Garoto foi chicoteado ao tentar
furtar um doce. Em um país que ainda não se livrou do passado escravocrata, a
punição aos negros é brutal — e o Estado muitas vezes não garante o básico. Há
resistência, mas violência não pode ser banalizada
Márcia Acioli | Outras Palavras
Saiu na rádio. Um adolescente de
17 anos foi amordaçado, torturado e chicoteado nu em um supermercado pela
tentativa, TENTATIVA de roubar um chocolate no Supermercado Ricoy em São Paulo.
Não precisou ser anunciado, o adolescente é negro, todos sabíamos.
As cenas vazaram pelas redes
sociais e causaram consternação e revolta. Mais dor a todos os jovens que, como
ele, sofrem diariamente na pele violências múltiplas e impensáveis para um
mundo dito civilizado. A brutalidade nos evidenciou, mais uma vez, que nos
porões das casas grandes ainda existem muitas senzalas e a crueldade está
autorizada por uma cultura impregnada pelo racismo. O fato não é isolado e os
perpetuadores da violência encontram, de alguma forma, ecos em outros casos.
Muitos ainda não esqueceram dos 80 tiros que mataram o músico no Rio de Janeiro
e as inúmeras chacinas que exterminam jovens negros e negras todos os dias.
Causa espanto os pronunciamentos que relativizam a violência. A desumanização
no discurso oficial cultiva um campo propício para tais barbaridades.
“Eu fui num quilombo. O
afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas (arroba é uma medida usada
para pesar gado; cada uma equivale a 15 kg ). Não fazem nada. Eu acho que nem
para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com
eles” (Jair Bolsonaro, 2017)
Enquanto isso, as unidades de
internação estão lotadas com meninos e meninas que “só queriam um chocolate”;
viver a infância com as suas possibilidades: com doces, com brincadeiras, com
afeto, convivência familiar e comunitária, educação de qualidade, cultura,
saúde e segurança.
Segundo o Levantamento
Anual do Sinase, publicado em 2018, referente ao ano de 2016, 50% dos atos
infracionais cometidos por adolescentes em cumprimento de alguma medida são
roubo (47%) e furto (3%) e o tráfico corresponde a 22%. A maioria dos atos
infracionais (77%) está relacionada a estratégias de sobrevivência ou de busca
por acesso a bens de consumo.
As populações moradoras de
periferia sempre foram alvo do sistema que privilegia as elites brancas, que
nunca aceitaram compartilhar a condição humana com pessoas negras. Populações
indígenas, ciganas e negras padecem da negação de suas existências; ou mesmo,
têm suas vidas usurpadas por exploradores insaciáveis. Tudo o que se refere às
culturas afro-brasileiras é atacado ostensivamente, até mesmo em nome de um
“deus branco”. No início de 2019 registrou-se um aumento em 47% de denúncias de
racismo religioso no Brasil. De acordo com o levantamento realizado pelo Disque
100, canal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foram
feitas 213 notificações de intolerância religiosa a matrizes africanas, de
janeiro a novembro de 2018.
Em tempos de recrudescimento da
ação repressora, censura, liberação de armas, aumento de desemprego e corte de
gastos na educação, não dá para esperar a redução da violência urbana, até
porque o primeiro tiro foi dado por um Estado que despreza vidas. Tempos
difíceis…
O Estado brasileiro sempre violou
direitos e nunca pagou a conta por isso. A violência historicamente recai nas
costas da juventude negra desde sempre.
“Neste contexto, acredito que o
governo deveria garantir boas condições e oportunidades em geral. Num Brasil
que milhares de famílias ainda passam fome, as crianças são as que mais sofrem
e, infelizmente, acumulam situações de trabalho infantil e até exploração
sexual. Este mesmo Brasil que violenta a infância, discrimina pela raça, pelo
sotaque ou orientação sexual, deveria também ser sentenciado como eu fui.” (jovem do projeto Onda, promovido
pelo Inesc, que cumpria a medida de internação em Brasília)
É preciso urgentemente pensar
sobre quem é de fato violento, sobre as raízes da violência, sobre educação e
novas possibilidades para recuperar um mínimo de civilidade no país tomado
pelos horrores da desumanidade em grau máximo. A população das quebradas não se
cala. A resistência se dá no campo político, nas ruas, mas também na cultura
que celebra o encontro e exala a força coletiva, alegria e afeto. Cabe à
educação não deixar fatos como esses serem banalizados, cultivar a indignação
que permite a sobrevivência de uma ética tão ameaçada em tempos sombrios.
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