Ricardo Paes Mamede | Diário de
Notícias | opinião
A polémica sobre a evolução da
carga fiscal em Portugal é um exemplo do que não deveria acontecer numa
democracia madura. Os partidos de direita são incoerentes. O governo confunde
mais do que elucida. O INE (Instituto Nacional de Estatística) fomenta o uso de
um conceito equívoco. E a comunicação social dá eco a um debate feito em termos
pouco inocentes.
Há expressões que são escolhidas
a dedo para induzirem a interpretação desejada. Por exemplo, entendemos coisas
diferentes se nos disserem que um mercado de trabalho é "muito
regulado" ou que é "muito rígido" - mesmo que a realidade que
estejam a descrever seja a mesma. Todos queremos que haja regulação nas
economias, mas ninguém gosta de soluções rígidas. Por isso, quem defende mercados
de trabalho liberalizados prefere usar a expressão "rigidez" e evita
a palavra "regulação"; quem defende uma maior protecção dos
trabalhadores nas relações laborais faz o contrário. As palavras, de facto, não
são neutras.
O mesmo se passa com a expressão carga fiscal, que corresponde ao rácio das receitas de impostos e de contribuições sociais sobre o PIB.
Em muitas situações deveríamos
todos celebrar o aumento daquele rácio. Tal verifica-se, por exemplo, quando o
dinheiro enviado para paraísos fiscais passa a ser devidamente tributado; ou
quando as actividades informais passam a fazer os descontos que devem; quando
as várias formas de trabalho precário passam a estar cobertas pela protecção
social, contribuindo em conformidade; ou ainda quando os salários aumentam,
levando a que os rendimentos estejam sujeitos a taxas de imposto mais altas,
respeitando assim o princípio da progressividade.
São boas notícias quando alguma
destas fontes de aumento da carga fiscal se verifica. Mas não é isso que a
expressão usada nos leva a crer. Carga é sempre uma palavra negativa. É um
peso, um fardo que temos de suportar. Convida-nos a ver qualquer melhoria na
angariação de receita por parte do Estado como uma má notícia, como algo a
evitar sempre que possível.
Bastaria olhar para os níveis da carga
fiscal nos países da União Europeia para questionarmos aquela interpretação.
Mesmo depois da recente subida do rácio em Portugal, há 16 países em 28 que têm cargas fiscais superiores.
Correspondem, com poucas excepções, às economias mais desenvolvidas da UE. Sem
surpresas, países com serviços públicos mais abrangentes, Estados mais
funcionais e sociedades mais coesas - como a Áustria, a Dinamarca, a Finlândia
e a Suécia - encontram-se neste grupo. A razão é dupla: por um lado, os
impostos e as contribuições sociais são o preço que se paga por viver em
sociedades decentes; por outro, as receitas obtidas são maiores nos países em
que o Estado é mais eficaz e onde o compromisso com o bem-estar colectivo é
maior.
Não é assim que pensam os neoliberais. Para estes, o Estado é
um empecilho à liberdade, excepto quando garante a segurança, a justiça e a
concorrência de todos contra todos. Tudo o resto deve ser deixado aos mercados
e à decisão individual. Mais impostos e mais contribuições sociais representam
um aumento da coerção que o Estado exerce sobre os indivíduos. A ser assim, o
aumento da carga fiscal é um fardo a abater. Por isso fazem tanta questão de
sublinhar a expressão sempre que a usam - e usam-na sempre que podem. Já se
percebe menos bem que a comunicação social ou o INE utilizem acriticamente o conceito, fomentando uma
interpretação tão carregada de doutrina.
Por contraste, é fácil perceber
que PSD e CDS recorram aos números da carga fiscal como argumento de campanha.
A apropriação pelo PS da bandeira das "contas certas" e o bom
desempenho da economia portuguesa ao longo da legislatura deixaram a oposição
de direita com poucas alternativas de mensagens eleitorais. Mas há um problema:
sem o aumento das receitas de impostos e contribuições sociais seria impossível
continuar a pagar a dívida pública nos termos previstos e manter níveis mínimos
de investimento nos serviços colectivos. PSD e CDS não podem denunciar
escandalizados o aumento da carga fiscal e ao mesmo tempo exigir maiores
pagamentos da dívida pública e mais investimento nos serviços de saúde.
O governo, por sua vez, não
ajudou muito a clarificar a discussão. Mário Centeno começou por afirmar que "faltava PIB" às contas da carga fiscal,
sugerindo assim que os valores máximos deste rácio atingidos em 2018 resultavam
de um problema no cálculo do denominador. A revisão do PIB, entretanto anunciada pelo INE, só em
parte dá razão a Centeno: apesar de menor, o valor do rácio em 2018 continua a
ser o mais elevado de sempre. O ministro das Finanças quis também instituir um novo conceito de carga fiscal, que leva em conta
as implicações das opções actuais para as gerações futuras; mas ao optar por
revestir de discurso técnico uma questão que é acima de tudo política confundiu
mais do que elucidou. Continuando a jogar à defesa, Centeno socorreu-se de um gráfico do Banco de Portugal para
mostrar que as taxas de imposto de facto baixaram, pelo que o aumento das
receitas em percentagem do PIB não se deve a um maior esforço fiscal; mas
limitou-se a enunciar ideias genéricas sobre a evolução da economia e do
emprego para explicar a dinâmica do indicador em causa.
Ao longo deste debate, o governo
nunca tornou claro de onde vem exactamente o aumento das receitas: da expansão
do emprego líquido? Da subida dos salários? Do alargamento da base de
contribuintes? Do combate à evasão fiscal e contributiva? Da maior cobertura de
protecção social para trabalhadores precários? Sem estas informações não é
possível fazer um debate sério e consequente sobre a evolução da fiscalidade em
Portugal.
Uma discussão baseada em
informação detalhada sobre as razões do aumento das receitas fiscais e
contributivas permitiria esclarecer quem defende o quê e porquê nos debates
sobre os modelos de desenvolvimento propostos para Portugal. De outra forma,
não vamos além de chavões mais ou menos eficazes na luta eleitoral, mas pouco
condicentes com uma democracia madura.
*Economista e professor do ISCTE
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