Como foi possível o roubo ao
paiol militar de Tancos? Quem sabia o quê? Quem teve a ideia da "encenação
da entrega das armas"? O despacho de acusação conta tudo sobre o roubo de Tancos
e as suas motivações, segundo o MP. Uma história no mínimo mirabolante.
Era difícil resistir a uma
tentação como esta: paióis cheios de armas, sem segurança, prontas a serem levadas. João Paulino teve a
oportunidade perfeita para um traficante - de armas e droga. Ainda que não
fosse um grande traficante, caiu-lhe no colo toda a informação que lhe
permitiria um golpe perfeito, e, talvez, além das suas possibilidades. Ou,
pelo menos, em relação ao qual não podia prever todas as consequências, e o
terramoto, até político, que iria causar no país.
Para perceber como é que Paulino chegou a Tancos têm de entrar nesta história outras duas personagens. Filipe Sousa, furriel, colocado nos Paióis Nacionais de Tancos (PNT), e o seu tio Valter Abreu, conhecido por Pisca, por ter um dos olhos semifechado, consumidor de haxixe que, por sua vez, devia cerca de mil euros a Paulino de uma encomenda.
Para perceber como é que Paulino chegou a Tancos têm de entrar nesta história outras duas personagens. Filipe Sousa, furriel, colocado nos Paióis Nacionais de Tancos (PNT), e o seu tio Valter Abreu, conhecido por Pisca, por ter um dos olhos semifechado, consumidor de haxixe que, por sua vez, devia cerca de mil euros a Paulino de uma encomenda.
Estavam tio e sobrinho a ver
televisão, passava uma notícia sobre terrorismo e Filipe atirou para o ar:
"Se houvesse terrorismo em Portugal ou uma guerra, Tancos não estava
preparado."
Foi o arranque de uma conversa
sobre o trabalho que fazia naquela base militar. Pisca, com alguma manha,
segundo o MP, puxou pelo sobrinho e este revelou-lhe tudo sobre o sistema de
segurança, patrulhas, material que lá estava - de acordo com o que o próprio
assumiu durante os interrogatórios no DCIAP.
Sustentam os procuradores que
Filipe "falou abertamente sobre tudo: contou-lhe pormenores sobre as suas
funções no Regimento de Engenharia, descreveu-lhe o número, a periodicidade e a
natureza das rondas efetuadas - chegando a dizer que não tinham apoio
canino".
Durante o jantar "contou-lhe
ainda as fragilidades de segurança que reconhecia existir nos Paióis", bem
como "o tipo de material armazenado", principalmente o que estava nos
paióis 14 e 15. Apercebendo-se do interesse do tio, "descreveu ainda, em
pormenor, o tipo de fechaduras que estavam colocadas nas portas desses paióis,
referindo-lhe que eram velhas".
Na posse daquela
informação, Pisca fez o que alguém faz quando tem necessidade:
usou-a, trocando-a pelo perdão da dívida de droga que tinha com João Paulino.
Também "conhecia o seu interesse pelo material militar", contam os
investigadores.
O efeito ultrapassou as suas
expectativas. Não só Paulino esqueceu a dívida como ainda lhe deu mais haxixe.
Porque percebeu a oportunidade que lhe trazia o seu cliente. "Disse-lhe
que queria fazer os paióis, querendo com isso dizer que queria
assaltá-los", é dito na acusação.
Usou o seu bar, JB, em Ansião,
para os primeiros encontros e conversas com os cúmplices: Baião, Pedro
Marques, Hugo Santos, Gabriel Moreira, rapazes da sua confiança, por cujas mãos
já passava o tráfico de droga.
A estes juntou-se também
Laranginha, compadre de Paulino, padrinho da sua filha e com contactos no
tráfico internacional para escoar o material. Laranginha é arguido no processo
do furto das pistolas Glock da PSP, precisamente porque terá sido quem as
traficou para o mercado negro. Aliás, souberam os investigadores que uma destas
armas terá ido mesmo parar às mãos de João Paulino.
Segundo apurou o MP nos interrogatórios
aos outros arguidos, terá sido Laranginha quem anunciou que podia contactar
elementos da ETA - que viria a anunciar a sua dissolução em abril de 2018 -
para lhes vender os explosivos que desviassem.
Segundo a acusação, o objetivo de
João Paulino seria furtar as munições de 9mm, explosivos, granadas e
lança-foguetes. Partiu daqui a tão discutida imputação de suspeita de
terrorismo. Embora, conforme o DN já noticiou, uma tese que lançou dúvida nas
autoridades espanholas e que as portuguesas também não conseguiram esclarecer.
Redes sociais tramam arguidos
Apesar de estarem no tráfico de
armas e droga, o grupo de Paulino não se coibia de estar também presente nas
redes sociais - os investigadores fizeram boa parte destas conexões através das
páginas dos membros, nas quais publicavam fotos juntos, informações de perfil e
demonstravam deslocações. Além do tráfico, o grupo de amigos do Bar JB
jogava póquer periodicamente. E além do bar, também um restaurante em
Aveiro, propriedade de outro dos acusados, Jaime Oliveira, passou também a ser
ponto de encontro, por ser mais próximo de Pisca.
João Paulino, no seu tempo nos fuzileiros |
Sem pressas, o grupo percebeu bem
a complexidade do assalto, e planeou-o bem. Faltava-lhes, porém, quem
conseguisse abrir as portas do paiol. A peça que faltava seria Paulo
Lemos Fechaduras, que morava em Albufeira, e era amigo de um amigo de
infância de João Paulino, Fernando Guimarães, Nando. Ambos
trabalhavam em bares e discotecas algarvias. Fechaduras era um profissional conhecido no mundo do
crime, perito em arrombamentos e Nando até já o tinha
apresentado a Paulino, numa visita deste ao Algarve.
Na segunda quinzena do mês de
fevereiro e no mês de março de 2017, Paulino tratou de saber o máximo de
pormenores sobre os paióis, rotas possíveis de utilizar e foi adquirindo o
material que precisava, a maior parte das vezes na companhia de algum dos
membros do grupo. Estas deslocações, parte delas de noite e de madrugada, estão
registadas em equipamentos das autoestradas por onde passou.
Sabe-se, por exemplo, que a 10 de
março de 2017 almoçou em Sete Rios, em Lisboa,
com Nando e Fechaduras, para que este lhe explicasse com detalhe
como abrir as portas dos paióis. Nessa altura, João Paulino terá partilhado com
o larápio o plano que tinha na cabeça.
As autoridades têm inclusivamente
registos das pesquisas que Paulino fez nesse momento no Google, para mostrar
a Fechaduras as imagens dos paióis e o tipo de cadeados
usados. Até 'googlou' com a palavra-chave: "Destruir
fechaduras cross."
O saca-cilindros
que Fechaduras lhe sugeriu tinha a capacidade de arrombar o cadeado
em 15 segundos. Paulino ofereceu 50 mil euros a Paulo Lemos, pelo apoio
técnico. E, desta forma, nem o outro precisava de ir ao local.
Dias depois, o núcleo duro de
Paulino convidou Pisca e o sobrinho Filipe Sousa para tomarem um copo
no bar de Ansião. Filipe recordou todas as fragilidades dos paióis de Tancos e
a forma como poderiam ultrapassar a escassa segurança. Nesta altura, março de
2017, o furriel ainda comandava a guarda aos PNT.
Problemas de consciência e uma
denúncia que não serviu de nada
No
Algarve, Fechaduras começou, segundo o despacho da acusação, a
"refletir no seu passado de prática de crimes violentos relacionados com o
controlo de estabelecimentos de diversão noturna do Porto", investigados
no âmbito de um processo que ficou conhecido como Noite Branca, e nas "consequências que teve na sua
vida".
Um dos motivos por que se tinha
mudado para o Algarve tinha sido para se afastar do mundo do crime da zona do
Porto.
Meteu na cabeça que não ia
participar no assalto. Lembrou-se de uma das procuradoras do caso, que lhe
tinha arquivado o processo, dando-lhe uma segunda oportunidade para deixar a
vida do crime.
E os problemas de consciência
foram tão fortes que acabou por ligar para essa procuradora do DIAP do Porto e
revelou o plano de Paulino. A magistrada deu a informação à PJ, que abriu um
inquérito.
Com poucas informações, até
porque o próprio Fechaduras também não sabia os pormenores, a
magistrada transmitiu o que sabia: que havia um ex-assaltante que tinha sido
convidado para participar num assalto a uma instalação militar na zona centro,
mas "não sabia precisar qual, porque não tinha fixado".
Foi o que disseram na Comissão
Parlamentar de Inquérito, tanto a ex-procuradora-geral Joana Marques Vidal como
o diretor nacional da PJ, Luís Neves.
Entretanto, Paulino continuava
com os preparativos. Comprou na loja Soldiers, em Cascais, caixas para guardar
e enterrar o material. Foi a Espanha com a mulher comprar o saca-cilindros necessário
para abrir as portas dos paióis - no dia 16 de março, segundo o despacho.
Esta deslocação a Espanha
preocupou muito Paulino. Já no final desse ano, depois do assalto e depois do
achamento, sabendo que a PJ estava perto de o caçar, as escutas ambientais da
polícia ouviram esta conversa entre Paulino e Laranginha, transcrita para o
processo: "Tu não tens nada, porque tu não tens nada. Eu até nem sei
como é que me viu livrar de Espanha. Têm provas (...) Então eu fui lá com o meu
carro! (...) Estive lá como o meu telemóvel! (...) Abrem-te uma investigação
hoje, sabias? Hoje! Conseguem ir buscar o historial todo onde estiveste um ano
para trás!"
Oito operacionais, uma carrinha,
duas horas
No final de março, o plano estava
pronto a ser levado à prática. Só faltava aguardar pela rotação dos turnos das
rondas. A data para o furto "não foi aleatória", sublinha o MP.
Foi escolhida para quando fosse a
unidade de Filipe Santos a fazer a segurança e esta fosse "menos
rigorosa". O grupo foi constituído por oito operacionais: João Paulino,
Laranginha, Hugo Santos, Fernando Santos Baião, Gabriel Moreira, Pedro
Marques e Caveirinha.
Em junho, a situação de segurança de Tancos estava num ponto
crítico: nove câmaras do sistema de videovigilância estavam avariadas, tal
como os sensores, o sistema de deteção por vibração, as vedações e as torres de
vigia degradadas e sem guarnição, a iluminação deficiente - na estrada de
acesso aos paióis não havia qualquer luz, alarmes sonoros ou de iluminação.
E como também se tinha tornado
habitual, no dia 27 de junho a equipa do Regimento de Engenharia nº 1, que
deveria fazer a segurança dos paióis durante 24 horas, não fez qualquer ronda.
Ficou sempre dentro da casa da guarda.
Perto das duas da manhã, de dia
28 de junho de 2017, estavam junto aos paióis e o grupo de Paulino tinha as
condições ideais para atuar. A noite estava escura, pois era a fase da lua
nova.
Desligou os telemóveis e
juntou-se perto de Ansião e seguiu para Tancos. Alguns iam
numa pickup de caixa fechada, outros num Renault Mégane. Demoraram
cerca de uma hora a chegar, perto das duas da madrugada.
De luzes apagadas, seguiram pela
estrada de terra batida que circunda a base militar até à vedação perto de uma
das torres de vigia, onde não estava ninguém. No local, não havia qualquer
iluminação. Paulino e Valter saíram da carrinha e do automóvel, respetivamente.
Seguindo as ordens de
Paulino, Pisca entrou por um buraco da vedação exterior danificada e,
na segunda vedação, interior, usou um alicate para cortar os
arames, dando espaço suficiente para os outros poderem passar.
Voltou depois para o pé dos
carros para ficar de vigia. A ideia era desligar o cabo da bateria, para
simular uma avaria, e apertar a buzina caso alguém aparecesse.
Carrinhos de mão em ação.
Os outros saíram com luvas e
gorros. Tiraram da carrinha dois carrinhos de mão e entraram pelos orifícios da
rede. Percorrendo cerca de 550
metros , foram diretos aos paióis 14 e 15 que, segundo
lhes tinha dito Filipe Sousa, armazenavam o material que lhes interessava.
E foi com alguma tranquilidade
que foram carregando as caixas com o material de guerra nos carrinhos de mão
até à carrinha. Segundo os cálculos do MP, terão feito cinco ou seis percursos
de ida e volta, carregando várias caixas com material militar. Cada caixa, umas
de cartão, outras de madeira, pesava mais de 300 quilos.
Na carrinha taparam o material
com um cobertor, "para poderem disfarçar o que transportavam, na
eventualidade de virem a ser parados por uma operação stop". Nisto
levaram duas horas, entre as duas e as quatro da madrugada.
O MP divide o material
furtado em três níveis de "perigosidade": alta, baixa e nenhuma. No
primeiro caso estão os explosivos e as granadas ofensivas. "A
disponibilidade de material desta natureza é muito apetecível com vista à
execução de ataques terroristas", assinala o MP, havendo "histórico
de registos de utilização deste tipo de material em ataques terroristas de
matriz religiosa".
O material foi então levado para
Portela de Carregueiros, Tomar, para a propriedade da avó materna de Paulino. O
grupo que foi esconder as armas era o núcleo duro de Ansião: o próprio Paulino,
Laranginha, Baião, Pedro Marques, Hugo Santos, Tide e
Caveirinha.
Voltaram a Ansião quase às sete
da manhã - essa foi a hora em que os seus telemóveis começaram a ficar
ativados.
No dia seguinte, a 28, pelas
09.00 da manhã, a guarda dos paióis foi rendida sem que o assalto tivesse sido
detetado. Só pelas 16.30 foi dado o alerta do arrombamento.
Pelas 19.00 desse dia, estavam
João Paulino e Pedro Marques no Jumbo de Coimbra. No telemóvel apreendido, as
autoridades encontraram uma fotografia desse dia: João Paulino sentado no topo
de um carrinho de supermercado cheio de cervejas, inclinado para o lado com ar
sonolento - certamente devido à noite em branco.
A atenção dos media impediu venda
de armas
A atenção mediática dada ao caso
não tinha sido prevista por Paulino, talvez até com uma certa ingenuidade. Ele
estava mais habituado a trabalhar na sombra. E os problemas começaram quando
percebeu que a oportunidade para tirar o material da propriedade da avó ia
demorar e que, mesmo assim, teria sempre dificuldade em escoar aquele
material tão específico - a origem seria facilmente detetada.
Por outro lado, as notícias dos jornais já vinham com muitos pormenores
sobre o assalto e os suspeitos, o que dava a entender que poderia ter
havido alguma traição no grupo. Tudo apontava para Fechaduras, que era
um outsider. E a Polícia Judiciária andava no encalço de João Paulino.
Tudo indicava que seria uma questão de tempo até os apanhar.
A tensão criou desentendimentos
no grupo. Baião deixou o bar e emigrou para a Suíça em setembro de
2017, e os outros reclamavam de Paulino os respetivos dividendos pelo
assalto. Com a mercadoria parada, e sem possibilidades de lucrar com ela,
o traficante rapidamente concluiu que o melhor era devolver o material. Ou
pelo menos a maior parte, a que fosse mais difícil de escoar.
Ficaria com as munições, algumas
granadas, cargas lineares de corte (explosivos) e um disparador de
descompressão. O material sobre o qual não se sabe o paradeiro ainda, porque
Paulino remeteu-se ao silêncio desde que foi preso.
Mas como iria um traficante
devolver armas sem acabar preso? Paulino lembrou-se então do amigo de infância,
Bruno Ataíde, que era militar da GNR e estava colocado no Núcleo de
Investigação Criminal de Loulé. Falou com ele, contou-lhe da aflição e
começou a planear a entrega do material sem que o seu nome ficasse queimado.
Bruno Ataíde aproveitou ajudar o
amigo para brilhar dentro do corpo, levando a proposta aos seus superiores -
sempre era um caso nacional que ajudariam a resolver. E foi assim que a ideia
chegou à Polícia Judiciária Militar, por intermédio da GNR de Loulé.
Mas esta foi apenas mais uma
coincidência deste caso. Porque a própria PJM, liderada pelo diretor Luís
Vieira, já tinha, por seu lado, iniciado uma investigação paralela e tentado
chegar à fala com Fechaduras - isto à revelia da PJ e do MP, que
estavam a tentar esclarecer tudo o que se tinha passado.
A farsa da PJM
Segundo o MP, pouco depois de o
assalto ter sido conhecido, nos dias 28 e 29, o inspetor da PJ que tinha
recebido a denúncia em março ligou ao inspetor da PJM Pinto da Costa a recordar
a conversa que tinham tido meses antes sobre esse assunto.
Foi só nesse momento que Pinto da
Costa a revelou ao diretor Luís Vieira dizendo que a Unidade Nacional de
Combate ao Terrorismo da PJ estaria a caminho do Algarve para interrogar o
tal Fechaduras - seria ele o informador da denúncia.
Luís Vieira quis que a PJM
acompanhasse a PJ na sua ida ao Algarve para falar com Fechaduras, o que
foi negado pelo então diretor da UNCT Luís Neves, atual diretor nacional da PJ.
A justificação foi de que isso podia prejudicar a estratégia, pelo excessivo
número de investigadores no terreno. Nesta altura, esta investigação ainda
não estava com a PJ e esta diligência iria ser feita no âmbito do inquérito
aberto em março, com base na dita denúncia.
Vieira não terá gostado da
rejeição, mas não esqueceu o caso, até porque a GNR de Loulé continuava a
recolher informação de Fechaduras e a passá-la a Pinto da Costa,
inclusivamente através de correio eletrónico - está na acusação.
No entender do MP, Luís Vieira
sentiu que esta informação preciosa podia ser o primeiro passo para a PJM
vingar nesta investigação.
Entretanto, Pinto da Costa fala
com Lage de Carvalho, sargento da GNR destacado na PJM que tinha contactos com
Lima Santos, na GNR em Loulé. É assim que começa a boa cumplicidade entre estes
militares da GNR e da PJM - amigos e companheiros de armas em instituições
habituadas a regras próprias de uma cultura castrense.
Ainda no dia 1 de julho, Lage de
Carvalho enviou um e-mail a Pinto da Costa, com o seguinte texto:
"(...resta-nos esperar pela evolução da investigação do Sr. Doutor da PJ
Civil, mas acho que ainda nos vamos rir... infelizmente, parece-me que ainda
vai acontecer outro 'Pedro Dias' ... que nós sabíamos onde ele ia passar e...
passou... :-)"
Não foi difícil
encontrar Fechaduras, está claro. Pela sua carreira no crime e a ligação
ao processo Noite Branca, era uma figura conhecida mesmo no Algarve, onde
continuava a trabalhar em estabelecimentos de diversão noturna.
As informações corriam para a
frente e para trás, quando a PGR decide entregar o processo do assalto de
Tancos à PJ. O inquérito não seria por crimes estritamente militares, mas teria
um campo mais alargado: associação criminosa, tráfico de armas internacional e
terrorismo.
Joana Marques Vidal informou
pessoalmente Luís Vieira dessa decisão, que terá ficado furioso e protestado,
alegando que a decisão estava a violar várias leis. "A conversa foi
tensa", resume o MP, e "Luís Vieira teve uma reação desabrida".
Ficou "muito
revoltado", principalmente porque se apercebeu de que "a decisão era
irreversível". Por isso, "como expressão da sua húbris, decidiu,
imediatamente, tentar por qualquer via, designadamente jurídica, política e ao
mais alto nível, a reversão da mesma".
Segundo o MP, que corrobora o
processo de investigação da PJ, Vieira ter-se-á sentido vexado, ainda na
ressaca de casos, como o roubo das armas na Carregueira e no Alfeite (que a PJM
não resolveu) e do processo das mortes nos comandos.
E terá decidido, logo ali, que a
PJM continuaria a sua própria investigação, "pois tinha o objetivo de
mostrar ao país e ao Exército Português que conseguiria recuperar o material
militar subtraído". Via Tancos como uma tábua de salvação para a PJM
recuperar o prestígio perdido.
E a partir daqui Vieira e Brazão
terão começado a arquitetar o que o MP chama de "pacto criminoso".
Enquanto a GNR de Loulé tratava da aproximação a Fechaduras, orientada por
Lage de Carvalho, em Lisboa, Vieira e Brazão tentavam reverter a decisão da
PGR. Vieira multiplicou-se em encontros e conversas com Azeredo Lopes e também
com o chefe da casa militar do Presidente da República, tenente-general João
Cordeiro.
As antenas de telemóveis registam
a presença de Luís Vieira na casa de Azeredo Lopes a 3 de julho de 2017, pelas 20.00, dia
em que a PGR lhe tinha ligado a dizer que a PJ dirigiria a investigação. No dia
seguinte estariam em Tancos, com o Presidente da República.
No dia seguinte, o Presidente da
República deslocou-se aos paióis. Numa reunião à porta fechada depois da
visita, em que participaram cerca de 20 pessoas, entre as quais Marcelo Rebelo
de Sousa, Azeredo, o seu chefe de gabinete, Martins Pereira, o secretário de
Estado da Defesa, Marcos Perestrello, e o CEMGFA Pina Monteiro, o coronel Luís
Vieira desabafou a sua revolta sobre a titularidade do inquérito, revelando que
em março tinha havido uma denúncia sobre a preparação de um assalto e que
ninguém os tinha avisado - o que como já se sabe, seria falso, pois Pinto da
Costa sabia, mas não o avisou.
As "promessas" de
Marcelo
Mais tarde, para tentar saber o
impacto que a sua conversa teria tido em Marcelo Rebelo de Sousa, Vieira fez
diversas chamadas para o chefe da casa militar de Belém, registadas pelas
antenas das operadoras de comunicações.
No dia 15 de julho, Vieira enviou
um e-mail a si próprio com um conjunto de tópicos sobre a reunião em
Tancos:
"1- Visita aos paióis com
investigadores da PJM a explicarem ao PR o que se passou.
2- Reunião, porta fechada. na
mesa: PR, MDN, Chefe da Casa Militar, Eu, SEDN, CEME e CEMGFA.
3- À volta assessores e oficiais.
4- A conversa só entre mim e o
PM. Perguntava-me pormenores. Eu disse-lhe: Sr. Presidente tem atrás de mim os
investigadores que estiveram aqui 4 dias e 4 noites sem se deitarem. Eles sabem
responder a isso. Mas, outra coisa que me preocupa, tive um telefonema da PGR a
dizer-me que não teria inquérito. A PJ ficava com ele.
5- Respondeu-me que havia uma
dramatização e que teria de ter paciência. Insisti com o quadro jurídico da PJM
que tem neste facto competências específicas, exclusivas.
6- Entretanto, os meus
investigadores intervieram e responderam aos pormenores que o PR queria.
7- O PR acabou por prometer que
iria estudar, depois falar com a PGR, enquanto o MDN falaria com a sua
congénere (Vieira revelou isto mesmo na Comissão Parlamentar de Inquérito, mas
Belém negou perentoriamente que Marcelo tivesse feito tal promessa).
No início de agosto, Vieira pediu
um parecer sobre a entrega da investigação à PJ ao jurista Rui Pereira, enviado a 4 de agosto. No processo
está esse pedido que, escrito pelo então responsável oficial pela investigação
ao caso, João Bengalinha, era explícito que se destinava ao caso de Tancos.
A entrega encenada, uma ideia
genial
A denúncia
de Fechaduras foi, portanto, o fio que começou a desenrolar esta
meada de várias formas, mas uma série de coincidências ajudaram. O facto do GNR
Bruno Ataíde conhecer Paulino é uma delas.
Na altura em que o processo
começa a desenrolar-se há o contacto entre Bruno e Paulino - não é muito claro
o que acontece primeiro - se o contacto da GNR de Loulé
com Fechaduras ou o de Paulino com Ataíde - mas é nessa altura que o
traficante sabe que a PJM estava já atrás de Fechaduras, que fica mais
alarmado, e que abre o jogo com o amigo. Pelos cálculos dos investigadores,
isto terá acontecido ainda antes de final de julho de 2017.
Ataíde informou Lima Santos, que
comandava o NIC, e o guarda José Gonçalves, da sua confiança, do plano de
recuperação das armas. Por sua vez, Lima Santos informou o seu superior Luís
Sequeira. Já todos sabiam que a investigação devia ser dirigida pela PJ, mas a
nenhum isso importou.
Por indicação de Sequeira, Lima
Santos deu conta da proposta de Paulino a Mário Lage de Carvalho, da PJM. Este
informou Pinto da Costa que a transmitiu ao diretor Luís Vieira e a Vasco
Brazão.
E aí, em vez de avisarem a PJ,
como mandaria a lei, todos combinaram a ação de "entrega" das armas.
Acordaram que, juntamente com a GNR de Loulé, iriam, clandestinamente,
organizar a recuperação das armas nos termos de João Paulino - um criminoso.
Mesmo sendo uma operação ilegal, a colaboração da GNR de Loulé com a PJM
necessitava de autorização superior do então diretor da investigação criminal
da GNR, coronel Taciano Correia, pois teriam de se deslocar para fora da sua
área de jurisdição, para o distrito de Santarém.
Vieira ligou-lhe diretamente e
falou claro: deu-lhe conta da sua revolta por a PJM ter sido afastada e que
tinha decidido fazer uma investigação paralela, no âmbito da qual o NIC de
Loulé tinha um papel determinante. Falou de Paulino, o indivíduo que tinha
participado no assalto e estava disposto a devolver o material, desde que não
fosse incriminado.
Todas estas movimentações e
aproximações da GNR e da PJM aos suspeitos comprometeram drasticamente a
investigação do MP e da PJ - os suspeitos souberam que estavam a ser vigiados e
mudaram comportamentos, impedindo a recolha de provas.
Durante o tempo que decorreram as
negociações, o militar da GNR Bruno Ataíde vai mantendo informado Lima Santos e
este Lage de Carvalho sobre as negociações com Paulino. Em setembro, os
militares da PJM, Brazão, Pinto da Costa, Lage de Carvalho e José Gonçalves,
vão ao local onde Paulino tinha escondido o material, na propriedade da avó.
Nessa noite, o grupo reúne-se em Paço de Arcos com Lima Santos e Bruno Ataíde.
E Brazão liga a Vieira a contar o que acontecera nesse dia.
Combinam a encenação, a chamada
anónima simulada e o alibi para a presença dos militares da GNR de Loulé
naquela zona. Está também registada uma conversa de Luís Vieira para Martins
Pereira, em finais de setembro, dando a entender que a qualquer momento as
armas podem se encontradas, pedindo apoio do Exército. O MP diz que Azeredo foi
informado de tudo.
O dia do achamento
No início da madrugada de dia 18
de outubro, Bruno Ataíde e Lima Santos estiveram com Paulino na propriedade da
avó e este passou-lhes o material que tinha escondido. Todos tinham os
telemóveis desligados. Pouco depois das duas da manhã, Ataíde e Lima Santos
foram para a Chamusca onde se encontraram com Lage de Carvalho e José
Gonçalves. Depois de confirmado que o material era mesmo o que tinha sido
furtado, os cinco deslocaram-se para o local onde deveria ser encontrado. Pinto
da Costa foi lá ter. Todos depositaram as caixas junto ao leito seco de um rio.
Um pouco mais tarde, pouco
passava das quatro da manhã, Vieira encontrou-se com Brazão na área de serviço
de Aveiras e dirigiram-se à Chamusca. 'Vamos para a guerra', exclamou Vieira
quando viu Brazão.
O material "encontrado"
foi levado para Santa Margarida - isto sem que tivessem sido feitas perícias
forenses, deitando por terra qualquer vestígio dos autores do furto que ainda
pudesse ter. E, também, os vestígios dos militares da GNR que o tinham ido
buscar. O achamento veio a público cerca das 11.00 da manhã - e foi dado
pelos media como uma operação de sucesso.
Até que a PJ terá desconfiado e
começado a investigar. Em 25 de setembro de 2018 foi desencadeada a operação
Húbris, sendo um dos visados João Paulino, além dos militares da PJM e da GNR
envolvidos na encenação. Em 17 de dezembro foi a Húbris 2, tendo sido detido o
núcleo duro de oito assaltantes.
Catarina Carvalho e Valentina
Marcelino | Diário de Notícias
Toda a cobertura do DN sobre o
caso de Tancos aqui.
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