terça-feira, 29 de outubro de 2019

Angola | Fuga da crise


Victor Silva | Jornal de Angola | opinião

Está a tornar-se coincidente a ideia de que, afinal, vivíamos uma realidade mascarada, fantasiada de realizações faraónicas que não saiam do papel mas torravam milhões e milhões, qual delas menos prioritária que a outra, numa inversão criminosa do interesse colectivo pelo individual ou de grupos.

Quer no MPLA, primeiro, por ter reconhecido ser urgente mudar o quadro, adoptando o lema de corrigir o que está mal, quer, depois, na oposição e na sociedade civil que se foram apercebendo da dimensão da crise em que o país estava mergulhado. A população, no geral, está a constatar dolorosamente essa situação, com a carestia do nível de vida que não pode ser responsabilidade única das medidas de estabilização macroeconómicas que o Governo tem vindo a adoptar.

O país foi saqueado e delapidado cruel e, repito, criminosamente, a pontos de ter atingido níveis de endividamento preocupantes que condicionam a execução dos vários programas para o relançamento da economia depois de anos seguidos de recessão.

A crise não foi “descoberta” pelo Governo liderado por João Lourenço. Ela já vem de há muitos anos atrás. Como a memória tem tendência a estreitar-se no tempo, recua-se ao ano de 2014, embora se saiba que já antes, no subprime, em 2007/8, as campainhas tivessem tocado com muitos “iluminados” da praça a dizerem do alto do seu pedestal, que Angola estava imune à crise.

Desde essa época, portanto, que o país não se reergueu porque não soube ou não quis fazer as reformas que então se impunham, até porque as envolventes externas eram favoráveis ao apetite insaciável da elite que trabalhava no bas found para se apoderar das principais riquezas do país, com o preço do barril de petróleo a atingir números nunca vistos.

Ao invés de se ter aproveitado a bonança para dar corpo e músculo ao tão propalado programa de diversificação da economia, enveredou-se pela acumulação primitiva de capital que incluía obras faraónicas de esferovite que tornaram gente rica da noite para o dia, melhor que qualquer “el dorado” de ficção.

Tão grave como o saque foi o descaso da autoridade, com a justiça literalmente cega a não ser para “fazer de contas” com uns quantos casos de pilha galinhas e ladrões de telemóveis e uns poucos juízos apimentados que resultaram em nada, trespassando a ideia de impunidade que se impôs e que levou a que o anormal passasse a ser normal, num enredo em que quase todos nos vimos envolvidos, de forma directa ou indirecta, como reflexo dos exemplos que vinham de cima e da lei de sobrevivência.

As referências éticas e morais ficaram-se pelas excepções que confirmam a regra e quem ousasse apontar caminhos diferentes, criticar o status quo, era ostracizado e não poucas vezes acendia os holofotes de uma justiça amorfa que, nesses casos de punição às liberdades, mostrava uma ligeireza que não se conhecia no combate à criminalidade, sobretudo a chamada de colarinho branco.

A corrupção e a impunidade eram (são) grandes tumores na sociedade e as suas metástases estavam espalhadas por toda a administração pública e outros serviços, privados, inclusive, no efeito gasosa ou mixa, dependendo do grau de quem a praticava, tendo como destino preferencial o estrangeiro para onde foi levado uma boa parte do dinheiro que era suposto ser de todos.

Por força dessa ambição, foram-se adiando as reformas que a economia exigia e eram inevitáveis para a sustentabilidade do país. A situação por mais fantasiosa que fosse era insustentável e hoje, olhando friamente para a realidade, pode questionar-se se a tal transição pacifica, a saída pelos seus próprios pés, não era mesmo uma inevitabilidade, tal o quadro dantesco em que se encontram as contas públicas.

Corrigir o que está mal vai levar tempo, pois seguramente que, apesar de pertencerem à mesma família política, as novas autoridades não tinham a real dimensão do buraco nas finanças públicas e no novelo em que estão emanharadas, deixando pouca ou quase nenhum folga para outros exercícios para os quais não basta a boa vontade ou a vontade política.

Sem estabilidade macroeconómica o país não poderá voltar à era do crescimento, que tudo aponta venha a acontecer a partir do próximo ano. Até se encontrar o ponto de equilíbrio, a vida vai continuar difícil para todos, com a desvalorização da moeda, a retirada de subsídios a alguns bens e serviços e o aproveitamento especulativo que muitos estão a fazer da situação, bem ao estilo dos “milagreiros” que agora aparecem como defensores dos coitadinhos, prometendo mundos e fundos e questionando tudo e todos, mas que fogem da justiça como o diabo da cruz por saberem que o tempo em que a usaram e instrumentalizaram a seu bel-prazer terminou.

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