A operação para impor uma
«solução final» do problema palestiniano dirigida pelos EUA, Israel e
Arábia Saudita está a adquirir uma envergadura que escapa à comunicação mainstream e
também às mais importantes instâncias internacionais.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
A operação para impor uma «solução
final» do problema palestiniano dirigida pelos EUA, Israel e Arábia
Saudita está a adquirir uma envergadura que escapa à comunicação mainstream –
o que não acontece por acaso – e também às mais importantes instâncias
internacionais, sobretudo à ONU.
Mais alguns passos foram dados em
dias recentes, agora que faltam duas semanas para a «conferência de
paz» de Manamá (Bahrein), iniciativa que os organizadores pretendem
transformar no início de um caminho irreversível – e fatal para os direitos dos
palestinianos.
Um dos passos com enorme
significado, porque traduz uma alteração de forças com peso na cena
internacional, é a mudança de posição da Índia na ONU. Confortado com o reforço
da sua vasta maioria nacionalista e populista, o primeiro-ministro Narendra
Modi transformou a sua relação com Israel, que já era especial porque
sustentada na esfera militar, num apoio internacional aos desígnios do Estado
sionista e na ruptura com as estruturas que representam os palestinianos.
Motivo alegado: a gestão da Faixa de Gaza pelo Hamas, um grupo «terrorista».
Um pretexto que dá para tudo e,
sobretudo, carregado de coerência porque é invocado por alguém que tem vindo a
reforçar posições políticas internas recorrendo ao terrorismo contra os
opositores.
Outro passo dado, embora num
contexto mais geral cujos contornos são ainda difusos, foi o encontro secreto
realizado em Israel entre os conselheiros de segurança dos Estados Unidos, John
Bolton, da Rússia, Nikolai Patruchev, e do Estado sionista, Meir Ben-Shabbat. Diz-se que a Síria e o Irão foram os temas centrais da reunião, mas não é
possível abordar estes assuntos fora de um contexto regional onde se encontra,
em destaque, a questão palestiniana.
A Rússia anunciou que não
participará na «cimeira» de Manamá e que defende o direito internacional;
mas também se vem percebendo que existe pouca vontade de Moscovo para
confrontar Israel com as suas constantes violações do mesmo direito
internacional.
O «direito de anexação»
Outro passo, este com uma
repercussão mais imediata, é a luz verde dada pelos Estados Unidos à anexação
do território da Cisjordânia por Israel. Não há outra leitura a fazer da
entrevista concedida ao The New York Times pelo embaixador
norte-americano em Israel, David Freeman, um dos autores do chamado «Acordo do
Século», a solução da questão palestiniana que os Estados Unidos e Israel
pretendem impor.
Freeman deu a entrevista como
«embaixador», pelo que as suas palavras não podem ser interpretadas a título
pessoal. E o diplomata, ex-advogado do grupo do grande empresário Donald Trump,
declarou textualmente que Israel «tem o direito» de anexar os territórios
da Cisjordânia, ainda que «não todos».
Estas palavras devem então ser
interpretadas no contexto em que foram proferidas para que se entendam todos os
mecanismos em desenvolvimento através de uma operação montada de maneira
integrada.
O «Acordo do Século», ainda não
divulgado oficialmente, parece ser apenas parte de uma engrenagem com impacto
regional e global onde se jogam interesses transnacionais de biliões de
dólares; e onde os palestinianos entram, no final, como uma parcela de
mão-de-obra barata ou mesmo escrava. Business as usual.
O «Acordo do Século» foi
redigido por quatro pessoas: Jared Kushner, genro e conselheiro do presidente
Donald Trump para o Médio Oriente; Jason Greenblatt, ex-advogado do grupo Trump
e enviado especial do presidente norte-americano para negociações internacionais;
David Freeman, ex-advogado do grupo Trump e embaixador dos Estados Unidos em
Israel; e Avi Berkowitz, chefe de gabinete de Kushner.
Todos eles são judeus ortodoxos,
sionistas, politicamente ligados à extrema-direita israelita chefiada pelo
Partido Likud de Benjamin Netanyahu. Conclui-se facilmente que o «Acordo do
Século» foi redigido a rogo do presidente dos Estados Unidos, dos lobbies
sionistas mundiais e do primeiro-ministro em exercício de Israel. Eles definem
portanto as normas às quais os palestinianos terão de dar o seu «acordo».
Obviamente, e por muito que o
império distribua arbitrariedade pelo planeta, as coisas ainda não funcionam
assim.
Dinheiro, muito dinheiro…
Por isso o
«acordo» contempla «incentivos», modernices de encher o olho, promessas que
poderão parecer irrecusáveis e dinheiro a jorrar sem conta.
É aí que entram, com parte de leão, a Arábia Saudita e os seus satélites da península do petróleo, embora estejam igualmente presentes no pilar político da mistificação. Também Marrocos é chamado a integrar este grupo.
Parte dos fundos disponibilizados
por estes e outros países interessados em investir nesta aventura de mil e uma
noites destina-se, como já é sabido, a financiar as nações de acolhimento da
diáspora palestiniana em troca da «nacionalização» dessas comunidades,
isto é, integrando os refugiados como cidadãos naturalizados.
Apagar-se-iam do mapa mais de
cinco milhões de refugiados palestinianos, a quem o direito internacional
garante o direito de regresso à Palestina de onde eles e respectivas famílias
têm sido expulsos ao longo de mais de setenta anos.
Também já são conhecidas as
intenções de criar um grande polo económico, industrial e tecnológico na costa
mediterrânica da Península do Sinai, em torno da cidade egípcia de El-Arish, para
onde seria canalizada a população da Faixa de Gaza – segundo os planos dos
autores do «Acordo do Século».
Outra fatia do bolo
destinar-se-ia a comprar terras e estruturas da Cisjordânia, de modo a proceder
ao «desenvolvimento e modernização» do território.
Em termos crus e directos,
trata-se de tentar expulsar a maioria dos habitantes da Cisjordânia
comprando-lhes as casas e as terras para instalar novas vagas de colonos
oriundos de Israel e, sobretudo, do exterior. Seria uma espécie de anexação
«benévola», em paralelo com a força bruta, para tentar amenizar a ocupação
definitiva.
Neom, a escravatura «futurista»
A operação, porém, tem mais
requinte: os novos exilados palestinianos, já de si recompensados por deixarem
a pátria, ainda contariam com a vantagem suplementar de terem para onde ir, já
não qualquer país árabe vizinho mergulhado em dificuldades mas sim para um
verdadeiro sétimo céu ou oitava maravilha do mundo: a Cidade-Estado de Neom,
onde poderão adquirir uma nova nacionalidade.
Neom será o diamante do «Acordo
do Século», uma mega e robotizada cidade nascida de raiz no deserto das arábias
confinando com o Mar Vermelho, em redor da cidade saudita de Tabuk no noroeste
do país; uma nova cidade para funcionar em regime e território verdadeiramente multinacionais
e independentes.
A ideia saiu da cabeça
sobredotada do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Sultan, a mesma de onde
brotaram os métodos para fazer desaparecer o jornalista Jamal Kashoggi, no
consulado saudita de Istambul.
O plano geral da cidade de Neom –
«Neo», prefixo latino para «novo» e Mda palavra árabe
«Mostaqbal» (futuro), portanto «Novo Futuro» – foi apresentado pelo
próprio Bin Salman há dois anos num solene evento em Riade; entretanto ganhou
contornos que o adaptam ao «Acordo do Século».
Será um grande polo tecnológico,
industrial, de inteligência artificial e turístico com uma área semelhante à da
Bélgica, que incluirá território saudita, jordano e egípcio ligado por uma
ponte sobre o Golfo de Aqaba. Do lado egípcio ficará sensivelmente a meio da
Península do Sinai e a pouco mais de 200 quilómetros a
sul do novo polo económico de El-Arish.
Neom, cidade saída da banda
desenhada de ficção científica, terá um governo autónomo, sistema judicial
independente e leis próprias, sobretudo laborais, prevendo, por certo, medidas
de escravatura dourada para acolher imigrantes de todo o mundo, sobretudo os
novos exilados da Cisjordânia. Base de investimento: 500 mil milhões de
dólares.
A gestão do nascimento da urbe
foi atribuída a Klaus Kleinfeld, cidadão alemão, presidente da Alcoa,
ex-presidente da Siemens e muito bem visto pelos círculos sionistas dominantes.
Como se perceberá em qualquer mapa, embora a Cidade-Estado não tenha ainda fronteiras
definidas – tal como o Estado sionista – poderá confinar com Israel.
Final feliz e em «paz»
Tudo parece, pois, encaixar-se,
na direcção de um final muito feliz para o problema dos palestinianos, que
assim deixariam quase completamente de existir. Estaria feita a
«paz» prevista no «Acordo do Século».
É certo que tanta perfeição gerou
já os seus cépticos, mesmo entre os apoiantes. Um deles é o secretário de
Estado norte-americano, Michael Pompeo, que se declarou «não optimista» e
acabou por ser convidado pelo presidente e respectivo genro a não repetir tal
estado de espírito.
O direito internacional, esse não
passa por aqui. A operação em movimento viola, ponto por ponto, tudo quanto as
Nações Unidas têm estabelecido desde 1947 em relação ao problema
israelo-palestiniano.
As normas previstas ridicularizam
qualquer conceito de negociação, pretendem extinguir um povo da face da Terra,
promovem limpezas étnicas, espezinham os direitos humanos, obedecem a uma ideia
única: o dinheiro e a força tudo conseguem.
Nada do que está previsto é
oficial, portando o direito internacional continua a existir e, formalmente, a
prevalecer. Coisas deste género, embora não por estas palavras, costumam ser
ditas pelo secretário-geral das Nações Unidas à medida que o presidente dos Estados
Unidos vai mudando a embaixada de Telavive para Jerusalém ocupada, reconhece a
anexação dos Montes Golã e o embaixador dos Estados Unidos em Israel diz que
este país tem «o direito» de anexar a Cisjordânia.
Talvez fosse altura de o eng.
António Guterres abandonar o estado contemplativo enquanto tudo vai acontecendo
em seu redor. É inegável que nada do que foi planeado em Washington e Telavive
altera o direito internacional; mas mina-o, enfraquece-o,
«desactualiza-o» perante tanta «modernidade», tanta «inovação», tanta
«conciliação».
As Nações Unidas têm nas suas
mãos a sobrevivência, os direitos e dignidade de um povo – e também os
mecanismos para cumprir as tarefas que lhe competem nesta matéria. E se a ONU
não tentar por certo nada irá conseguir, pregando mais um prego no próprio
caixão.
O pior caminho é fazer de conta
que nada está a acontecer. Está tudo a acontecer, a operação é avassaladora,
tem por detrás os interesses que mandam efectivamente no mundo. À ONU cabe
travá-los.
Os palestinianos e todos quantos
os apoiam solidariamente através do mundo vão continuar a resistir, porém cada
vez mais isolados e carentes de meios institucionais. É um combate de David
contra um Golias rico, bem armado, robotizado e, até ver, absolutamente impune.
Foto: Donald Trump e Benjamim
Netanyahu | Créditos Debbie Hill Pool/EPA / Agência Lusa
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