O negociador da transferência de
soberania de Macau para a China, José Henriques de Jesus, lembra, em entrevista
à Lusa, que a discussão sobre este território quase desconhecido de Lisboa e de
Pequim teve vários episódios pitorescos, e nem sempre agradáveis.
"Nós, muitas vezes dizíamos:
em Pequim, conhece-se tão mal Macau como em Lisboa", contou à Lusa o
economista, nomeado pelo então primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva, para
integrar a delegação encarregada de negociar a transferência de administração
de Macau para a China que daria origem à declaração conjunta assinada em 1987.
Chefiada pelo embaixador Rui
Medina, a equipa incluía ainda o embaixador João de Deus Ramos, que tinha
aberto a embaixada em Pequim após o estabelecimento das relações diplomáticas
com a República Popular da China em 1979), e o conselheiro de Mário Soares,
Carlos Gaspar.
"A negociação era entre
Portugal e a China, mas o sucesso havia de ser medido em Macau, foi sempre em
Macau que pensei", adiantou Henriques de Jesus, considerando que o
resultado "foi bom" porque apesar de a presença portuguesa
"nunca ter sido muito forte em Macau", Portugal soube ultrapassar as
dificuldades com "força anímica".
Henriques de Jesus que tinha
feito parte do governo do general Melo Egídio (1974-1981) como secretário
adjunto do Governo para os assuntos económicos entre 1979 e 1981, descreve
esses anos como "entusiasmantes" e explica que o seu trabalho em
Macau começou com uma folha A4, onde tentou cruzar pontos fracos e pontos
fortes.
"Quem chega hoje a Macau não
imagina como era nos anos 70", assinala, destacando os esforços
desenvolvidos na ação política e governativa nesse período, o que permitiu
"o grande salto" que "foi o princípio do desenvolvimento de Macau".
Regressou alguns anos mais tarde
para negociar o futuro de Macau num processo exigente, que durou seis meses,
envolveu dez idas do grupo de trabalho a Pequim, aventuras logísticas
"pitorescas" e "alguns episódios não muito agradáveis".
Se no quadro negocial, os interesses
portugueses "eram, não exatamente coincidentes, mas convergentes" com
os interesses da China, que tinha adotado o princípio "um país, dois
sistemas, facilitando a negociação, não deixaram de ser registados
"incidentes mais conflituosos".
Este começam, conta o antigo
economista e ex-colega universitário de Cavaco Silva, quando os chineses
começam por apresentar "praticamente uma tradução em português dos acordos
com Hong Kong", o que o lado português não podia aceitar.
Enquanto se esperava uma nova
proposta, Henrique de Jesus é confrontado com o que descreveu como uma
"tradução mais perfeita" das iniciativas chinesas.
"Para os chineses era mais
fácil: já fizemos as negociações com os outros [o Reino Unido com quem antes
tinham negociado a transferência de Hong Kong], agora vamos fazer com estes, o
nosso problema é o mesmo, apresentamos a mesma coisa", lembrou.
Mas não esteve pelos ajustes.
"Eu disse: eu não embarco. Se não fosse uma atitude de firmeza, tínhamos
embarcado para mostrar aos chineses apenas uma tradução mais perfeita dos
documentos que nos tinham apresentado", desabafa.
Acabou por não ser isso que
aconteceu. "Refizemos os documentos todos à nossa maneira", proposta
que foi posteriormente -- essa, sim -- negociada, explicou.
Outra ocasião em que os chineses
"foram muito desagradáveis", deveu-se à data da transferência de
soberania, que Portugal queria avançar no tempo e demarcar da data da
transferência de soberania de Hong Kong, mas que a China recusava deixar
ultrapassar o ano 2000.
"Vieram com o discurso de
'colonialistas, fascistas, exploradores'. Nós ouvimos e retorquimos: vocês não
têm vergonha de falar nisso, quando nos éramos um milhão quando chegamos a
Macau? E vocês quantos eram? Aí, acabou a conversa", sorri.
No fim acabou por ser escolhido o
dia 19 de dezembro do ano de 1999, para não deixar passar o milénio.
A questão da nacionalidade foi
outro entrave negocial em que "foi preciso ser bruto". Os portugueses
não abdicavam de manter a nacionalidade portuguesa para os que já a tinham -- e
que eram fundamentalmente chineses. A mesma "firmeza" foi exercida no
que diz respeito à liberdade de culto.
Em todo o caso, Henriques de
Jesus enfatiza que Portugal teve sempre relações com a China através de Macau
"e de uma maneira intensa", apesar de o país só ter formalmente
estabelecido relações diplomáticas com a República Popular da China em 1979.
O economista acredita até que
essa formalização só não aconteceu antes porque a China ainda não estavam
preparara para o diálogo com Portugal sobre a transferência de Macau.
"Há situações em que não
falamos para não ter de responder e eles não criaram o canal normal de diálogo
para não terem de responder", defende.
Descreve Macau na atualidade como
"uma terra onde as pessoas vivem bem" e "têm liberdade de
expressão", mas deixa um alerta quanto ao jogo: "A grande
concentração da economia num produto pode vir a ter problemas e já tem, em
termos sociais, desde que aconteceu a intensificação de licenças aos casinos.
Neste momento Macau é um casino, à exceção de uma parte que tem sido conservada
e valorizada pelos chineses".
Situação que encara até "com
um sorriso", recordando que foi difícil alcançar essa salvaguarda nas
negociações, porque os chineses aceitavam a palavra "conservação" do
património, mas nunca aceitaram a "valorização"
"Agora não há quem mais
valorize o património do que os chineses", remata.
Lusa | em Notícias ao Minuto
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