Em cinco meses presidente
destruiu bases de apoio
Independentemente do seu sucesso,
a manifestação deste domingo é uma demonstração de fracasso do governo.
Bolsonaro assumiu com uma boa base de apoio no Congresso e apoio popular, mas
conseguiu destruir tudo isso em poucos meses.
O ato foi convocado logo após
dois episódios que fragilizaram ainda mais o presidente. O primeiro foi o avanço das investigações do caso Queiroz, mostrando que a
lama na qual Flávio Bolsonaro está atolado é maior do que se supunha. Uma lama que
respinga no presidente. Jair Bolsonaro manteve transações financeiras mal
explicadas com Queiroz, um amigo de confiança de mais de 30 anos, que
operou o esquema de corrupção no gabinete do seu filho e é suspeito de ser
miliciano.
O segundo episódio foi uma carta
escrita por um filiado do Novo e compartilhada por Bolsonaro, em que classifica o país
como “ingovernável fora de conchavos” e coloca o presidente como um anjo
indefeso cercado por ratos. STF, Forças Armadas, Congresso e as corporações
estariam boicotando o governo. Ali foi dada a senha de qual seria o objetivo do
ato. É uma carta golpista de cabo a rabo.
A convocação da manifestação foi
iniciada por seus apoiadores nas redes com palavras de ordem que pediam o
fechamento do congresso e do STF. Eduardo Bolsonaro compartilhou tweet do deputado Marcio Labre
(PSL-RJ) convocando a população para apoiar o presidente contra
“chantagens e traições em curso”. O golpismo ficou tão evidente que assustou
parte dos aliados bolsonaristas. O Instituto Brasil 200, formado por
empresários, se negou a participar: “A forma como surgiu essa manifestação foi
um pouco nebulosa no nosso entendimento. Vimos pessoas com hashtags sobre
invadir o Congresso ou fechar o STF. A nossa orientação é refutar qualquer tipo
de pedido neste sentido”, disse o líder do movimento Flávio Rocha, que também é
presidente do grupo Riachuelo.
O MBL e o Vem Pra Rua abandonaram o Titanic bolsonarista
pelo mesmo motivo. A Fiesp, cujo presidente apoiou Bolsonaro nas eleições,
também não vai encher o pato inflável. Eles estão decepcionados com o mito,
coitados. Liberais se arrependendo de ter apoiado extremistas de direita é um
clássico da história política. Poxa, como eles poderiam imaginar que o político
que passou a vida defendendo tortura, fechamento do Congresso e até fuzilamento
de ex-presidente teria tendências autoritárias quando virasse presidente, não é
verdade?
No domingo, Bolsonaro publicou no Facebook um vídeo de um pastor congolês
maluco dizendo que o presidente brasileiro é um enviado de Deus, e
que não se deve fazer críticas nem oposição a ele. Bolsonaro acrescentou
as seguintes palavras ao compartilhar o vídeo: “Não existe teoria da conspiração,
existe uma mudança de paradigma na política. Quem deve ditar os rumos do país é
o povo! Assim são as democracias.” O recado aos manifestantes não poderia ser
mais claro.
Os organizadores do ato trataram
de trocar as pautas golpistas por republicanas. A defesa da reforma da
previdência, do pacote anticrime de Moro, da Lava Jato e outros temas caros aos
bolsonaristas passaram a fazer parte da lista das pautas oficiais do protesto.
A repentina moderação no tom da convocação foi estratégica. A mudança trouxe de
volta o Brasil 200, mas a maioria dos movimentos já tinha sacado que a
motivação era antidemocrática.
Bolsonaro, que havia cogitado ir pras ruas hoje, desistiu. A participação
direta do presidente em um ato que ataca outros poderes constituídos
configuraria um crime de responsabilidade.
Mas a mudança das pautas não
alterou o espírito golpista dos mais fanáticos. Uma análise feita pelo Estadão utilizando o WhasApp
Monitor, ferramenta criada por pesquisadores da Universidade Federal de Minas
Gerais, mostra que o teor da maioria das mensagens sobre a manifestação é de
ataque ao Congresso e ao STF. Também pipocam ataques contra esses poderes nas redes sociais.
Um dos motes expressos nas
convocações para a manifestação é “O Brasil contra o Centrão”, o que não parece muito
inteligente para quem precisa desses votos para aprovar a reforma da
previdência, que é justamente uma das exigência dos manifestantes. “Ninguém vai
conseguir aprovar reforma chamando todo mundo de ladrão, de traidor, de
comunista” como afirmou Janaína Paschoal, que é contra a manifestação e até
apelou para o amor de Deus.
Como tudo o que envolve o
bolsonarismo, o ataque ao Centrão é esquizofrênico. Bolsonaro passou boa parte
da sua vida parlamentar nele, cumprindo exatamente o mesmo papel fisiologista
que hoje revolta os bolsonaristas. Sua carreira parlamentar foi feita em partidos
como o PP, o PTB e PSC. O próprio PSL sempre foi Centrão antes de virar
governo.
Bolsonaro foi um deputado
governista em praticamente todos os seus mandatos na Câmara. Durante os
governos Collor, Itamar, o primeiro mandato de FHC e os dois mandatos de Lula, votou a favor do governo na maioria das votações. Em
todo esse tempo, jamais se levantou contra conchavos partidários e, durante
oito anos, foi mais fiel ao governo Lula do que muito deputado petista. Ele
chegou até a fazer campanha para que o comunista Aldo Rebelo ou o
ex-guerrilheiro Genoino — “homens competentes”, segundo ele — assumissem o
Ministério da Defesa.
Durante discurso para empresários
na Firjan nesta semana, Bolsonaro afirmou que
o “grande problema do Brasil é a nossa classe política”. Sim, o político do
Centrão que colocou seus três filhos na política e distribuiu empregos para
parentes e amigos em gabinetes de políticos está reclamando da classe política.
Parte dos caminhoneiros que ainda
está com Bolsonaro entendeu muito bem qual é o espírito da manifestação.
“Estamos aí com uma gangue, o câncer do Brasil chamado Congresso Nacional,
engessando, impedindo o presidente de trabalhar”, disse José Raymundo Miranda,
caminhoneiro que é líder da Associação Nacional de Transporte do Brasil, em
áudio ao qual a Folha teve acesso. Ele está organizando um “cerco” de
caminhões no Congresso. “O ideal é todos os caminhoneiros partirem para
Brasília, fazerem um cerco. Quero ver se eles conseguem guinchar um monte de
carro desses. Fechar aquele Congresso, rodear e sitiar aquele povo ali dentro”,
afirmou Miranda no áudio enviado para grupos de caminhoneiros no Whatsapp.
Um outro caminhoneiro de Minas
Gerais gravou vídeo convocatório para a manifestação dizendo que “o consumidor
não tem dinheiro para comer. E vem essa turma do centrão lá em Brasília não
deixando Bolsonaro consertar o que precisa ser feito no país”. Como se vê, os
apoiadores do presidente entenderam exatamente do que se trata esse protesto.
A manifestação vai servir para
mostrar qual o tamanho da base popular bolsonarista capaz de apoiar um
auto-golpe. Se as ruas encherem, Bolsonaro seguirá firme no seu projeto
autocrático, mas continuará isolado politicamente. Sobrará apenas o apoio do
maluco da Virgínia. O que ele fará com a sua sanha golpista inflada pelo
possível sucesso da manifestação? Vai fechar o Congresso? Vai mandar um cabo e
um soldado para o STF? Ou ele acredita que os parlamentares vão passar a fazer
tudo o que o Executivo mandar por causa de uma minoria nas ruas insuflada pelo
presidente?
Se houver baixa adesão popular,
Bolsonaro será obrigado a diminuir seu ímpeto autoritário caso queira completar
o mandato, o que me parece bastante improvável. Nesses cinco meses já ficou
claro que a rejeição a todas as mediações democráticas não é circunstancial,
mas um projeto de governo. Qualquer que seja o resultado da manifestação, o
Brasil continuará vivendo esse pesadelo.
João Filho | The Intercept Brasil
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