Abalos desta semana indicam: há
grande recessão à vista. Mas não se discutem as causas: os rios de dinheiro
transferidos aos bancos, após 2008. Eles quebraram Estados, multiplicaram
desigualdade e abriram caminho para a extrema direita
Chris Hedges | Outras Palavras | Tradução: Antonio
Martins
Alguns dados deste texto são
relativos aos Estados Unidos. Mas no período tratado – o pós-crise de 2008 –, o
mundo todo transferiu dinheiro para o sistema bancário, para salvá-lo da
falência. O total chega a 22 mil dólares por habitante do planeta. Imagine
quanto esta soma poderia ter oferecido para as 2,5 bilhões de pessoas abaixo da
linha de pobreza. E quanto teria gerado em vendas de produtos e serviços, que
teriam sido criados. Em vez disso, todo o dinheiro foi para os bancos. Desde
2008, o salário médio de um executivo financeiro subiu 328%, contra 8% para os
demais trabalhadores. Isso alimentou o ressentimento que impulsionou, junto
como medo e a xenofobia, os partidos de extrema direita (muitos dos quais à
época nem existiam), dando-lhes a projeção e os governos que têm hoje. (Roberto
Savio)
Durante a crise
financeira de 2008, os bancos centrais do mundo injetaram trilhões de
dólares de dinheiro fabricado no sistema financeiro global. Este dinheiro
fabricado criou uma dívida mundial de US$ 325 trilhões, mais que três vezes o
PIB do mundo. O dinheiro fabricado foi entesourado por bancos e corporações,
emprestado pelos bancos a taxas de juros predatórias, usado para gerar juros
sobre dívidas impagáveis ou gasto recomprando ações, o que garantiu milhões
para as elites. O dinheiro fabricado não foi investido na economia real. Não
houve produção ou venda de bens. Os trabalhadores não foram reconduzidos à
classe média, com rendas sustentáveis, benefícios e aposentadorias. Não se
lançaram projetos de infraestrutura. O dinheiro fabricado reinflou bolhas
financeiras gigantescas, construídas sobre dívidas, num sistema financeiro
fatalmente doente e fadado ao colapso.
O que deflagrará o próximo crash? Os
13,2 trilhões de dólares de dívidas insustentáveis das famílias
norte-americanas? O US$ 1,5 trilhão em dividas estudantis insustentáveis? Os
bilhões que Wall Street investiu na extração de petróleo por fragmentação de rochas1,
que já
consumiu US$ 280 bilhões a mais do que gerou? Quem sabe? O certo é que
um crash financeiro global, que tornará pequena a crise de 2008, é
inevitável. E desta vez, com as taxas de juros próximas de zero, as elites não
têm plano de fuga. A estrutura financeira irá se desintegrar. A economia global
mergulhará em espiral de abismo. A raiva de uma população traída e empobrecida
vai, caso não surja uma alternativa, empoderar os demagogos de direita. Eles
prometem vingança contra as elites globais, renovação moral e um ressurgimento
do nativismo, a volta a uma “era de ouro” mítica em que imigrantes, mulheres e
negros sabiam seu lugar e um fascismo cristianizado.
A crise financeira de 2008, como
aponta Nomi
Prins, economista e colunista no Truthdig, “converteu
os bancos centrais numa nova classe de intermediários muito poderosos”. Eles
“saquearam os tesouros nacionais e acumularam trilhões em riqueza, para se
tornar política e economicamente onipotentes. Em seu livro Collusion: How
Central Bankers Rigged the World[“Conluio: como os Bancos Centrais
fraudaram o mundo”], ela escreve que os dirigentes destes bancos e as maiores
instituições financeiras do mundo manipulam de maneira fraudulenta os mercados
globais e usam dinheiro fabricado – ou “falso”, em suas palavras – para inflar
bolhas de ativos e obter lucros de curto prazo, enquanto nos conduzem a “um
perigoso precipício financeiro”.
“Antes da crise, eles estavam
apenas dormindo no ponto, em especial o Federal Reserve (Fed), dos Estados
Unidos, que é supostamente o principal regulador dos grandes bancos do país”,
disse ela quando nos encontramos em Nova York. “O trabalho horrível do Fed é a
causa da crise financeira. Ele tornou-se um desregulador, em vez de regulador.
Na sequência da crise financeira, a solução para para salvar a economia de uma
grande depressão ou recessão – seja qual for a terminologia usada em cada
momento – foi fabricar trilhões e trilhões de dólares a partir de um éter
eletrônico”.
O Federal Reserve entregou cerca
de US$ 29 trilhões, de seu dinheiro fabricado, para os bancos norte-americanos,
segundo pesquisadores
da Universidade de Missouri. Vinte e nove trilhões de dólares! Só
nos EUA, isso teria garantido acesso gratuito à universidade, para todos os
estudantes e assistência universal de saúde, reparado a infraestrutura
degradada, promovido a transição para energias limpas, perdoado as dívidas dos
estudantes, elevado salários, resgatados os proprietários de imóveis
endividados, constituído bancos públicos para investir a taxas de juros
reduzidas nas comunidades, oferecido uma renda básica garantida para todos e
organizado um programa maciço de empregos para os desempregados e
subempregados. Dezesseis milhões de crianças não iriam para a cama famintas. Os
que sofrem distúrbios mentais e os sem-teto – 553.742
norte-americanos estão nesta condição – não seriam deixados nas ruas
ou trancafiados em prisões. A economia reviveria. Em vez disso, US$ 29 trilhões
em dinheiro fabricado foi entregue para gangsters financeiros que estão a ponto
de fazer a maior parte desta soma evaporar e de nos mergulhar em uma depressão
semelhante ao crash
global de 1929.
Uma cláusula de emergência na Lei
do Federal Reserve, de 1913, permite que o banco ofereça liquidez a um sistema
bancário estressado. Mas o Federal Reserve não parou, após a criação de algumas
centenas de bilhões de dólares. Ele inundou os mercados financeiros com níveis
absurdos de dinheiro fabricado. O efeito foi criar aparência de que a economia
estava revivendo. E para os oligarcas, que tinham acesso a este dinheiro
fabricado, ao contrário de nós todos, ela estava mesmo.
O Fed cortou as taxas de juros
para próximo de zero. Alguns bancos centrais na Europa instituíram taxas de
juros negativas, o que significava que pagariam aos interessados em tomar
empréstimos. O Fed, num truque inteligente de contabilidade, permitiu até mesmo
que os bancos em dificuldades usassem estes empréstimos sem juros para comprar
títulos do Tesouro norte-americano. Os bancos devolviam os bônus ao Fed e
recebiam 0,25% de juros do Fed. Em poucas palavras, os bancos tomavam
empréstimos sem juro algum no Fed e na sequência recebiam juros do Fed sobre o
dinheiro que haviam tomado emprestado… O Fed também comprou dívidas e ativos
tóxicos dos bancos. Como as autoridades do Fed podiam fabricar tanto dinheiro
quanto quisessem, não importava como gastavam.
“É como ir a um bazar de garagem
de alguém e dizer: ‘Quero aquela bicicleta sem rodas. Vou pagar 100 mil dólares
por ela’. Sabe por que? Porque o dinheiro não é meu!’”, diz Prins.
“Estas pessoas manipularam o
sistema” ela prossegue, sobre os banqueiros. “Há dinheiro fabricado no topo da
pirâmide. É usado para inflar ativos financeiros, inclusive ações. Tem de vir
de algum lugar. Como o dinheiro tornou-se barato, há mais crédito, entre as
corporações. Há mais dinheiro emprestado, entre os governos”.
“A quem você recorre, para
pagá-lo?”, ela pergunta. “Você recorre à nação. Você recorre à economia. Você
extrai dinheiro da economia de base, dos programas sociais. Você impõe
‘austeridade’.”
Dado o espantoso volume de
dinheiro fabricado que precisa ser pago, os bancos constituem represas de
dívidas cada vez maiores. É por isso que, quando você atrasa o pagamento de seu
cartão de crédito, a taxa de juros sobe para 28% [no Brasil, 300,1%,
em junho]. É por isso que quando você declara falência pessoal [recurso não
existente no Brasil, onde há 63,2
milhões de pessoas inadimplentes, ou 50% da população economicamente ativa], você continua obrigado a pagar seu empréstimo
estudantil. É por isso que os salários estão estagnados ou caíram, enquanto os
custos, dos planos de saúde aos remédios, às tarifas bancárias e aos aparelhos
essenciais estão disparando. A servidão provocada pelas dívidas cresce para
alimentar o monstro, até que, como aconteceu na crise das
hipotecas subprime, o
sistema predatório desaba devido a calotes em massa. Como em todas as bolhas
financeiras, chegará um dia em que, por exemplo, os lucros de setores como o fracking, projetados
de maneira selvagemente otimista, não serão mais uma desculpa efetiva para
continuar a injetar dinheiro em negócios falidos, liquidados por dívidas
impagáveis.
“As 60 maiores empresas de
exploração e produção não geram dinheiro suficiente para cobrir suas operações
e despesas de capital”, escreve Bethany McLean sobre o setor de fracking em
um artigo intitulado “A próxima crise financeira esconde-se sob a
terra”, que saiu no New York Times. No agregado, de meados de 2012 a meados de 2017, eles
tiveram um fluxo negativo de caixa de US$ 9 bilhões por trimestre”.
O sistema financeiro global é uma
bomba-relógio em tiquetaque. A questão não é se ele explodirá, mas quando. E
nesse momento, a incapacidade dos especuladores para usar o dinheiro fabricado
para encobrir o debate vai desencadear desemprego maciço, altos preços para
importações e serviços básicos e uma desvalorização monetária que tornará o
dólar quase sem valor, ao ser abandonado como moeda
de reserva global. Este tsunami financeiro manufaturado transformará
os Estados Unidos, hoje uma democracia já falida, num Estado policial
autoritário. A vida será muito barata, especialmente a dos vulneráveis –
trabalhadores sem documentos, muçulmanos, pretos pobres, mulheres e meninas,
ativistas anticapitalistas e anti-imperialistas rotulados como agentes de
potências estrangeiras. Estes serão demonizados devido ao colapso e
perseguidos. As elites, numa oferta desesperada para agarrar-se a seu poder sem
controle e riqueza obscena, irá estripar o que resta dos Estados Unidos.
1 Método
também conhecido como fracking, o meio mais destrutivo e tóxico para obter
petróleo. Ver
mais.
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