O dia começou cedo. Eram umas
quatro da manhã quando saímos da casa da família timorense onde estávamos
alojados - eu, que estava em Timor peloDiário Digital, jornal online que tinha
então pouco mais de um mês de vida, e o Albano Matos, veterano repórter do
Diário de Notícias, falecido em 2015, uma asa protetora para esta recém
jornalista, então com 23 anos. É do Albano a primeira memória que tenho desta
viagem. Estávamos no aeroporto e, pela primeira vez, caiu-me a ficha: "Vou
para Timor, vou mesmo para Timor". Deve ter-se notado. "Estás com
medo?", perguntou o Albano. Sorri-lhe, sem responder. Respondeu ele:
"Não faz mal".
Susete Francisco | Diário de Notícias
| opinião
Na noite que antecedeu o
referendo tinham-se ouvido tiros pela cidade o o que estava para vir nas horas
seguintes era uma verdadeira incógnita. Os sinais dos últimos dias não eram
bons - no domingo anterior (a votação foi numa terça-feira) um membro de uma
milícia pró integração tinha sido morto em Becora, um bairro fortemente
independentista da capital, e sucediam-se os rumores de
possíveis/prováveis/iminentes retaliações das milícias pró Indonésia.
Quando chegámos às primeiras
mesas de voto, ainda as urnas estavam longe de abrir e já havia centenas e
centenas de pessoas nas filas para votar. A apreensão dos últimos dias dera
lugar a uma impressionante calma. É a imagem mais presente que tenho daquele
dia: pessoas a sorrir. Como se as preocupações de ontem estivessem adormecidas
e as de amanhã ainda não encontrassem espaço para existir. Elas estavam lá -
muitos timorenses tinham descido das montanhas, onde se tinham refugiado, e
voltariam para lá depois de votar, com receio das milícias - mas aquele não era
o momento para isso. Os timorenses tinham esperado 24 anos por aquele dia, 24
anos sangrentos. Entre os mais velhos, não faltava quem dissesse que agora já
podia morrer em paz. E isto era dito em português, esse poderosíssimo laço
emocional que é falar a mesma língua.
Em Becora, onde dois dias antes a
tensão era quase palpável, o bairro parecia outro, as pessoas pareciam outras,
estava toda a gente - toda a gente - nas filas para votar. A meio da tarde,
havia mesas onde já não havia ninguém. Já todos tinham votado. Os resultados -
esmagadoramente pró independência - viriam a mostrar que votaram 98% dos
eleitores inscritos.
Apesar de alguns incidentes
esporádicos, aquela foi uma terça-feira relativamente pacífica em Díli. Se ao
início do dia os membros da UNAMET, a força das Nações Unidas designada para
assegurar o referendo, desconfiavam de tanta calmaria, no final, com as urnas
encerradas, também a equipa internacional era, toda ela, sorrisos.
Vinte anos passados sobre aquele
30 de agosto há pormenores que já não retenho do turbilhão daqueles dias, mas
há imagens que não se apagam. Nessa noite, a família que nos alojava foi buscar
uma "relíquia" que guardava há muitos anos, se a memória não me trai,
julgo que enterrada: uma bandeira portuguesa. O que foi impressionante não foi
tanto a bandeira, foi a solenidade com que a trouxeram e mostraram,
impecavelmente dobrada, sem uma ruga. Depois, voltou a ser escondida. O
referendo estava feito, as preocupações do amanhã já tinham espaço para voltar,
eram muitas, e como se veio desgraçadamente a demonstrar menos de uma semana
depois, tinham toda a razão de ser.
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