sábado, 28 de dezembro de 2019

A classe política Francesa e as violações da Constituição


Thierry Meyssan*

A opinião pública francesa reage a cada revelação de desvio de fundos públicos. Ela interroga-se porque é que estes escândalos se tornaram tão frequentes desde os anos 80. Thierry Meyssan não se interessa muito por estes crimes. Ele denuncia o que lhe parece muito mais grave: a privatização do Estado em proveito de «investidores» estrangeiros. Uma infracção que não existia até então no seio do governo, nem da presidência da República, e que se espalha agora no topo das instituições. Aquilo que começa por vantagens indevidas prossegue, muitas vezes sem que os responsáveis políticos tenham sobre elas reflectido previamente e por vezes, apesar deles, por crimes sem nome.

O fim da política em França

Desde o acidente cerebral do Presidente Jacques Chirac, em 2 de Setembro de 2005, a França não mais teve qualquer responsável político capaz de garantir a presidência da República. O final do seu segundo mandato deu lugar a uma luta encarniçada entre o Primeiro-ministro, Dominique de Villepin, e o Ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, sobre um fundo de estado de urgência e de falsas acusações que relegaram o interesse geral para segundo plano.

A eleição de Nicolas Sarkozy marca o advento da mentalidade «corporativa» e, portanto, o fim da política no sentido original da organização da pólis. O novo presidente declara querer gerir o país como uma empresa. Ele exibe a sua função como um «trabalho» e não mais como um serviço. Ele exibe a sua vida privada e o seu sucesso social. Ele já não busca encarnar a vontade popular, mas transformar o país segundo a sua vontade pessoal («Eu quero ...»). Por fim, de acordo com os seus antigos laços com a CIA, alinhou a França com os Estados Unidos indo ao ponto de colocar os exércitos sob o comando norte-americano no seio da OTAN.

Reagindo a esses excessos, o seu sucessor François Hollande quer ser um «presidente normal», um homem sem história; sem ambição, nem pessoal, nem para o país. Perito em querelas políticas, mas desprovido de maturidade política, desempenha a sua função seguindo os seus altos-funcionários — que sabem pouco mais do que ele - como alegou mais tarde. Em tudo, ele irá contentar-se em continuar o caminho do seu antecessor, o que o forçará a abandonar suas convicções socialistas. As suas únicas iniciativas serão impor uma moral puritana inspirada no exemplo dos presidentes dos EUA.


Emmanuel Macron, por sua vez, foi eleito com a ajuda de especuladores internacionais. Dispôs apenas de uma breve experiência política e jamais se interessou pela política propriamente dita. Gosta de se impor chocando com declarações provocatórias e os seus comportamentos chocantes. Ele financiariza tudo o que toca, principalmente a ecologia e as pensões.

Durante esses catorze anos, os principais líderes políticos franceses esqueceram progressivamente o serviço da Nação a fim de não fazer mais nada senão ocuparem-se a acumular dinheiro pessoalmente.

É particularmente sintomático que, durante as últimas eleições presidenciais, nenhum dos candidatos importantes tenha apresentado uma visão para o país, mas exclusivamente programas governamentais.

Como se a função presidencial tivesse desaparecido. Desde então, os debates limitam-se a palpites políticos sobre a gestão dos diferentes dossiês, a questiúnculas de números.

Eu mostrei no livro Sous nos yeux («Sob os Nossos Olhos»), como esta deriva conduziu a uma privatização da política estrangeira perante a indiferença geral [1]. A França envolveu-se em todo o tipo de guerras, na Costa do Marfim, na Líbia, na Síria, no Sahel, colocando as suas tropas ao serviço de interesses que não são de maneira nenhuma os seus e participando no massacre de centenas de milhar de distantes desconhecidos.

Esta degradação prossegue inexoravelmente. Agora, ela atinge a política interna.

Emmanuel Macron e a financiarização da ecologia

Emmanuel Macron tinha anunciado a sua intenção de «tornar a Finança verde»(sic). O anuncio da retirada próxima dos Estados Unidos do Acordo de Paris contra o aquecimento climático forneceu-lhe a ocasião. Muito antes que este seja efectivado, ele lançava ao seu homólogo dos EUA o seu sonante «Make our planet great again!».

Lembremos que o cerne deste conflito não tem nenhuma relação com a comunicação a este propósito. Em 1997, o Protocolo de Quioto designa cinco gases como tendo efeito estufa. Estabelece um Fundo de Adaptação gerido pelo Banco Mundial e um sistema de permissões negociáveis. Trata-se, ao mesmo tempo, de limitar a produção destes gases e de financiar a industrialização dos países em vias de desenvolvimento permitindo-lhes vender licenças negociáveis aos países desenvolvidos na proporção da sua emissão total desses gases. Determinado a não pagar um centavo, o Presidente Bill Clinton publicamente ratifica este texto que faz, por trás da cortina, rejeitar unanimemente pelo Senado. Simultaneamente, confia a criação de uma bolsa de valores com licenças negociáveis ao seu Vice-Presidente, Al Gore. Este encarrega a redacção dos estatutos a um advogado desconhecido à época, Barack Obama. Tendo em conta os montantes a esperar das licenças negociáveis, os financeiros dos EUA conservarão a sua proeminência mundial [2]. Quando Barack Obama se torna Presidente dos Estados Unidos, ele faz validar este dispositivo pelo Acordo de Paris de 2015. A propósito, entretanto quatro dos gases com efeito estufa desapareceram, restando apenas o dióxido de carbono (CO2), do qual o suposto impacto é, no entanto, mínimo. Mas este, quando produzido por seres humanos, provém do consumo de carvão, de gás e de petróleo, as «fontes de energia fóssil». A focagem (focalização-br) unicamente sobre este gás deverá abrir novos mercados para a indústria automobilística em declínio, que para se recuperar passará para a energia eléctrica, sem, no entanto, trazer prejuízo à indústria do petróleo que encontra novas saídas nos plásticos.

Emmanuel Macron concebeu então um novo imposto sobre os carburantes cuja aplicação desencadeia o movimento de «Coletes Amarelos». Em algumas semanas, os Franceses tomam consciência de um fenómeno que eles constatam, sem reagir, desde há perto de trinta anos: a globalização da economia e da finança destrói as classes médias no Ocidente [3]. Não desejando por em causa a ordem financeira global, o Presidente Macron está sem saída.


Emmanuel Macron e a financiarização das pensões

Para compreender quem são os comanditários de Emmanuel Macron, não é necessário buscar em França, mas no estrangeiro. Claro, o banco Rothschild jogou um papel na sua eleição, mas não tão importante como isso. Pelo contrário, Henry Kravis, o patrão do principal hedge fund KKR ("hedge fund" ou fundo de capital de risco-ndT, jogou um consideravelmente mais importante, ou até decisivo. [4]. Ele saca a sua fortuna da aplicação de uma técnica no limite da legalidade: aquisição de empresas por endividamento («LBO», quer dizer : «compra alavancada» — ou seja, compra usando empréstimo de dinheiro alheio-ndT). Foi ele quem apresentou o ambicioso jovem ao Clube de Bilderberg ou, ainda, quem escolheu o seu Primeiro-ministro, Édouard Philippe.
Até agora, Henry Kravis é considerado um tubarão e ninguém em Wall Street considerava aliar-se à KKR [5]… salvo a Blackrock, o principal gestor de activos do mundo para quem a crise financeira de 2008 foi uma benção caída dos céus.

A 25 de Outubro de 2017, o Presidente Emmanuel Macron privatiza a sala do Conselho de Ministros para acolher um seminário de grandes especuladores, entre os quais Laurence Fink, o patrão da Blackrock [6]. Este é acompanhado por um dos seus empregados, o antigo chanceler do Tesouro britânico, o barão George Osborne. Édouard Philippe (Primeiro-ministro), Muriel Pénicaud (Trabalho), Bruno Lemaire (Economia e Finanças), Élisabeth Borne (Transporte) e Benjamin Griveaux (Secretário de Estado junto de Bruno Lemaire) vêm prestar provas diante deste areópago.

Durante esta reunião, Emmanuel Macron e Bruno Lemaire expõem aos seus interlocutores o seu plano para financiarizar as poupanças dos Franceses: reformar as aposentações abandonando o sistema de solidariedade entre gerações por um sistema de capitalização. Para isso, acabam de escolher um velho político (70 anos à época), Jean-Paul Develoye, e de o nomear Alto Comissário para Reforma das Pensões. Ele é um amigo de longa data de Jean-François Cirelli, o patrão da Blackrock em França. Eles revelaram igualmente querer deslizar para um projecto de lei referente ao crescimento e transformação das empresas, dito «Lei PACTE», com um discreto artigo permitindo uma «melhor acessibilidade da poupança reforma», quer dizer, o acesso dos mais ricos a uma aposentadoria por capitalização.

No entanto, após dois anos de consultas, os eleitores continuam ainda a ignorar em que consistirá a reforma das pensões. Dependendo do dia, denuncia-se o buraco de certos regimes especiais e apela-se em nome da justiça social para uma uniformização do sistema; ou lamenta-se a extensão da vida útil e preconiza-se alongar a duração da actividade para equilibrar as contas. Na realidade, nenhum país do mundo tem um sistema único de aposentação e, tendo em conta o «desemprego entre os seniores», nada permite afirmar que o adiamento da idade da aposentadoria levará a fazer economias. Toda essa turbulência visava apenas esconder o único objectivo do governo: substituir pela capitalização a solidariedade entre as gerações. Um gigantesco movimento de protesto social inicia-se, incluindo os Coletes Amarelos, o que culminou numa espetacular greve de duas semanas.

Foi neste momento que o Le Parisien publicou uma notícia inacreditável : violando a Constituição, Jean-Paul Delevoye mantêm uma ligação de subordinação com o IFPASS, o organismo de formação profissional da Federação Francesa de Seguros, principal beneficiário da reforma em curso [7]. Ele mantém uma outra com um segundo organismo de formação profissional vinculado ao primeiro. De uma ponta à outra, listam-se catorze ligações de subordinação do velho sábio. Ele levará oito dias para se demitir.

Longe de o condenar, o Presidente Emmanuel Macron expressa o seu «lamento» perante a demissão, enquanto Gilles Le Gendre, presidente do Grupo parlamentar do seu partido na Assembleia Nacional, proclama o seu «respeito perante a sua corajosa decisão». Parece que o Presidente, o Primeiro-ministro e quase todos os membros do governo sabiam disto desde há muito tempo e, contrariamente à sua obrigação, não intervieram. Só tardiamente é que o Ministério Público é accionado.

Assim se passou da corrupção, que se generalizou sob François Mitterrand, para a privatização do Estado; da violação do Código Penal para a da Constituição. Seria idiota acreditar que isto não terá consequências.


*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Imagens:
1 - Henry Kravis (KKR) e Laurence Fink (Blackrock) apostam em Emmanuel Macron e no xeque Mohamed bin Zayed; 2 - O jovem guarda-costas de Emmanuel Macron, Alexandre Benalla (à direita na foto), segue-o para o Eliseu onde participa numa reflexão sobre «a criação de um serviço de segurança interna», provavelmente por conta da OTAN. Simultaneamente, estabelece um laço de subordinação com o mafioso Iskandar Makhmudov, o apoio financeiro de Benjamin Netanyahu.

Notas:
[1Sous nos yeux, Thierry Meyssan, Demi-Lune (2017). Versão em português.
[2] «1997-2010: La ecología financiera », por Thierry Meyssan, Оdnako (Rusia) , Red Voltaire , 28 de abril de 2010.
[3] “Como o Ocidente devora os seus filhos”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Dezembro de 2018.
[4] “De quem é Emanuel Macron devedor ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 12 de Dezembro de 2018.
[5] Barbarians at the Gate, Bryan Burrough, Harper & Row (1990).
[6] «Comment l’Élysée a déployé le tapis rouge au roi de Wall Street», Le Canard enchaîné.
[7] «L’oubli gênant de Jean-Paul Delevoye», Catherine Gaste, Le Parisien, 9 décembre 2019.

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