sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Portugal | Um país próspero não é isto


Anselmo Crespo | Diário de Notícias | opinião

Uma senhora entra com o marido num centro de saúde com uma queimadura de segundo grau na mão. Aguarda, pacientemente, a sua vez até a chamarem. O diagnóstico é simples, o tratamento também. Basta aplicar uma pomada, proteger a mão com umas ligaduras, impedir a todo o custo que a zona da queimadura apanhe água e aguardar a cicatrização. Problema? O centro de saúde não tem a pomada necessária para fazer o curativo. Acabou. E, por qualquer motivo, não foi reposta. Se quiser ser tratada, esta senhora tem que sair do centro de saúde, ir a uma farmácia, pagar quatro euros para comprar a pomada, regressar ao centro de saúde e fazer o curativo. Foi essa a sugestão que lhe fizeram e foi isso que esta senhora fez. Incrédula, mas foi isso que fez.

Por mais que gostasse de ter inventado esta história de terceiro mundo, ela aconteceu mesmo. E não foi há 10 anos, foi em 2019, esta semana, a mesma em que, no Parlamento, António Costa jurava a pés juntos que estava virada a página da austeridade e que vinha aí a prosperidade. Não vem. Nem a prosperidade está aí à espreita, nem a austeridade em Portugal é uma realidade ultrapassada. E a saúde é, provavelmente, o exemplo mais gritante.

Um país próspero não deixa acabar os medicamentos nos centros de saúde e nos hospitais, nem obriga os seus utentes, aqueles que descontaram durante anos para o Estado, a pagarem mais por um tratamento do que aquilo que têm para viver.

Um país próspero não tem hospitais públicos indignos, sem o mínimo de condições, com doentes em agonia amontoados em corredores. Não deixa os seus cidadãos meses à espera de uma consulta ou, pior ainda, de uma cirurgia, sujeitos a morrerem enquanto esperam.

Um país próspero não permite que fechem as urgências pediátricas de um hospital por falta de profissionais de saúde. Não trata crianças com doenças oncológicas em contentores. Nem deixa pessoas morrerem por falta de assistência médica urgente.


Um país próspero não divide a sociedade entre os "privilegiados" e os "outros." Entre os que têm um seguro de saúde e podem ser tratados em hospitais privados, com todo o conforto - que qualquer cidadão merece - e os que, por falta de condição financeira ou simplesmente porque não são funcionários públicos, ficam entregues à sua própria sorte.

Um país próspero não permite que uma consulta de especialidade no privado, com seguro de saúde, seja mais barata que uma urgência no Serviço Nacional de Saúde.

Um país próspero não trata os seus profissionais de saúde de uma forma humilhante. Não lhes paga um salário miserável, não lhes dá condições degradantes para trabalharem e não os obriga a fugirem para o setor privado ou, pior ainda, a emigrarem.

Acenar com a prosperidade num país onde tudo isto acontece é, no mínimo, insultuoso. Porque falta fazer o básico. Falta garantir aos cidadãos que trabalham e pagam impostos aquilo que a constituição lhes promete, mas que o Estado tem sido incapaz de cumprir: um Serviço Nacional de Saúde universal, de qualidade e gratuito.

Não adianta sermos ingénuos ou facciosos. Se na saúde - como em tantas outras áreas - estamos longe da tão desejada prosperidade, culpar apenas o atual governo é injusto. São décadas de más escolhas políticas, de discussões estéreis, pouco práticas, de falta de visão e, muitas vezes, de falta de respeito pelo dinheiro dos contribuintes. São décadas de má gestão, com responsabilidades que têm que ser partilhadas por todos os partidos que tiveram funções governativas.

Aqui chegados, talvez valha a pena recordar Otto Von Bismarck, o chanceler "de ferro" alemão, que disse que "a política é a arte do possível." É, de facto. E se olharmos para este programa de governo numa perspetiva exclusivamente de sobrevivência política, talvez António Costa esteja a fazer o que tem de ser feito: responder ao PAN, ao PCP, ao Bloco de Esquerda, ainda dar uma perninha às reivindicações do Livre, sem nunca largar as obrigações impostas por Bruxelas.

Mas a política é também a arte das escolhas. Das opções que se fazem. E enquanto essas opções não passarem por uma estratégia económica que torne Portugal um país mais competitivo, com níveis de crescimento económico que tornem sustentável o papel do Estado, ninguém se devia atrever a falar num país próximo da prosperidade. Enquanto o dinheiro dos impostos não servir para termos um Serviço Nacional de Saúde digno desse nome, a austeridade não acabou.

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