sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Portugal | Tancos, as duas tramas. Dos traficantes de armas à vaidade dos militares


Como foi possível o roubo ao paiol militar de Tancos? Quem sabia o quê? Quem teve a ideia da "encenação da entrega das armas"? O despacho de acusação conta tudo sobre o roubo de Tancos e as suas motivações, segundo o MP. Uma história no mínimo mirabolante.

Era difícil resistir a uma tentação como esta: paióis cheios de armas, sem segurança, prontas a serem levadas. João Paulino teve a oportunidade perfeita para um traficante - de armas e droga. Ainda que não fosse um grande traficante, caiu-lhe no colo toda a informação que lhe permitiria um golpe perfeito, e, talvez, além das suas possibilidades. Ou, pelo menos, em relação ao qual não podia prever todas as consequências, e o terramoto, até político, que iria causar no país.

Para perceber como é que Paulino chegou a Tancos têm de entrar nesta história outras duas personagens. Filipe Sousa, furriel, colocado nos Paióis Nacionais de Tancos (PNT), e o seu tio Valter Abreu, conhecido por Pisca, por ter um dos olhos semifechado, consumidor de haxixe que, por sua vez, devia cerca de mil euros a Paulino de uma encomenda.

Estavam tio e sobrinho a ver televisão, passava uma notícia sobre terrorismo e Filipe atirou para o ar: "Se houvesse terrorismo em Portugal ou uma guerra, Tancos não estava preparado."

Foi o arranque de uma conversa sobre o trabalho que fazia naquela base militar. Pisca, com alguma manha, segundo o MP, puxou pelo sobrinho e este revelou-lhe tudo sobre o sistema de segurança, patrulhas, material que lá estava - de acordo com o que o próprio assumiu durante os interrogatórios no DCIAP.

Sustentam os procuradores que Filipe "falou abertamente sobre tudo: contou-lhe pormenores sobre as suas funções no Regimento de Engenharia, descreveu-lhe o número, a periodicidade e a natureza das rondas efetuadas - chegando a dizer que não tinham apoio canino".

Durante o jantar "contou-lhe ainda as fragilidades de segurança que reconhecia existir nos Paióis", bem como "o tipo de material armazenado", principalmente o que estava nos paióis 14 e 15. Apercebendo-se do interesse do tio, "descreveu ainda, em pormenor, o tipo de fechaduras que estavam colocadas nas portas desses paióis, referindo-lhe que eram velhas".

Na posse daquela informação, Pisca fez o que alguém faz quando tem necessidade: usou-a, trocando-a pelo perdão da dívida de droga que tinha com João Paulino. Também "conhecia o seu interesse pelo material militar", contam os investigadores.

O efeito ultrapassou as suas expectativas. Não só Paulino esqueceu a dívida como ainda lhe deu mais haxixe. Porque percebeu a oportunidade que lhe trazia o seu cliente. "Disse-lhe que queria fazer os paióis, querendo com isso dizer que queria assaltá-los", é dito na acusação.

Usou o seu bar, JB, em Ansião, para os primeiros encontros e conversas com os cúmplices: Baião, Pedro Marques, Hugo Santos, Gabriel Moreira, rapazes da sua confiança, por cujas mãos já passava o tráfico de droga.

A estes juntou-se também Laranginha, compadre de Paulino, padrinho da sua filha e com contactos no tráfico internacional para escoar o material. Laranginha é arguido no processo do furto das pistolas Glock da PSP, precisamente porque terá sido quem as traficou para o mercado negro. Aliás, souberam os investigadores que uma destas armas terá ido mesmo parar às mãos de João Paulino.

Segundo apurou o MP nos interrogatórios aos outros arguidos, terá sido Laranginha quem anunciou que podia contactar elementos da ETA - que viria a anunciar a sua dissolução em abril de 2018 - para lhes vender os explosivos que desviassem.

Segundo a acusação, o objetivo de João Paulino seria furtar as munições de 9mm, explosivos, granadas e lança-foguetes. Partiu daqui a tão discutida imputação de suspeita de terrorismo. Embora, conforme o DN já noticiou, uma tese que lançou dúvida nas autoridades espanholas e que as portuguesas também não conseguiram esclarecer.
Redes sociais tramam arguidos

Apesar de estarem no tráfico de armas e droga, o grupo de Paulino não se coibia de estar também presente nas redes sociais - os investigadores fizeram boa parte destas conexões através das páginas dos membros, nas quais publicavam fotos juntos, informações de perfil e demonstravam deslocações. Além do tráfico, o grupo de amigos do Bar JB jogava póquer periodicamente. E além do bar, também um restaurante em Aveiro, propriedade de outro dos acusados, Jaime Oliveira, passou também a ser ponto de encontro, por ser mais próximo de Pisca.



João Paulino, no seu tempo nos fuzileiros
Sem pressas, o grupo percebeu bem a complexidade do assalto, e planeou-o bem. Faltava-lhes, porém, quem conseguisse abrir as portas do paiol. A peça que faltava seria Paulo Lemos Fechaduras, que morava em Albufeira, e era amigo de um amigo de infância de João Paulino, Fernando Guimarães, Nando. Ambos trabalhavam em bares e discotecas algarvias. Fechaduras era um profissional conhecido no mundo do crime, perito em arrombamentos e Nando até já o tinha apresentado a Paulino, numa visita deste ao Algarve.

Na segunda quinzena do mês de fevereiro e no mês de março de 2017, Paulino tratou de saber o máximo de pormenores sobre os paióis, rotas possíveis de utilizar e foi adquirindo o material que precisava, a maior parte das vezes na companhia de algum dos membros do grupo. Estas deslocações, parte delas de noite e de madrugada, estão registadas em equipamentos das autoestradas por onde passou.

Sabe-se, por exemplo, que a 10 de março de 2017 almoçou em Sete Rios, em Lisboa, com Nando e Fechaduras, para que este lhe explicasse com detalhe como abrir as portas dos paióis. Nessa altura, João Paulino terá partilhado com o larápio o plano que tinha na cabeça.

As autoridades têm inclusivamente registos das pesquisas que Paulino fez nesse momento no Google, para mostrar a Fechaduras as imagens dos paióis e o tipo de cadeados usados. Até 'googlou' com a palavra-chave: "Destruir fechaduras cross."

O saca-cilindros que Fechaduras lhe sugeriu tinha a capacidade de arrombar o cadeado em 15 segundos. Paulino ofereceu 50 mil euros a Paulo Lemos, pelo apoio técnico. E, desta forma, nem o outro precisava de ir ao local.

Dias depois, o núcleo duro de Paulino convidou Pisca e o sobrinho Filipe Sousa para tomarem um copo no bar de Ansião. Filipe recordou todas as fragilidades dos paióis de Tancos e a forma como poderiam ultrapassar a escassa segurança. Nesta altura, março de 2017, o furriel ainda comandava a guarda aos PNT.

Problemas de consciência e uma denúncia que não serviu de nada

No Algarve, Fechaduras começou, segundo o despacho da acusação, a "refletir no seu passado de prática de crimes violentos relacionados com o controlo de estabelecimentos de diversão noturna do Porto", investigados no âmbito de um processo que ficou conhecido como Noite Branca, e nas "consequências que teve na sua vida".

Um dos motivos por que se tinha mudado para o Algarve tinha sido para se afastar do mundo do crime da zona do Porto.

Meteu na cabeça que não ia participar no assalto. Lembrou-se de uma das procuradoras do caso, que lhe tinha arquivado o processo, dando-lhe uma segunda oportunidade para deixar a vida do crime.

E os problemas de consciência foram tão fortes que acabou por ligar para essa procuradora do DIAP do Porto e revelou o plano de Paulino. A magistrada deu a informação à PJ, que abriu um inquérito.

Com poucas informações, até porque o próprio Fechaduras também não sabia os pormenores, a magistrada transmitiu o que sabia: que havia um ex-assaltante que tinha sido convidado para participar num assalto a uma instalação militar na zona centro, mas "não sabia precisar qual, porque não tinha fixado".

Foi o que disseram na Comissão Parlamentar de Inquérito, tanto a ex-procuradora-geral Joana Marques Vidal como o diretor nacional da PJ, Luís Neves.

Entretanto, Paulino continuava com os preparativos. Comprou na loja Soldiers, em Cascais, caixas para guardar e enterrar o material. Foi a Espanha com a mulher comprar o saca-cilindros necessário para abrir as portas dos paióis - no dia 16 de março, segundo o despacho.

Esta deslocação a Espanha preocupou muito Paulino. Já no final desse ano, depois do assalto e depois do achamento, sabendo que a PJ estava perto de o caçar, as escutas ambientais da polícia ouviram esta conversa entre Paulino e Laranginha, transcrita para o processo: "Tu não tens nada, porque tu não tens nada. Eu até nem sei como é que me viu livrar de Espanha. Têm provas (...) Então eu fui lá com o meu carro! (...) Estive lá como o meu telemóvel! (...) Abrem-te uma investigação hoje, sabias? Hoje! Conseguem ir buscar o historial todo onde estiveste um ano para trás!"

Oito operacionais, uma carrinha, duas horas

No final de março, o plano estava pronto a ser levado à prática. Só faltava aguardar pela rotação dos turnos das rondas. A data para o furto "não foi aleatória", sublinha o MP.

Foi escolhida para quando fosse a unidade de Filipe Santos a fazer a segurança e esta fosse "menos rigorosa". O grupo foi constituído por oito operacionais: João Paulino, Laranginha, Hugo Santos, Fernando Santos Baião, Gabriel Moreira, Pedro Marques e Caveirinha.

Em junho, a situação de segurança de Tancos estava num ponto crítico: nove câmaras do sistema de videovigilância estavam avariadas, tal como os sensores, o sistema de deteção por vibração, as vedações e as torres de vigia degradadas e sem guarnição, a iluminação deficiente - na estrada de acesso aos paióis não havia qualquer luz, alarmes sonoros ou de iluminação.

E como também se tinha tornado habitual, no dia 27 de junho a equipa do Regimento de Engenharia nº 1, que deveria fazer a segurança dos paióis durante 24 horas, não fez qualquer ronda. Ficou sempre dentro da casa da guarda.

Perto das duas da manhã, de dia 28 de junho de 2017, estavam junto aos paióis e o grupo de Paulino tinha as condições ideais para atuar. A noite estava escura, pois era a fase da lua nova.

Desligou os telemóveis e juntou-se perto de Ansião e seguiu para Tancos. Alguns iam numa pickup de caixa fechada, outros num Renault Mégane. Demoraram cerca de uma hora a chegar, perto das duas da madrugada.

De luzes apagadas, seguiram pela estrada de terra batida que circunda a base militar até à vedação perto de uma das torres de vigia, onde não estava ninguém. No local, não havia qualquer iluminação. Paulino e Valter saíram da carrinha e do automóvel, respetivamente.

Seguindo as ordens de Paulino, Pisca entrou por um buraco da vedação exterior danificada e, na segunda vedação, interior, usou um alicate para cortar os arames, dando espaço suficiente para os outros poderem passar.

Voltou depois para o pé dos carros para ficar de vigia. A ideia era desligar o cabo da bateria, para simular uma avaria, e apertar a buzina caso alguém aparecesse.
Carrinhos de mão em ação.

Os outros saíram com luvas e gorros. Tiraram da carrinha dois carrinhos de mão e entraram pelos orifícios da rede. Percorrendo cerca de 550 metros, foram diretos aos paióis 14 e 15 que, segundo lhes tinha dito Filipe Sousa, armazenavam o material que lhes interessava.

E foi com alguma tranquilidade que foram carregando as caixas com o material de guerra nos carrinhos de mão até à carrinha. Segundo os cálculos do MP, terão feito cinco ou seis percursos de ida e volta, carregando várias caixas com material militar. Cada caixa, umas de cartão, outras de madeira, pesava mais de 300 quilos.

Na carrinha taparam o material com um cobertor, "para poderem disfarçar o que transportavam, na eventualidade de virem a ser parados por uma operação stop". Nisto levaram duas horas, entre as duas e as quatro da madrugada.

O MP divide o material furtado em três níveis de "perigosidade": alta, baixa e nenhuma. No primeiro caso estão os explosivos e as granadas ofensivas. "A disponibilidade de material desta natureza é muito apetecível com vista à execução de ataques terroristas", assinala o MP, havendo "histórico de registos de utilização deste tipo de material em ataques terroristas de matriz religiosa".

O material foi então levado para Portela de Carregueiros, Tomar, para a propriedade da avó materna de Paulino. O grupo que foi esconder as armas era o núcleo duro de Ansião: o próprio Paulino, Laranginha, Baião, Pedro Marques, Hugo Santos, Tide e Caveirinha.

Voltaram a Ansião quase às sete da manhã - essa foi a hora em que os seus telemóveis começaram a ficar ativados.

No dia seguinte, a 28, pelas 09.00 da manhã, a guarda dos paióis foi rendida sem que o assalto tivesse sido detetado. Só pelas 16.30 foi dado o alerta do arrombamento.

Pelas 19.00 desse dia, estavam João Paulino e Pedro Marques no Jumbo de Coimbra. No telemóvel apreendido, as autoridades encontraram uma fotografia desse dia: João Paulino sentado no topo de um carrinho de supermercado cheio de cervejas, inclinado para o lado com ar sonolento - certamente devido à noite em branco.

A atenção dos media impediu venda de armas

A atenção mediática dada ao caso não tinha sido prevista por Paulino, talvez até com uma certa ingenuidade. Ele estava mais habituado a trabalhar na sombra. E os problemas começaram quando percebeu que a oportunidade para tirar o material da propriedade da avó ia demorar e que, mesmo assim, teria sempre dificuldade em escoar aquele material tão específico - a origem seria facilmente detetada.

Por outro lado, as notícias dos jornais já vinham com muitos pormenores sobre o assalto e os suspeitos, o que dava a entender que poderia ter havido alguma traição no grupo. Tudo apontava para Fechaduras, que era um outsider. E a Polícia Judiciária andava no encalço de João Paulino. Tudo indicava que seria uma questão de tempo até os apanhar.

A tensão criou desentendimentos no grupo. Baião deixou o bar e emigrou para a Suíça em setembro de 2017, e os outros reclamavam de Paulino os respetivos dividendos pelo assalto. Com a mercadoria parada, e sem possibilidades de lucrar com ela, o traficante rapidamente concluiu que o melhor era devolver o material. Ou pelo menos a maior parte, a que fosse mais difícil de escoar.

Ficaria com as munições, algumas granadas, cargas lineares de corte (explosivos) e um disparador de descompressão. O material sobre o qual não se sabe o paradeiro ainda, porque Paulino remeteu-se ao silêncio desde que foi preso.

Mas como iria um traficante devolver armas sem acabar preso? Paulino lembrou-se então do amigo de infância, Bruno Ataíde, que era militar da GNR e estava colocado no Núcleo de Investigação Criminal de Loulé. Falou com ele, contou-lhe da aflição e começou a planear a entrega do material sem que o seu nome ficasse queimado.

Bruno Ataíde aproveitou ajudar o amigo para brilhar dentro do corpo, levando a proposta aos seus superiores - sempre era um caso nacional que ajudariam a resolver. E foi assim que a ideia chegou à Polícia Judiciária Militar, por intermédio da GNR de Loulé.

Mas esta foi apenas mais uma coincidência deste caso. Porque a própria PJM, liderada pelo diretor Luís Vieira, já tinha, por seu lado, iniciado uma investigação paralela e tentado chegar à fala com Fechaduras - isto à revelia da PJ e do MP, que estavam a tentar esclarecer tudo o que se tinha passado.

A farsa da PJM

Segundo o MP, pouco depois de o assalto ter sido conhecido, nos dias 28 e 29, o inspetor da PJ que tinha recebido a denúncia em março ligou ao inspetor da PJM Pinto da Costa a recordar a conversa que tinham tido meses antes sobre esse assunto.

Foi só nesse momento que Pinto da Costa a revelou ao diretor Luís Vieira dizendo que a Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo da PJ estaria a caminho do Algarve para interrogar o tal Fechaduras - seria ele o informador da denúncia.

Luís Vieira quis que a PJM acompanhasse a PJ na sua ida ao Algarve para falar com Fechaduras, o que foi negado pelo então diretor da UNCT Luís Neves, atual diretor nacional da PJ. A justificação foi de que isso podia prejudicar a estratégia, pelo excessivo número de investigadores no terreno. Nesta altura, esta investigação ainda não estava com a PJ e esta diligência iria ser feita no âmbito do inquérito aberto em março, com base na dita denúncia.

Vieira não terá gostado da rejeição, mas não esqueceu o caso, até porque a GNR de Loulé continuava a recolher informação de Fechaduras e a passá-la a Pinto da Costa, inclusivamente através de correio eletrónico - está na acusação.

No entender do MP, Luís Vieira sentiu que esta informação preciosa podia ser o primeiro passo para a PJM vingar nesta investigação.

Entretanto, Pinto da Costa fala com Lage de Carvalho, sargento da GNR destacado na PJM que tinha contactos com Lima Santos, na GNR em Loulé. É assim que começa a boa cumplicidade entre estes militares da GNR e da PJM - amigos e companheiros de armas em instituições habituadas a regras próprias de uma cultura castrense.

Ainda no dia 1 de julho, Lage de Carvalho enviou um e-mail a Pinto da Costa, com o seguinte texto: "(...resta-nos esperar pela evolução da investigação do Sr. Doutor da PJ Civil, mas acho que ainda nos vamos rir... infelizmente, parece-me que ainda vai acontecer outro 'Pedro Dias' ... que nós sabíamos onde ele ia passar e... passou... :-)"

Não foi difícil encontrar Fechaduras, está claro. Pela sua carreira no crime e a ligação ao processo Noite Branca, era uma figura conhecida mesmo no Algarve, onde continuava a trabalhar em estabelecimentos de diversão noturna.

As informações corriam para a frente e para trás, quando a PGR decide entregar o processo do assalto de Tancos à PJ. O inquérito não seria por crimes estritamente militares, mas teria um campo mais alargado: associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo.

Joana Marques Vidal informou pessoalmente Luís Vieira dessa decisão, que terá ficado furioso e protestado, alegando que a decisão estava a violar várias leis. "A conversa foi tensa", resume o MP, e "Luís Vieira teve uma reação desabrida".

Ficou "muito revoltado", principalmente porque se apercebeu de que "a decisão era irreversível". Por isso, "como expressão da sua húbris, decidiu, imediatamente, tentar por qualquer via, designadamente jurídica, política e ao mais alto nível, a reversão da mesma".

Segundo o MP, que corrobora o processo de investigação da PJ, Vieira ter-se-á sentido vexado, ainda na ressaca de casos, como o roubo das armas na Carregueira e no Alfeite (que a PJM não resolveu) e do processo das mortes nos comandos.

E terá decidido, logo ali, que a PJM continuaria a sua própria investigação, "pois tinha o objetivo de mostrar ao país e ao Exército Português que conseguiria recuperar o material militar subtraído". Via Tancos como uma tábua de salvação para a PJM recuperar o prestígio perdido.

E a partir daqui Vieira e Brazão terão começado a arquitetar o que o MP chama de "pacto criminoso". Enquanto a GNR de Loulé tratava da aproximação a Fechaduras, orientada por Lage de Carvalho, em Lisboa, Vieira e Brazão tentavam reverter a decisão da PGR. Vieira multiplicou-se em encontros e conversas com Azeredo Lopes e também com o chefe da casa militar do Presidente da República, tenente-general João Cordeiro.

As antenas de telemóveis registam a presença de Luís Vieira na casa de Azeredo Lopes a 3 de julho de 2017, pelas 20.00, dia em que a PGR lhe tinha ligado a dizer que a PJ dirigiria a investigação. No dia seguinte estariam em Tancos, com o Presidente da República.

No dia seguinte, o Presidente da República deslocou-se aos paióis. Numa reunião à porta fechada depois da visita, em que participaram cerca de 20 pessoas, entre as quais Marcelo Rebelo de Sousa, Azeredo, o seu chefe de gabinete, Martins Pereira, o secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrello, e o CEMGFA Pina Monteiro, o coronel Luís Vieira desabafou a sua revolta sobre a titularidade do inquérito, revelando que em março tinha havido uma denúncia sobre a preparação de um assalto e que ninguém os tinha avisado - o que como já se sabe, seria falso, pois Pinto da Costa sabia, mas não o avisou.

As "promessas" de Marcelo

Mais tarde, para tentar saber o impacto que a sua conversa teria tido em Marcelo Rebelo de Sousa, Vieira fez diversas chamadas para o chefe da casa militar de Belém, registadas pelas antenas das operadoras de comunicações.

No dia 15 de julho, Vieira enviou um e-mail a si próprio com um conjunto de tópicos sobre a reunião em Tancos:

"1- Visita aos paióis com investigadores da PJM a explicarem ao PR o que se passou.

2- Reunião, porta fechada. na mesa: PR, MDN, Chefe da Casa Militar, Eu, SEDN, CEME e CEMGFA.

3- À volta assessores e oficiais.

4- A conversa só entre mim e o PM. Perguntava-me pormenores. Eu disse-lhe: Sr. Presidente tem atrás de mim os investigadores que estiveram aqui 4 dias e 4 noites sem se deitarem. Eles sabem responder a isso. Mas, outra coisa que me preocupa, tive um telefonema da PGR a dizer-me que não teria inquérito. A PJ ficava com ele.

5- Respondeu-me que havia uma dramatização e que teria de ter paciência. Insisti com o quadro jurídico da PJM que tem neste facto competências específicas, exclusivas.

6- Entretanto, os meus investigadores intervieram e responderam aos pormenores que o PR queria.

7- O PR acabou por prometer que iria estudar, depois falar com a PGR, enquanto o MDN falaria com a sua congénere (Vieira revelou isto mesmo na Comissão Parlamentar de Inquérito, mas Belém negou perentoriamente que Marcelo tivesse feito tal promessa).

No início de agosto, Vieira pediu um parecer sobre a entrega da investigação à PJ ao jurista Rui Pereira, enviado a 4 de agosto. No processo está esse pedido que, escrito pelo então responsável oficial pela investigação ao caso, João Bengalinha, era explícito que se destinava ao caso de Tancos.

A entrega encenada, uma ideia genial

A denúncia de Fechaduras foi, portanto, o fio que começou a desenrolar esta meada de várias formas, mas uma série de coincidências ajudaram. O facto do GNR Bruno Ataíde conhecer Paulino é uma delas.

Na altura em que o processo começa a desenrolar-se há o contacto entre Bruno e Paulino - não é muito claro o que acontece primeiro - se o contacto da GNR de Loulé com Fechaduras ou o de Paulino com Ataíde - mas é nessa altura que o traficante sabe que a PJM estava já atrás de Fechaduras, que fica mais alarmado, e que abre o jogo com o amigo. Pelos cálculos dos investigadores, isto terá acontecido ainda antes de final de julho de 2017.

Ataíde informou Lima Santos, que comandava o NIC, e o guarda José Gonçalves, da sua confiança, do plano de recuperação das armas. Por sua vez, Lima Santos informou o seu superior Luís Sequeira. Já todos sabiam que a investigação devia ser dirigida pela PJ, mas a nenhum isso importou.

Por indicação de Sequeira, Lima Santos deu conta da proposta de Paulino a Mário Lage de Carvalho, da PJM. Este informou Pinto da Costa que a transmitiu ao diretor Luís Vieira e a Vasco Brazão.

E aí, em vez de avisarem a PJ, como mandaria a lei, todos combinaram a ação de "entrega" das armas. Acordaram que, juntamente com a GNR de Loulé, iriam, clandestinamente, organizar a recuperação das armas nos termos de João Paulino - um criminoso. Mesmo sendo uma operação ilegal, a colaboração da GNR de Loulé com a PJM necessitava de autorização superior do então diretor da investigação criminal da GNR, coronel Taciano Correia, pois teriam de se deslocar para fora da sua área de jurisdição, para o distrito de Santarém.

Vieira ligou-lhe diretamente e falou claro: deu-lhe conta da sua revolta por a PJM ter sido afastada e que tinha decidido fazer uma investigação paralela, no âmbito da qual o NIC de Loulé tinha um papel determinante. Falou de Paulino, o indivíduo que tinha participado no assalto e estava disposto a devolver o material, desde que não fosse incriminado.

Todas estas movimentações e aproximações da GNR e da PJM aos suspeitos comprometeram drasticamente a investigação do MP e da PJ - os suspeitos souberam que estavam a ser vigiados e mudaram comportamentos, impedindo a recolha de provas.

Durante o tempo que decorreram as negociações, o militar da GNR Bruno Ataíde vai mantendo informado Lima Santos e este Lage de Carvalho sobre as negociações com Paulino. Em setembro, os militares da PJM, Brazão, Pinto da Costa, Lage de Carvalho e José Gonçalves, vão ao local onde Paulino tinha escondido o material, na propriedade da avó. Nessa noite, o grupo reúne-se em Paço de Arcos com Lima Santos e Bruno Ataíde. E Brazão liga a Vieira a contar o que acontecera nesse dia.

Combinam a encenação, a chamada anónima simulada e o alibi para a presença dos militares da GNR de Loulé naquela zona. Está também registada uma conversa de Luís Vieira para Martins Pereira, em finais de setembro, dando a entender que a qualquer momento as armas podem se encontradas, pedindo apoio do Exército. O MP diz que Azeredo foi informado de tudo.

O dia do achamento

No início da madrugada de dia 18 de outubro, Bruno Ataíde e Lima Santos estiveram com Paulino na propriedade da avó e este passou-lhes o material que tinha escondido. Todos tinham os telemóveis desligados. Pouco depois das duas da manhã, Ataíde e Lima Santos foram para a Chamusca onde se encontraram com Lage de Carvalho e José Gonçalves. Depois de confirmado que o material era mesmo o que tinha sido furtado, os cinco deslocaram-se para o local onde deveria ser encontrado. Pinto da Costa foi lá ter. Todos depositaram as caixas junto ao leito seco de um rio.

Um pouco mais tarde, pouco passava das quatro da manhã, Vieira encontrou-se com Brazão na área de serviço de Aveiras e dirigiram-se à Chamusca. 'Vamos para a guerra', exclamou Vieira quando viu Brazão.

O material "encontrado" foi levado para Santa Margarida - isto sem que tivessem sido feitas perícias forenses, deitando por terra qualquer vestígio dos autores do furto que ainda pudesse ter. E, também, os vestígios dos militares da GNR que o tinham ido buscar. O achamento veio a público cerca das 11.00 da manhã - e foi dado pelos media como uma operação de sucesso.

Até que a PJ terá desconfiado e começado a investigar. Em 25 de setembro de 2018 foi desencadeada a operação Húbris, sendo um dos visados João Paulino, além dos militares da PJM e da GNR envolvidos na encenação. Em 17 de dezembro foi a Húbris 2, tendo sido detido o núcleo duro de oito assaltantes.

Catarina Carvalho e Valentina Marcelino | Diário de Notícias

Toda a cobertura do DN sobre o caso de Tancos aqui.

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