(ou como o 5 Estrelas pode acabar com o grande populista europeu)
Não é que o Movimento 5 Estrelas
se possa afastar do rótulo de “populista”, mas pode estar nas mãos do maior
partido de Itália ditar o fim (para já) do reinado de Matteo Salvini. Se o
Partido Democrata aceitar uma coligação com as tropas de Luigi di Maio, o 'Il
Capitano' pode ficar temporariamente sem leme. A sua popularidade, porém,
continua indestrutível e os italianos podem sentir-se enganados pelo sistema
(mais uma vez) se Salvini for afastado dos centros de decisão. O autor de um
livro sobre o 5 Estrelas explica ao Expresso as origens deste “partido
camaleão”, que reflete, como um espelho, “a ideologia necessária para cada
altura”.
"Já está mais que provado que há
delinquentes e terroristas infiltrados nos navios que chegam a Itália e que
depois continuam por essa Europa fora a cometer massacres. A nossa política de
bloquear a imigração ilegal é um serviço para proteger a Europa, França,
Espanha, Alemanha, Bruxelas. Dão-nos sermões mas são as políticas da Hungria e
da Itália que os salvam.” Esta foi uma das respostas que Matteo Salvini,
ministro do Interior de Itália, deu a um jornal húngaro em maio deste ano
quando se encontrou com Viktor Orbán, o outro homem duro da UE no que diz
respeito à imigração.
Mas através de uma rápida
pesquisa na internet, com a resposta a aparecer logo no pódio de resultados, é
fácil mostrar que Salvini está errado. Em 2016, um cidadão tunisino cometeu um
ataque terrorista no mercado de Natal de Berlim. Três dos perpetradores dos
atentados de Paris, em 2015, vieram da Síria, mas pela Grécia. Os dedos de uma
mão chegam para provar que Salvini está a usar o truque mais antigo do livro da
política: a generalização. Mais de 99,9% dos mais de 1,6 milhões de pessoas que
chegaram à Europa desde 2011 não cometeram ataques terroristas, como escreve a
Euronews, que passou as declarações de Salvini por uma espécie de polígrafo.
Este é apenas um exemplo da
retórica que Matteo Salvini tem usado para chegar ao topo, onde já está mesmo
sem ser mais do que ministro do Interior. É difícil convocar à memória o nome
do homem que até esta terça-feira foi primeiro-ministro italiano: trata-se de
Giuseppe Conte, mas como Salvini ocupa todas as manchetes, os murais das redes
sociais e os ecrãs de televisão, o independente e agora demissionário
primeiro-ministro poucas vezes foi peça essencial nas decisões da coligação
entre o Liga, de Salvini, e o 5 Estrelas, o partido populista de Luigi di Maio.
A queda desta estrutura periclitante era um cenário antecipado, mas dita mais
uma mudança de rumo para um país que se tem vindo a afastar das regras que
gerem a União Europeia.
A exigência de novas eleições
gerais (as últimas realizaram-se há apenas 14 meses) pareceu, de início, uma
manobra exímia de Matteo Salvini: com as sondagens a darem ao Liga perto de 36%
de intenções de voto, era uma questão de tempo até se tornar primeiro-ministro.
Mas, de facto, como explica ao Expresso Jacapo Iacoboni, autor do livro “A
Experiência: Ascensão do Movimento 5 Estrelas” e analista político no jornal
italiano La Stampa, “a cisão com os companheiros do 5 Estrelas pode ter custado
a Salvini pelo menos o seu valor real na política - ou até mesmo a sua aura de
estrela”. A chave para a resolução da crise política na qual Itália se vê
envolvida é precisamente o partido que Salvini agora rejeita: o 5 Estrelas.
“Até ver, Salvini é o único
perdedor dentro da sua própria arena de luta. Não é certo que haja eleições
gerais e quem de facto tem a maioria dos deputados é o 5 Estrelas, que fará
tudo para não ir a eleições.” Neste momento, o 5 Estrelas tem 216 deputados e
106 senadores na Câmara Alta, mas as projeções dos resultados numa nova eleição
geral são “desastrosas”, diz Iacoboni. “Passaram de 32% nas eleições gerais
para 17% nas europeias e estão por aí em intenções de voto, segundo as
sondagens oficiais. Mas, na terça-feira, o Corriere della Sera publicou uma
sondagem interna em que os números não chegavam aos 9%, o que quer dizer que,
no mínimo, eles perdem metade dos assentos.”
O que isto significa é que o 5
Estrelas pode estar a preparar-se para mais uma das suas metamorfoses. O autor,
que estudou a fundo a formação do partido do comediante Beppe Grillo e da
estrutura que o sustenta (a saber: uma enorme empresa privada de recolha de
dados chamada Rousseau Foundation onde todos os dados de quaisquer pessoas que
já tenham consultado a página do movimento estão guardados e para a qual todos
os parlamentares do 5 Estrelas contribuem com 300 euros por mês para que a rede
continue a crescer), conta ao Expresso que o partido nunca foi mais do que um
“agregador de opiniões” no sentido de “criar consensos” que “os donos da
empresa pudessem usar para mudar a opinião pública como lhes apetece” e é por
isso que o 5 Estrelas não é uma formação política comum. “O seu ADN é de
permanente mudança ideológica.”
O fundador do partido não foi
Beppe Grillo, ele foi apenas um megafone com alguma piada e com coragem para
quebrar tabus. Na verdade, o fundador é Roberto Casaleggio, um engenheiro
informático que dedicou a carreira a tentar entender como é que as informações
que as pessoas disponibilizam na internet podem ser usadas para criar consensos
simplistas na mente coletiva de partes da sociedade. Por isto, “o 5 Estrelas é
apenas um espelho para o que quer que seja que naquele momento lhes sirva para
não saírem do poder”.
E por que razão interessa
discutir as origens amorfas do maior partido de Itália? “Porque eles são um
partido-empresa, não têm ideologia. O Roberto Casaleggio foi um dos primeiros
apoiantes da Lega Nord, o partido que dá origem ao Lega do Salvini, mas Beppe
Grillo apoia a democracia direta, a proteção do meio ambiente, o rendimento
universal, mas também o fim da ajuda aos migrantes. É uma misturada, um
camaleão.” Pode ser a peça que falta para os Democratas (atualmente com cerca
de 23% nas intenções de voto) chegarem ao poder, mas a curvatura ideológica
pode ser demasiado grande, até para o 5 Estrelas. “Essa coligação seria um
monstro, uma aberração política, uma experiência surreal porque são partidos
totalmente opostos: um superpopulista, que não quer saber do défice, que quer
gastar, que quer proibir a entrada a migrantes, outro europeísta até à ponta
dos cabelos, com tudo o que isso inclui: apertar o défice, deixar entrar
pessoas e tudo mais.”
O RECURSO AO ROSÁRIO
Há muito tempo que a Itália já
não é a Itália profundamente religiosa das romarias retratadas em filmes como
“As Noites de Cabiria”, de Federico Fellini, onde uma procissão de alucinados
faz o seu caminho até ao desmaio programado perante uma imagem da virgem, mas o
recurso ao rosário tem sido mais uma das armas de Salvini para chamar a si uma
parte da população que se sente abandonada, principalmente desde que os
democratas cristãos caíram do poder.
Sempre de rosário na mão nos
comícios, Salvini parece próximo de uma parte da população da qual de facto não
é. “Jornalistas, académicos, políticos, toda a gente se foca muito no que se
passa nas cidades como Milão, Roma, Florença, mas as zonas rurais italianas são
uma porção gigantesca da área do país e a devoção religiosa nessas terras é
muito enraizada, muito forte, as noções de família, de pecado, muito claras
ainda e é por isso que ele anda de rosário”, explica Jacabo Iacoboni.
Outro truque muito utilizado por
Salvini e por outros políticos que se dizem “antissistema”, apesar de serem
quase todos produto de famílias políticas com longas raízes, é a exasperação
constante contra as elites: as universidades, Bruxelas, os comentadores e
especialistas. Há uns anos, quando a Lega era de facto a “Liga Norte para a
Independência da Padania” (região em redor do rio Pó) e lutava pela autonomia
do Norte mais próspero, os inimigos eram “os ladrões em Roma” ou os “parasitas
do sul”, uma referência às regiões mais pobres de Itália. É só rodar a bússola.
Agora o problema é mais a norte, em Bruxelas, ou mais ainda mais a sul, no
norte de África. Em quatro anos ao leme do partido, que mudou até nas cores (do
verde dos vales do Pó para o azul da seleção italiana), o Lega deixou de ser
separatista para se assumir como a maior força nacionalista do país. De
passagem pela Sicília, Iacoboni lembra precisamente esses tempos: “Estou na
terra que costumava ser o verdadeiro inimigo da Lega Nord, os separatistas, mas
agora o Salvini, com a sua facilidade impressionante de chegar a quem quer que
seja, transformou até partes do sul em bastiões da direita”.
A forma de chegar às pessoas é
variada e muitos italianos veem em Salvini algo que se tinha tornado raro:
alguém em que acreditam, para o bem e para o mal. “É um antídoto potente contra
a desilusão geral que as pessoas sentem, sim, e ele vai usar isso outra vez.
Até haver uma resolução para este conflito, ele vai dizer que é o único
democrata no país porque é o único que quer ouvir o povo numa eleição geral.
Tudo o que parecer uma manobra parlamentar para lhe retirar o poder vai parecer
aos olhos de muitos italianos como um golpe, acho muito possível que isso venha
a acontecer.”
Itália não é um país com um peso
negligenciável e Salvini sabe disso. À Time, seis meses depois de vencer as
eleições de 2018, disse que “mudar a Europa por dentro está na ponta dos nossos
dedos”, isto porque “Itália é a segunda potência industrial da UE, tem uma
população de 60 milhões e paga seis mil milhões de euros para o orçamento”.
“Seremos ouvidos porque a Europa não existe sem o Reino Unido.”
No documentário emitido pela BBC
poucos dias depois de Boris Johnson tomar o lugar de Theresa May à frente do
governo britânico, Michel Barnier conta uma história sobre as percepções que
alguns populistas têm do peso dos seus países no sucesso do projeto europeu.
Conta o negociador-chefe para o Brexit que Nigel Farage, ex-líder do UKIP e
agora líder do Brexit Party, um dia lhe disse que não estava preocupado com as
consequências da saída do Reino Unido da Europa porque, depois de os britânicos
saírem, “deixará de haver Europa”. O que o processo do Brexit tem mostrado - e
que nesse documentário fica friamente claro - é que os negociadores britânicos
nunca tiveram qualquer hipótese de quebrar a unidade da União: ainda que sejam
claras as fissuras que vão existindo aqui e ali quanto a quais deviam ser as
prioridades do bloco, nenhum país parece preparado para saltar do navio - e
isto incluiu a Itália, que “pôs em gelo” aquela ideia de abandonar o euro com a
qual Salvini fez campanha.
A crise pode ter desfecho rápido,
com Sergio Mattarella, o Presidente de Itália, a considerar que nenhuma maioria
é sólida o suficiente para resultar: o que levaria o país a novas eleições.
Nicola Zingareti, secretário-geral do Partido Democrata, de centro-esquerda, já
colocou pelo menos duas condições em cima da mesa para aceitar formar governo
com o 5 Estrelas: a pertença ao projeto europeu passa a ser inquestionável, tal
como a necessidade de receber da forma mais cordial possível as pessoas que
chegam da Líbia.
Jacapo Iacoboni admite que
“Salvini pode passar rapidamente a ser apenas ministro da Sua Própria Vaidade”
e nada mais, o que seria uma mudança “radical” na forma como Itália se
posiciona no mundo. A aproximação confessa de Salvini à Rússia já não teria
tanta influência nos destinos do país e a Europa poderia contar com uma Itália
um pouco mais aberta à mediação de problemas como o da imigração. Mas 5
Estrelas e Democratas são “inimigos antigos”, construídos quase para “se
maltratarem mutuamente” e apenas a sede de (não perder) poder pode falar mais alto
do que as diferenças ancestrais.
Ana França | Expresso
Imagens de: 1 - MARCO
CANTILE/GETTY IMAGES; 2 - SIMONA GRANATI – CORBIS; 3 - IVAN ROMANO/GETTY
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