sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Para Trump, a mudança de regime começa em casa


A administração Trump provoca um intenso mal-estar interno. Tal como se verificou com a sua eleição e sobretudo com a base social que o elegeu, assenta sobre uma aguda fractura interna. A forma como exerce o poder lança a confusão entre os Democratas. Habituados ao partido único dividido em duas facções – a “republicana” e a “democrata” - mas unido em todos os aspectos políticos essenciais e, desse modo, incapaz de albergar qualquer “oposição” efectiva, decidiram avançar com um processo de «impeachment».


Um mês depois de vencer a eleição presidencial de 2016, Donald Trump fez um discurso na Carolina do Norte onde declarou que “cessaremos de competir para derrubar regimes estrangeiros acerca dos quais nada sabemos, com os quais não deveríamos envolver-nos”.
Ainda é um lugar comum para os analistas de política externa de esquerda, direita, centro distinguirem Trump dos seus antecessores apontando que ele não seguiu as políticas de regime de neoconservadores ou internacionalistas liberais. No fim de contas, não houve Iraque ou Líbia no turno de Trump.

É um bonito mito.

É verdade que Trump não tem nada contra ditadores que lhe escrevem cartas “bonitas”, e portanto a mudança de regime está por enquanto fora de cogitação para a Coreia do Norte. Mas Trump desenvolveu um animus específico contra Nicolas Maduro, da Venezuela, e fez o que pôde para afastá-lo do cargo. Primeiro, Trump pronunciou-se sobre a opção militar. Depois estabeleceu sanções contra o país. Finalmente, apoiou o que poderia ter sido um golpe se os conspiradores não tivessem feito disso uma balbúrdia.

Com o Irão, a política de mudança de regime tem sido ao mesmo tempo mais subtil e mais agressiva. Em vez de incentivar um golpe dentro do país, Trump tem desenvolvido uma variedade de estratégias diferentes para espremer o regime.

Primeiro, retirou-se do acordo nuclear com o Irão (passando por cima das objeções de vários dos seus principais assessores). Depois, impôs sanções cada vez mais punitivas ao país e pressionou duramente as nações que continuavam a importar energia de Teerão. Finalmente, continuou a apoiar a Arábia Saudita enquanto esta tenta desestabilizar o Irão.

Até agora, Trump não enviou soldados. Mas o objectivo da administração continua o mesmo.

Obviamente, Trump nega que o seu objectivo seja a mudança de regime. Mas o que Trump diz realmente não importa. A sua retórica flutua sobre a realidade como o fumo sobre uma cidade.

Mais do que debater os pontos mais delicados dos objectivos de Trump - que mudam de dia para dia, talvez de minuto a minuto - vamos inverter a objectiva. Se é difícil determinar com precisão quais são as intenções de Trump em relação a países sobre os quais nada conhece, é muito mais fácil descobrir o que Trump quer fazer no único país que ele de algum modo conhece.

Trump quer mudança de regime nos Estados Unidos. Não está interessado em mudar a liderança na Casa Branca, desde que esteja a ocupar o Salão Oval. Mas quer mudar a própria natureza do governo.

A Fox News e outras adoram falar sobre um “golpe” empreendido por um “estado profundo”, desesperado em remover Trump do poder. É apenas mais um exemplo da direita radical a projectar as suas esperanças e medos ocultos sobre os seus adversários.

O golpe é real. Mas tudo se resume a Trump transformar a governança americana a partir de dentro e expandir ao máximo o poder executivo. Não se trata de Trump versus o “estado profundo”. É Trump versus o Estado, ponto final.

Incrivelmente, Trump tem estado ocupado em recrutar os serviços de líderes estrangeiros que podem ajudar a fazer acontecer isso. E é essa malfeitoria - além dos seus outros crimes - que levou Nancy Pelosi e os Democratas a tentarem uma mudança de regime por sua conta.

Da Noruega para a Ucrânia

Trump desrespeitou as regras e os regulamentos dos EUA, contando com o incorrigível amor americano pelos foras da lei para manter a sua base política. A publicação do relatório Mueller, que detalhava as malfeitorias da campanha de Trump e as suas conexões com a Rússia, deveria ter feito o presidente pensar duas vezes antes de, de novo, recrutar os serviços de um governo estrangeiro para melhorar as suas próprias perspectivas eleitorais.

Mas, quando interrogado por George Stephanopoulos da ABC, em 13 de Junho, Trump respondeu: “Se alguém ligasse de um país, Noruega, ‘temos informações sobre o seu oponente’, penso que gostaria de as ouvir… Não é uma interferência, eles têm informações - penso que aceitaria.” A lei federal proíbe, é claro, a solicitação de qualquer coisa relevante por parte de um governo estrangeiro em conexão com uma eleição.

No mês seguinte, Trump deu a volta ao guião. Em vez de um líder estrangeiro a telefonar com um pedaço suculento de informação, o próprio Trump estava a tentar extrair informações de um relutante ou pelo menos desconfortável interlocutor. Em conversa telefónica com Volodymyr Zelensky, Trump teria pressionado o presidente ucraniano a iniciar uma investigação de corrupção sobre os negócios de Hunter Biden, filho de Joe Biden.

Alguém na comunidade dos serviços de informações que ouviu o telefonema - e possivelmente outras comunicações de Trump com líderes estrangeiros - decidiu que o presidente tinha ultrapassado uma linha. Essa pessoa divulgou, e foi assim que a chamada telefónica chegou ao conhecimento público.

Trump admite que falou sobre Biden com o líder ucraniano. Admite até que suspendeu a ajuda militar dos EUA à Ucrânia antes do telefonema. Mas Trump nega qualquer irregularidade, incluindo qualquer sugestão de que a ajuda dos EUA pararia de fluir se Zelensky não desse satisfação ao pedido.

Trump, como sempre, tentou virar o bico ao prego acusando Joe Biden e seu filho de irregularidades. Hunter Biden prestara serviço no conselho de administração de uma grande empresa ucraniana de gás natural, Burisma, enquanto o seu pai era vice-presidente.

Embora não haja qualquer prova de que a posição de Hunter Biden tenha afectado a política da administração Obama em relação à Ucrânia, isso não impediu o cão de fila de Trump, Rudy Giuliani, de tentar fabricar essa conexão. Em 2018, Giuliani começou a construir um caso em tornos de que Biden pressionara o governo ucraniano a demitir o seu procurador-geral Viktor Shokin porque este estava a investigar Hunter Biden e o cofundador de Burisma, Mykola Zlochevsky.

Tal como Adam Entous explica no The New Yorker:

Não existe qualquer prova credível ​​de que Biden tenha procurado a remoção de Shokin para proteger Hunter. Segundo com Amos Hochstein, enviado especial do governo Obama para a política energética, Shokin foi removido por causa de preocupações do Fundo Monetário Internacional, da União Europeia e do governo dos EUA de que não estava a dar andamento a investigações sobre corrupção. Contrariando as afirmações de que Shokin fora demitido por estar a investigar Burisma e Zlochevsky, Hochstein disse: “muitos de nós no governo dos EUA acreditávamos que era Shokin quem protegia Zlochevsky”.

Que se danem os factos, os partidários republicanos de Trump debatem-se para se antecipar ao escândalo. O mais destacado Republicano no Comitê de Inteligência da Câmara, Devin Nunes (R-CA), seguindo o velho guião do Russiagate, imediatamente atribuiu toda a responsabilidade a Hillary Clinton e à investigação da oposição que ela havia desenterrado sobre as conexões ucranianas de Hunter Biden para contrariar a possível candidatura presidencial do seu pai em 2016. O senador Lindsey Graham (R-SC) instou Trump a divulgar uma transcrição da conversa telefónica, porque está convencido de que ela ilibará Trump.

Não é o próprio escândalo que revela o abuso do executivo de Trump. É sua jovial desconsideração de todas as regras na sua busca pelo poder absoluto. Ele simplesmente recusa-se a ser algemado (literal e figurativamente).

Numa democracia, o Estado – os seus controlos e contrapesos, a sua burocracia - é a caixa que contém qualquer potencial autocrata. O Partido Republicano adoptou sua filosofia antiestatista em grande parte para beneficiar as empresas e os ricos. Trump tem uma agenda diferente. Ele é contra o Estado americano em grande parte para seu próprio benefício.

O canto de sereia do impeachment

Os Democratas têm estado num dilema desde praticamente o primeiro dia do governo Trump.

Aqui estava um presidente cujos crimes e malfeitorias precederam sua assunção do cargo. Mas nos dois primeiros anos do mandato de Trump, os democratas eram minoria nas duas câmaras do Congresso. Depois de 2018, controlaram o Parlamento, o que significou que poderiam iniciar uma série de investigações que o presidente e sua equipe bloquearam. Como o Senado permanece nas mãos dos republicanos, o impeachment continua a ser um tiro no escuro.

E, no entanto, Trump continua a agir com impunidade. Assim, a chamada da Ucrânia emergiu como a proverbial linha na areia. Vários democratas proeminentes ameaçaram prosseguir com o impeachment se Trump não divulgasse todo o conteúdo da sua conversa com Zelensky. Alguns Democratas em outros aspectos centristas, como Dean Phillips, de Minnesota, e Abigail Spanberger, da Virgínia, aderiram ao movimento.

Trump recuou prometendo divulgar tanto uma transcrição da sua chamada telefónica com Zelensky como a queixa do denunciante. Mas Pelosi decidiu na terça-feira prosseguir em qualquer caso com o inquérito visando o impeachment. De momento, parece que o inquérito de impeachment se apenas se focará no assunto ucraniano não nas outras questões financeiras e de obstrução que as comissões do Congresso estão a investigar.

O impeachment de Trump é, nesta altura, uma necessidade legal e moral. É também é muito provável que seja uma armadilha política.

Trump regala-se com o papel de um oprimido, perseguido pelos poderosos. É o que lhe permite ligar-se a uma base política que, para além dos seus financiadores de largos bolsos, se sente desprovida de poder por uma economia fraudulenta e um sistema político esclerótico. O impeachment, para esse eleitorado, justifica a narrativa do “estado profundo”.

De facto, sugere que todo o Estado anda à caça de Trump – o que está e deveria estar. Mas o impeachment é a única coisa que pode transformar o homem mais poderoso do mundo em uma vítima encurralada e, portanto, para um número significativo de eleitores americanos, num personagem simpático.

Ainda melhor para Trump se o impeachment assenta neste escândalo em particular. A transcrição em bruto da chamada telefónica, divulgada na quarta-feira, não iliba o presidente. Demonstra que ele invoca os Biden como parte de uma oferta implícita de maior assistência à Ucrânia. Mas também não o enterra, já que não há um quid pro quo específico. Uma transcrição mais abrangente, bem como a queixa completa do denunciante, podem fornecer mais detalhes. Mas haverá inevitavelmente espaço para interpretação, e Trump conduzirá o bulldozer da sua campanha de reeleição através dessa brecha.

A opinião pública, neste momento inicial, é contra o impeachment. De acordo com uma sondagem da Quinnipiac divulgada na manhã de quarta-feira, que não reflete os acontecimentos dos últimos dias, mostra que 37% dos americanos são favoráveis ao impeachment e 57% se opõem. Virtualmente, nenhum republicano apoia o impeachment.

No entanto, se os Democratas tivessem continuado a tergiversar, pareceriam fracos e sem a liderança necessária para governar o país. Apaziguar Trump não é uma boa estratégia eleitoral.

Não há uma maneira fácil de sair dessa situação impossível. Mas vamos pensar dentro da caixa. Ou melhor, dentro do ringue de boxe.

Num comício no ano passado, Biden disse de Trump: “Se estivéssemos na escola secundária, eu levava-o para as traseiras do ginásio e espancava-o.” Trump respondeu por tweet: “Ele não me conhece, mas iria ao chão rápido e à bruta, chorando todo o caminho.”

Então, deixemos Trump e Biden travar um combate real, os dois sozinhos nas traseiras da Casa Branca. Se o país tiver sorte, derrotar-se-ão um ao outro - e ficarão fora de disputa em 2020. Seria uma prenda de mudança de regime para ambos os partidos políticos. E talvez alguém que não esteja tão tonto de ser esmurrado ocupe o Salão Oval em 2021.


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