quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Portugal | A cega que só vê o que quer


Paulo Baldaia | Jornal de Notícias | opinião

Tenho vergonha de uma sociedade que prende preventivamente uma mulher que joga no meio do lixo o filho acabado de nascer. Tenho vergonha de uma justiça que parou num dia qualquer há mais de quatro mil anos, sentenciando "olho por olho, dente por dente" e jogando essa mulher no meio do lixo.

Quem pode não saber que uma mulher assim, jovem e sem-abrigo, é alguém que acumula tanto sofrimento que torna impossível que não seja cada um de nós tão ou mais culpado que ela pelo que a ela e ao seu filho aconteceu? Quem pode ser tão cruel para se apressar a castigar quem precisa de ajuda psicológica e tratamento médico?

Não nos podemos iludir, esta decisão não é fruto de um algoritmo, não nasce do acaso. Brota de uma agenda populista, de uma Comunicação Social tabloide que semeia culpas para colher sentenças, de comentadores e políticos justiceiros a quem uma parte do Ministério Público e alguns juízes gostam de fazer a vontade. Uma imigrante africana, desinserida da sociedade, que cometeu o crime de abandonar um recém-nascido em condições que podiam ter sido fatais só é um caso a necessitar de uma "sentença" exemplar para uma justiça que alinha as suas preocupações com os populistas, que não têm nunca disponibilidade para procurar resolver, antes se apressam a condenar sem querer saber como foi possível. Sim, é evidente que neste caso a prisão preventiva funciona como castigo. Não se destina a evitar a continuidade da prática criminosa, nem pode presumir a capacidade da arguida prejudicar a investigação estando em liberdade. Fugir, sim, admito que lhe tenha passado pela cabeça, muitas vezes, fugir do destino que lhe coube em má sorte.

Esta justiça que procura estar sintonizada com a horda de justiceiros, que não hesita quando é para prender, é uma justiça que não procura ser justa e que quer ter as mãos mais livres para ser discricionária e agir de acordo com interesses próprios. Esta não é a justiça que queremos cega para não olhar a quem, é uma justiça que espreita pelo canto da venda. O supremo magistrado da nação convoca a "compreensão humana para o ambiente que rodeou o gesto daquela mulher" e deixou "uma palavra especial a pensar no drama daquela mãe que, numa situação de desespero, foi levada a fazer aquilo que fez". O que Marcelo nos lembrou só não vê quem não quer. Que lhes pese na consciência a decisão que tomaram.

*Jornalista

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