes,
fortalecendo oligopólio. Pesquisador questiona: governos terão a coragem de
exigir transparência da Big Pharma?
Maíra Mathias, para Outra Saúde | em Outras Palavras
Na terça (28), a Assembleia
Mundial da Saúde aprovou uma resolução inédita
que propõe mais transparência no mercado de medicamentos, vacinas e produtos de
saúde. O sinal verde foi dado depois de uma longa batalha diplomática que se
iniciou em fevereiro, de forma inesperada, quando o governo de extrema-direita
do primeiro ministro italiano Matteo Salvini apresentou a proposta. Ao lado da
Itália, constavam como apoiadores da resolução dois outros países europeus –
Portugal e Espanha – e isso, na opinião de muitos analistas, fez a diferença.
Durante muito tempo, as dificuldades no acesso a medicamentos foram tratadas
como assunto de países pobres. Um problema do Sul global. Mas as políticas de
austeridade, por um lado, e os custos cada vez mais proibitivos cobrados pela
indústria farmacêutica, de outro, transformaram a questão em um problema de
todos. Ou quase todos.
A resolução enfrentou grande
resistência dos países que sediam as principais multinacionais da Big Pharma.
Nações como Alemanha, França, Reino Unido e Suíça fizeram de tudo para mudar o
sentido original do texto. À certa altura das negociações, o documento
apresentava mais de 200 mudanças e circulou nas redes a denúncia de que esses
países estariam tentando “matar” a resolução com “200 colchetes” – que é a
forma como as propostas de edição apareciam nos rascunhos.
Uma das alterações, feita pelo
Reino Unido, tirava a menção a “preços altos”. Já a desculpa da Alemanha para
tentar adiar a discussão por mais um ano foi a forma como o documento foi
apresentado, fora do trâmite normal da Organização Mundial da Saúde. No fim,
mesmo depois de ter atuado durante toda a negociação, os governos britânico e
alemão (e também a Hungria de Viktor Orbán) simplesmente se recusaram a assinar
a resolução, se “dissociando” do texto final, um movimento bastante raro na
diplomacia. Os Estados Unidos surpreendeu e não fez oposição. Já países que
inicialmente não foram protagonistas no processo, ao longo dele se associaram à
Itália e defenderam o texto – caso do Brasil.
Depois de tantas idas e vindas, o
conteúdo da resolução ficou menos ambicioso. A versão consensual “perdeu os
dentes”, como muitos falam. Uma dentada que não poderá ser dada, ao menos por
hora, é a determinação de que a transparência de custos em toda a cadeia
produtiva seja requisito prévio para que uma empresa obtenha o registro de um
medicamento. Mas o texto aborda a necessidade de que os países troquem entre si
os preços que pagam, assim como as informações sobre as patentes que concedem.
Nessa entrevista concedida no
calor dos acontecimentos, diretamente de Genebra, Vitor Ido, oficial do
programa de desenvolvimento, inovação e propriedade intelectual do South Centre, vai além da resolução
para explicar seu pano de fundo e a geopolítica por trás do problema.
Qual é a importância da
resolução?
A resolução é um marco na luta
por acesso a medicamentos por reconhecer que é necessário transparência para
diminuir os custos de medicamentos e produtos de saúde. Alguns dos pontos
centrais são o reconhecimento de que esse é um desafio que envolve toda a
cadeia de produção, não apenas o produtor final, o reconhecimento formal de que
muitos desses produtos de saúde não são acessíveis e a abordagem de uma série
de medidas públicas possíveis para contornar o problema.
Ao mesmo tempo, é preciso
reconhecer que depois de todas as mudanças, o texto não contém muito conteúdo
obrigatório. Ele cria uma série de atividades a serem realizadas pelos Estados
e pelo Secretariado da OMS. Mas a resolução depende fundamentalmente da
implementação nacional, que pode acontecer de várias maneiras, e é importante
que a sociedade civil e institutos de pesquisa desenvolvam instrumentos de
acompanhamento para verificar se elas serão efetivamente colocadas em prática.
Isso porque certas interpretações limitadas do texto podem acabar impedindo sua
efetividade.
Mas esse é um processo que a
gente precisa fazer daqui para frente. Por enquanto, é uma vitória dos países
em desenvolvimento. Apesar de ter sido capitaneada pela Itália, a resolução
contou com a participação de vários países em desenvolvimento, inclusive o
Brasil. E uma vitória da sociedade civil por reconhecer que o acesso a
medicamentos é cada vez mais um problema que atinge a todos.
Outro ponto central para o debate
é o que a resolução não contempla. Ou seja, a criação de um mandato específico
para a OMS para difundir a proposta de transparência entre os países e criar
incentivos para que esses países implementem políticas obrigatórios em relação
à indústria farmacêutica. Para avançar, o que se espera é a aprovação de outras
resoluções ou medidas que possam cada vez mais exigir a transparência nos
mercados de medicamentos, vacinas e outros produtos médicos.
O que é exatamente a
transparência da qual fala a resolução?
A ideia de transparência só faz
sentido na medida em que traga maior controle social para a sociedade, os
pacientes, outras empresas e governos sobre como os custos da pesquisa &
desenvolvimento dos medicamentos se formam hoje no mundo.
O contexto atual é basicamente de
ausência de informação para saber, por exemplo, as bases em que os governos
devem negociar preços quando fazem compras públicas. Ou para avaliar a
veracidade – ou não – dos argumentos de grandes indústrias farmacêuticas que
dizem que têm muitos gastos com pesquisa & desenvolvimento. A resolução tem
o mérito de trazer à tona esse debate que fica implícito, mas que é crucial em
qualquer discussão sobre o acesso a medicamentos hoje.
É importante dizer que não é uma
questão inédita, não é uma questão nova de maneira alguma. Mas tem se tornado
cada vez mais importante na medida em que os países desenvolvidos não dão conta
e não conseguem pagar medicamentos que são cada vez mais especializados e
caros.
“O problema é cada vez maior porque as indústrias também são cada vez maiores, mais transacionais e poderosas”
Os custos da indústria
farmacêutica sempre foram uma caixa preta ou isso piorou ao longo do tempo?
Pode-se dizer sem grandes
polêmicas que transparência nunca houve. Talvez o debate tenha sido colocado
nesses termos recentemente, mas a ideia de que não se sabe exatamente quanto,
por que e por quais meios a pesquisa & desenvolvimento se realizam está
presente há muito tempo.
Sobre a possibilidade de ter se
tornado um problema mais complexo ou não, eu acho que seria preciso também uma
análise de como funcionam as principais tendências da inovação hoje. Há muitas
pesquisas sérias conduzidas por organizações não governamentais e governos que
constatam que a indústria farmacêutica tem inovado menos. Evidentemente a
indústria e seus próprios estudos costumam dizer que isso se deve ao fato de
que os medicamentos são cada vez mais caros de serem criados, já que se atua em
certos nichos de doenças cada vez mais específicas, complicadas ou resistentes.
Mas eu diria que, sim, o problema
é cada vez maior porque as indústrias também são cada vez maiores, mais
transacionais e poderosas. E porque o modelo de inovação atual se baseia
muito na compra de inovações de indústrias menores. Por exemplo, uma pequena
indústria farmacêutica efetivamente realiza a inovação, mas não tem dinheiro
para fazer os testes clínicos até a fase final. O que acontece? Uma grande
farmacêutica compra essa inovação. Isso agrega um grau de complexidade maior
porque estamos falando de orçamentos que incluem mais de um ator e às vezes
estão ocorrendo em mais de um país e em mais uma cadeia de produção.
É aí que entra a previsão de
compartilhamento de preços e outras informações entre os países?
Sim. Isso criaria condições
melhores tanto para negociação quanto para entender quais são os gargalos em
todos os pontos da cadeia de produção, tanto na pesquisa & desenvolvimento.
E ainda para descobrir quanto desse investimento vem de verbas públicas e para
entender, por fim, a que preços esses medicamentos são vendidos e se efetivamente
países em condições similares estão pagando o mesmo preço, ou estão em
condições diferentes.
Existem vários casos e exemplos
de países pobres e de renda média que pagam mais caro por medicamentos que os
países do Norte. Esse debate era muito importante para os países do Sul, que já
vêm falando nisso há algum tempo, mas agora surge essa novidade que é a atuação
da Itália, junto com Portugal e Espanha…
Em alguma medida, é claro que
essa resolução ganha um senso de legitimidade pela forma como as coisas existem
no mundo, que ainda é dividido entre Norte e Sul. O fato de ser uma resolução
da Itália, apoiada por Portugal e Espanha, não deixa de nos fazer lembrar que
aquilo antes tratado como um problema exclusivo dos países do Sul agora se
tornou um problema global que atinge a todos os países.
É uma contradição e um grande
fator de iniquidade global o fato de que muitos países, inclusive os mais
pobres do mundo, acabem pagando preços mais elevados do que países
industrializados na Europa.
Por muito tempo, o movimento por
acesso a medicamentos identificou nas patentes o problema central. Eu diria que
as patentes continuam a ser um problema central, mas se começa identificar uma
série de problemas laterais e alguns adicionais a esse problema central. Eles
se delineiam na estrutura de interesse privado das indústrias farmacêuticas em
contraposição com o interesse público do acesso a medicamentos.
Uma das razões pelas quais países
na África subsaariana acabam pagando um valor muito elevado diz respeito ao
fato de que eles são incluídos em grandes programas globais de licenças
voluntárias.
Esses programas foram criados
como uma alternativa a países que não conseguem ter produção local, mas também
são uma reação à emissão de licenças compulsórias – aquilo que as pessoas chamam
de “quebra de patente” – por parte de países de renda média como Brasil,
Tailândia, Equador… Ou seja, dá para olhar pelos dois lados. Esses grandes
programas da indústria farmacêutica podem ser vistos como uma tentativa de
evitar o que para ela é pior, que é a licença compulsória. Por outro lado,
criaram espaços onde antes não existia.
Só que o problema central disso
tudo é que, no final das contas, um governo de um pequeno país da África
subsaariana nunca vai ter a mesma capacidade de negociação que o governo do
Brasil e muito menos do que o governo dos Estados Unidos.
“Não importa por qual ângulo se entre nesse debate, o pano de fundo é a geopolítica que continua a favorecer grandes indústrias, especialmente localizadas em países industrializados, em detrimento da população do Sul global.”
Não tem capacidade técnica, não
tem escala… E nem geopolítica.
Exatamente. Não tem um poder de
pressionar, não tem eventualmente quantidade de pessoas. É importante
destacar que não se trata necessariamente de talento, boa vontade ou lisura.
Mas de uma desproporcionalidade de recursos e informação. A informação é
central para saber o preço que deveria ser efetivamente cobrado por um
medicamento.
E é óbvio que daí a gente vê toda
essa complicação do que seria um preço acessível ou como eles começaram a dizer
agora um preço razoável, ou fair pricing.
Mas esses países não sabem nem o que os países vizinhos estão pagando. Muitas
vezes porque esses acordos exigem cláusulas de confidencialidade. Ou seja, as
empresas cobram um preço favorável, desde que o país não compartilhe com seus
vizinhos o quanto está pagando. E essa confidencialidade é prevista no
contrato. Esse é um caso que tem sido reportado com uma certa recorrência.
Ou de maneira mais geral, qual é
o critério que se baseia um determinado preço. Um bom exemplo é o do
medicamento de hepatite C, sofosbuvir, que ganhou proeminência nos últimos
anos pelo custo extremamente elevado. Para se ter ideia, no sistema de saúde de
um país rico como a Suíça, o sofosbuvir só estava sendo oferecido
para os pacientes em uma condição já grave da doença, justamente por custar
muito caro. A empresa farmacêutica, Gilead, dizia que estava baseando o preço
na própria vida. Porque ou você vai tomar esse medicamento ou vai fazer um
transplante de fígado ou vai morrer. Esse é o argumento para dizer que, afinal
de contas, o medicamento não é tão caro.
Que tipo de contra-argumentos se
pode apresentar, que tipo de dados se tem disponíveis, que tipo de poder tem um
país, principalmente aquele sem produção local ou com uma produção voltada para
outras coisas, e em um contexto de uma crise grave de saúde pública e ao mesmo
tempo orçamentos que estão cada vez mais comprimidos?
Não importa por qual ângulo se
entre nesse debate, o pano de fundo é a geopolítica que continua a favorecer
grandes indústrias, especialmente localizadas em países industrializados, em
detrimento da população do Sul global.
Por que a construção de sistemas
públicos de saúde, ou sistemas nacionais de saúde, teve ênfase na prestação de
serviços e deixou de lado esse componente tão importante de produção de
medicamentos, equipamentos e insumos, que poderia dar aos países mais autonomia
diante da Big Pharma?
Por um lado, os países sofrem uma
pressão pela via do comércio internacional para abandonarem políticas que são
consideradas intervencionistas, mas que na verdade são legítimas à luz do
direito internacional. A gente tem visto crescer a pressão, não só unilateral
ou por vias não diplomáticas, mas pelas vias mais institucionais possíveis para
que os países abandonem qualquer tentativa de industrialização, o que inclui
evidentemente produção de medicamentos.
Pelas regras do comércio
internacional, a participação de empresas estatais é perfeitamente reconhecida
como possibilidade, em especial para os países de menor desenvolvimento
relativo. Mas o que a gente tem visto é uma tentativa de criar argumentos que
são ao mesmo tempo jurídicos, políticos e econômicos para dizer que os países
não só não devem como não podem fazer isso porque supostamente estariam
beneficiando empresas locais em detrimento do livre comércio. E ao mesmo tempo
a competição internacional nunca permite que indústrias cresçam se elas forem
submetidas imediatamente à concorrência de outra empresa que tem literalmente mais
de mil vezes o seu tamanho. Nesse sentido, esse espaço de manobra da política
diminuiu drasticamente para todos os países desenvolvimento. E cada vez mais
acordos de livre comércio como o novo Nafta [USMCA] vão contraindo ainda mais
essa possibilidade.
E é lógico que tem um pouco da
mentalidade, de como os governantes e políticos dos países aceitam essa
narrativa de que a única e inevitável salvação é abrir os mercados,
desregulamentar e entrar na competição internacional.
Ao mesmo tempo, é difícil articular
um debate mais amplo – até pela complexidade – de um serviço público de saúde
com as necessidades de criação de indústrias locais, sejam elas públicas ou
privadas.
Como a prioridade de estabelecer
um sistema público de saúde já envolve a coordenação interfederativa de uma
série de políticas de acesso, prevenção etc. incluir uma perspectiva de saúde
pública para um debate que em geral é tido como de indústria ou desenvolvimento
é sempre difícil. Porque, claro, nenhum país consegue criar uma indústria do
dia para a noite. Não é só uma questão de falta de vontade.
Ao mesmo tempo, os Estados estão
em crise. Então articular políticas que só vão ter repercussão daqui a várias
décadas parece cada vez mais difícil. Como a face mais imediata do sistema de
saúde é o acesso, a serviços, procedimentos, medicamentos, os países mais
pobres acabam canalizando seus esforços para conseguir uma doação ou entrar num
programa de licença voluntária, e não pensam em criar uma indústria nacional.
E o terceiro ponto é que pela
correlação de forças hoje mesmo que essas indústrias sejam criadas elas ainda
podem encontrar as barreiras das patentes farmacêuticas, o que significa que
não se trata apenas de ter a capacidade mas de poder ou não produzir certos
medicamentos.
É o caso do sofosbuvir que
poderia ser produzido pela Fiocruz, no Brasil, com economia calculada de R$ 1
bi para o Ministério da Saúde se não fosse pela patente concedida à Gilead pelo
Instito Nacional de Propriedade Industrial em setembro do ano passado…
O caso mais recente no Brasil é
esse, que demonstra claramente o tipo de obstáculos. Quando países criaram
indústrias de genéricos ou países industrializados criaram suas indústrias
farmacêuticas era um obstáculo que não existia, ou que existia num nível muito
menor.
“As universidades no mundo realizam o grosso da investigação (…) e o problema é que não existe nenhum mecanismo de compensação do investimento público realizado”
Ao longo dessas negociações pela
resolução da transparência, muitos argumentos sobre a necessidade de se abrir
os custos da cadeia de produção se baseavam no fato de que o Estado participa
dessa engrenagem, por exemplo, a partir das pesquisas realizadas pelas
universidades públicas…
Isso é uma tendência que pode ser
considerada global, inclusive em países nos quais se costuma dizer que o
investimento é todo feito pelas empresas, todo privado. Mas quando a gente
analisa de uma forma um pouco mais ampla, vê que por regra geral a pesquisa
básica é realizada por instituições públicas e, depois, pode ser utilizada pelo
setor privado. Sem a pesquisa base, uma pesquisa que chegue até um medicamento
não tem de onde partir.
O ator talvez mais importante
desse ecossistema são as universidades. No caso do Brasil, isso é muito claro
do ponto de vista estatístico. Mas mesmo em outros países. E mesmo que você
considere, por exemplo, universidades privadas, pois não é que elas deixam de
receber dinheiro público. Seja via projetos, e no caso da União Europeia é
muito dinheiro que vem para financiamento da pesquisa, ou no caso dos EUA via
isenção de impostos e tributos. Ou seja, diretamente e indiretamente, o Estado
participa da inovação.
Políticas estatais compõem a base
para qualquer tipo de inovação, mesmo que ela ocorra nas empresas. Pegue uma
empresa que inova muito e corte a eletricidade, corte a capacidade técnica das
pessoas que estão lá, corte o apoio do próprio governo para garantir que a
concorrência vai ser mantida e não baseada em grandes monopólios com lobby…
Mesmo nessa perspectiva bastante liberal você continua precisando reconhecer
que o Estado tem um papel central.
Mas eu iria até além. As
universidades no mundo realizam o grosso da investigação, em especial nos
primeiros estágios de um produto final, inovação essa que depois é levada para
outros atores, sejam os departamentos de investigação das próprias empresas,
sejam institutos de pesquisa mais voltados para ciência aplicada e o problema é
que não existe nenhum mecanismo de compensação do investimento público
realizado. O lucro é revertido exclusivamente para o setor privado na forma de
uma patente, por exemplo.
Como a pesquisa básica se
transforma em pesquisa aplicada?
São muitos os arranjos possíveis.
Grandes indústrias que têm o capital para realizar os testes clínicos compram
contratos e licenças de empresas menores ou de institutos de pesquisa de origem
pública. E ao mesmo tempo as parcerias público-privadas que cada vez mais tem
ocorrido ao redor do mundo em tese preveriam um arranjo em que todos se
beneficiariam. Mas que riscos ficam com o setor público e que benefícios ficam
com o setor privado? Em muitos dos casos, não é um balanço equilibrado.
A indústria não tem demonstrado
nenhum interesse em desenvolver alguns medicamentos que não seriam lucrativos.
Nesse caso, não há transparência que resolva o problema…
O ponto crucial de todo esse
debate é que mesmo que a gente tenha a maior transparência possível, mesmo que
a gente consiga reduzir os preços dos medicamentos, continuamos a não ter
soluções específicas ou totais para o problema das falhas de mercado da
indústria farmacêutica, que são inúmeras.
Hoje em dia pela lógica privada
do capitalismo você só vai investir se pensar que vai ter lucro. Então doenças
raras ou aquelas não por acaso chamadas de negligenciadas só terão
investimentos em pesquisa e, depois, medicamentos para tratá-las se a lógica de
mercado for ultrapassada. Investimentos públicos são mais do que essenciais:
são a única alternativa possível.
Quais são as ferramentas que os
Estados têm hoje?
No direito internacional, os
países tiveram na década de 90 uma restrição muito grande ao que eles podem
fazer. Isso é por conta da criação da Organização Mundial de Comércio e do
Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio [TRIPs, na sigla em inglês), que regula os aspectos relacionados à
propriedade intelectual e obriga todos os países, incluindo os países de menor
desenvolvimento relativo a reconhecer patentes farmacêuticas. Uma patente
fornece um monopólio temporário para o seu detentor. Um monopólio permite ao
monopolista cobrar o preço que ele quiser. Esse é um gargalo gigantesco porque
esse é um monopólio lícito, pelo menos a princípio. Ele pode ser abusado – como
muitas vezes é. Mas a questão é que, ainda sim, existem vários mecanismos dos
quais os Estados podem lançar mão.
Isso incluiu o papel do
Judiciário, inclui normas internas e diretrizes que são do escritório de
patentes. No caso do Brasil, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial. E,
claro, mudanças legislativas que podem aumentar ainda mais essa zona de
exclusividade dos direitos dos detentores das patentes, em geral as indústrias
internacionais, ou eles podem adotar uma perspectiva de saúde pública.
É importante ressaltar que isso
não é uma luta contra a indústria por si mesma, nem uma luta contra as
patentes. É basicamente usar o espaço que é reconhecido pelo próprio direito
internacional, pelo próprio acordo TRIPs.
A licença compulsória é apenas um
dos mecanismos, talvez o mais famoso, para intervir no caso de uma necessidade.
Mas, por exemplo, países como a Argentina hoje têm uma quantidade de patentes
farmacêuticas muito menor porque eles adotam critérios mais rigorosos para
conceder uma patente. Se antes, a prescrição para uma doença era tomar certa
pílula duas vezes ao dia e, agora, foi criada uma tecnologia que reduz isso
para uma única pílula ao dia, por um lado você pode dizer que isso é uma
inovação e por outro, olhando para os requisitos técnicos, que na verdade
apenas uma segunda manifestação ou é um incremento muito pequeno.
Ou se você usava um remédio para
tratar algo no estômago e se descobriu que tinha efeitos no fígado, um segundo
uso, será que isso justifica mais 20 anos de direito de produção exclusivo? O
lobby internacional das indústrias obviamente vai no sentido de aumentar sua
própria proteção. Mas existe um espaço grande para que os países tenham
bastante clareza e, inclusive, independente do ponto de vista ideológico porque
a gente tem visto governos bastante díspares tomando esse tipo de posição em
que por adotarem políticas que a gente chama de flexibilidade do TRIPs como
critério rigorosos de concessão de patentes, como possibilidades de pedidos de
oposição ao pedido de patente, como licenças compulsórias, como exceções para
pesquisa, como critérios para medidas de fronteira, etc. a atuação dos países
pode ter um impacto muito grande para reduzir o preço dos medicamentos.
Dito tudo isso, é importante
entender que essa é uma faceta do debate. Ao mesmo tempo, de uma maneira mais
geral do ponto de vista dos ministérios de saúde o que eu posso dizer é que
apesar das restrições orçamentárias, uma coisa é certa: garantir acesso
universal exige recursos. Não dá para dizer que o acesso a medicamentos e o
acesso ao direito à saúde é plenamente compatível com políticas de austeridade.
Com outros setores econômicos e
com outros produtos que não são tão essenciais para a manutenção da vida e do
bem-estar, como carros, por exemplo, a gente consegue saber o custo? Essa
transparência que a resolução italiana inicialmente propôs é uma coisa inédita
ou já existe em outras cadeias produtivas?
Justamente pelo aumento da
importância de medicamentos, vacinas e diagnósticos no debate sobre a saúde
global é natural que também haja cada vez mais reflexões sobre o custo de
pesquisa e desenvolvimento nessas áreas. Eu não acompanho tanto o que se tem
falado em relação especificamente a isso, mas a minha impressão é de que se por
um lado algumas das tecnologias envolveriam um modelo de inovação “menos complexo”,
bem entre aspas, do que o setor farmacêutico, por outro lado ele também
continua a ser como qualquer sistema de inovação imbuído de uma série de
elementos de falta de transparência. O que exige, sim, uma reflexão sobre o que
seria necessário, o que seria de específico para exigir transparência desses
outros setores.
Mas aí talvez exista uma questão
sobre o quanto de dentes que um mecanismo que seja criado necessita para
realmente conseguir uma transparência de informações seja efetivamente possível
de ser utilizada por países. Talvez um país bem pequeno que ainda não tenha
condições de criar uma indústria enorme de medicamentos, talvez tenha condições
de entrar em um mercado como o de equipamentos auditivos.
Mas se eles considerarem por um
lado que não podem fazer isso e forem submetidos tanto a essas grandes pressões
talvez eles não tenham nenhum incentivo para sequer pensar em adotar uma
política nesse sentido.
Que lição fica de toda essa
movimentação insana de negociações em torno da resolução na Assembleia Mundial
da Saúde?
Um ponto central é a continuidade
da reflexão sobre o conflito de interesses. Isso no âmbito não só na
Organização Mundial da Saúde. O conflito de interesses entre as indústrias
farmacêuticas e o funcionamento dos mercados; o conflito de determinadas
agentes em relação ao sistema público. Ou seja, o debate sobre essa
transparência também precisa incluir, ainda que indiretamente, a noção de que
as regras do jogo têm que ser jogadas por todo mundo. E que, portanto, os
incentivos, as condições e as informações têm que estar em igual capacidade
para todo mundo. Aplicado no debate internacional, isso significaria dizer que
os países em desenvolvimento precisariam ter os mesmos recursos, as mesmas
informações que eventualmente outros países que sediam as grandes indústrias
transnacionais têm. O que, obviamente, não acontece.
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