Uma Guerra Fria 2.0 pode estar a
caminho: depois de sanções dos EUA a Huawei, Xi Jinping e Putin aprofundam
cooperação. Planos de integrar a Euroásia são ameaça a hegemonia de Washington —
e podem alterar a balança geopolítica
Pepe Escobar | Outras Palavras | Tradução: Gabriela
Leite
Um fato extraordinário começou
com uma caminhada curta em São Petersburgo
Depois de um passeio, eles
pegaram um barco no Rio Neva, visitaram o lendário navio de cruzeiro Aurora, e
deram um pulo no Hermitage, para examinar algumas das obras-primas do
Renascimento. Tranquilos, calmos, plenos, a todo o momento parecia que estavam
mapeando as entradas e saídas de um novo, emergente mundo multipolar.
O presidente chinês Xi Jinping
foi o convidado de honra do presidente russo Vladimir Putin. Foi a oitava
viagem de Xi à Rússia desde 2013, quando anunciou a Nova Rota da Seda, ou Iniciativa
do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês).
Primeiro, se encontraram em
Moscovo, assinando diversos acordos. O mais importante foi uma grande surpresa:
o compromisso de desenvolver o comércio bilateral e os pagamentos
transfronteiriços usando o rublo e o yuan, evitando o dólar norte americano.
Então, Xi visitou o Fórum
Internacional Económico de São Petersburgo (SPIEF, na sigla em inglês),
principal reunião de negócios da Rússia, absolutamente essencial para quem
quiser entender os mecanismos hiper complexos inerentes à construção da
integração da Euroásia. Abordei algumas das principais discussões e mesas
redondas do SPIEF, aqui.
Em Moscovo, Putin e Xi assinaram
duas declarações conjuntas — cujos conceitos chave, crucialmente, são “parceria
abrangente”, “interação estratégica” e “estabilidade global estratégica”.
Em seu discurso em São
Petersburgo, Xi salientou a “parceria estratégica abrangente”. Enfatizou que a
China e a Rússia estão ambas comprometidas com o desenvolvimento verde,
sustentável e de baixo carbono. Descreveu a expansão da Nova Rota da Seda como
“consistente com a agenda das Nações Unidas de desenvolvimento sustentável”, e
elogiou a interconexão do projeto com a União Económica Eurasiática (EAEU, na
sigla em inglês). Enfatizou como tudo isso possui consistência com a ideia de
Putin de uma Grande Parceria Eurasiática. Exaltou o “efeito sinergético” da
Rota, ligado à cooperação Sul-Sul.
Crucialmente, Xi enfatizou que a
China “não vai buscar desenvolvimento às custas do meio ambiente”; que o
país “vai implementar o acordo climático de Paris”; e que estão “prontos para
compartilhar a tecnologia 5G com todos os parceiros”, a caminho de uma mudança
fundamental no modelo de crescimento económico.
E quanto à Guerra Fria 2.0?
Era óbvio que isso estava sendo
lentamente fermentado nos últimos seis anos. Agora, o negócio está em aberto. A
parceria estratégica abrangente Rússia-China está prosperando: não como um
tratado aliado, mas como um caminho sólido rumo à integração da Eurásia e à
consolidação de um mundo multipolar.
O unipolarismo — via sua matriz
de demonização — primeiro acelerou o protagonismo da Rússia na Ásia. Agora, a
guerra comercial travada pelos EUA facilitou a consolidação da Rússia como principal
parceiro estratégico da China.
É bom que o ministro de Relações
Exteriores da Rússia esteja pronto para repudiar afirmações quase diárias que
virão, por exemplo, do presidente do Estado-Maior
Conjunto dos Estados Unidos, o general Joseph Dunford, quando alega
que Moscovo pretende usar armas nucleares não-estratégicas. É parte de um
processo ininterrupto — agora em marcha rápida — de gerar histeria ao
aterrorizar os aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) com
a “ameaça” russa.
É melhor que Moscovo esteja pronto
para se esquivar e neutralizar as resmas de relatórios como as últimas da RAND Corporation,
entidade que desenvolve pesquisas para o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos, que delineia — como não? — uma Guerra Fria 2.0 contra a Rússia.
Em 2014 a Rússia não reagiu às
sanções impostas por Washington. Naquele momento, bastava simplesmente ameaçar
uma inadimplência de U$ 700 biliões (R$ 2,715 triliões) da dívida externa. Isso
teria aniquilado as sanções.
Agora, há amplo debate dentro dos
círculos de inteligência russos sobre o que fazer no caso de Moscovo enfrentar a
expectativa de ser cortado do sistema de compensação financeira CHIPS-SWIFT.
Com poucas ilusões sobre o que
pode se passar na reunião do G20 em Osaka, no fim do mês, em termos de um
avanço entre as relações EUA-Rússia, fontes internas me disseram que o CEO da
Rosneft, Igor Sechin, está preparado para mandar uma mensagem mais “realista” —
se as pressões finalmente vierem a impelir.
Sua mensagem à União Europeia, no
caso, seria cortá-los fora, e ligar-se à China de vez. Dessa maneira, o
petróleo russo seria totalmente redirecionado da UE à China, tornando os
europeus completamente dependentes do Estreito de Ormuz.
Pequim, por sua parte, parece ter
finalmente compreendido que a atual ofensiva do governo de Trump não é uma mera
guerra comercial, mas um ataque estabelecido ao seu milagre económico,
incluindo uma ação orquestrada para cortar a China de grandes faixas da
economia mundial.
A guerra contra a Huawei — a
galinha dos ovos de ouro da supremacia 5G chinesa — foi identificada como um
ataque à cabeça
do dragão. O ataque à Huawei não diz respeito apenas ao mega hub tecnológico
de Shenzhen, mas ao Delta do Rio das Pérolas inteiro: um ecossistema de 3 triliões de yuan (1,7 triliões de reais), que fornece as porcas e parafusos da
cadeia de suprimentos chinesa para as fabricantes de alta tecnologia.
Entrada no Anel de Ouro
Nem o avanço tecnológico da
China, nem o conhecimento hipersónico sem igual da Rússia causaram indisposição
à estrutura dos Estados Unidos. Se há respostas, elas deveriam vir das elites excepcionalistas.
O problema, para os EUA, é a
emergência de um rival competidor admirável na Eurásia — e, pior ainda, uma
parceria estratégica. Esse fato jogou essas elites no modo de Suprema Paranoia,
que está fazendo o mundo inteiro de vítima.
Como contraste, o conceito de um Anel
de Ouro de Grandes Poderes Multipolares tem sido considerada, na qual
Turquia, Iraque, Irão, Paquistão, Rússia e China poderiam providenciar um
“cinturão de estabilidade” para o Rimland do
Sul da Ásia.
Discuti variações dessa ideia com
analistas russos, iranianos, paquistaneses e turcos — mas parece ser demasiado
pensamento positivo. Todas essas nações admitem que o estabelecimento do Anel
de Ouro seria bem-vinda; mas ninguém sabe para que lado o primeiro-ministro da
Índia, Narendra Modi, penderia — intoxicado como está com os sonhos de status
de Big Power, no cerne da mistura indo-pacífica dos Estados Unidos.
Talvez seja mais realista
presumir que, se Washignton não for à guerra contra o Irão — pois o Pentágono
estabeleceu que isso seria um pesadelo –, todas as opções ainda estão se
alterando na mesa, do Mar do Sul da China ao Indo-Pacífico mais amplo.
O Estado Profundo não
vai hesitar em liberar prejuízos concêntricos na periferia da Rússia e da China
e, então, tentar avançar na desestabilização de seu coração a partir de dentro.
A parceria estratégica Rússia-China gerou uma ferida profunda: dói — e como! —
estar de fora da Eurásia.
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