quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A delação premiada é uma boa ideia?


Pedro Tadeu | TSF | opinião

A delação premiada é uma forma nova, mais simpática, de falar dos antigos "bufos" das prisões do fascismo ou dos "arrependidos" do pós 25 de abril.

A delação premiada é praticada por pessoas que se envolveram em crimes e que, para se safarem com penas de prisão ou multas mais leves, aceitam confirmar ao Ministério Público e à Polícia as suspeitas que estas têm sobre outros criminosos.

Qualquer pessoa que vê séries de televisão norte-americanas tem uma noção do que é a delação premiada e dos seus efeitos.

Os Estados Unidos são o país com maior população prisional no mundo e uma grande parte das condenações é obtida por acordo entre acusação e defesa. Esses acordos são pressionados por provas muitas vezes obtidas por testemunhos abrangidos por um regime semelhante ao de delação premiada.

Nos anos 70 do século passado líderes da Máfia foram apanhados dessa maneira e muito do combate ao tráfico de droga passou e passa, ainda, por aí.

Parece uma coisa boa, pois há gente que fica presa e que de outra forma andaria livre, mas há também muita gente que fez exatamente os mesmos crimes dos que acabam condenados e que fica em liberdade e, até, com proteção policial. E a criminalidade relacionada com o tráfico de droga ou a corrupção nas instituições americanas não diminuiu, que se saiba, por essa prática tão banalizada.


A delação premiada é uma forma de corromper o sentido de justiça da sociedade, onde parece que quem atua como um oportunista sem escrúpulos - seja para praticar o crime, seja para se safar dele - é acarinhado, protegido e favorecido em relação aos outros criminosos.

No Brasil, o terceiro país com mais presos no mundo, tivemos uma escandalosa manipulação da delação premiada pelo juiz Sérgio Moro e pelo procurador que liderou as investigações à corrupção na classe política brasileira.

O jornalismo brasileiro tem revelado que os delatores premiados, os tais "bufos" ou supostos "arrependidos", acordaram dizer em tribunal aquilo que convinha à acusação, fosse ou não fosse verdade.

Os delatores, se tivessem para dizer alguma coisa aparentada com a verdade, aceitavam também contar as coisas de forma manipulada, de acordo com os interesses processuais de quem conduzia a investigação.

Pior, o jornalismo brasileiro já tornou claríssimo que as delações premiadas não foram um instrumento da justiça, foram antes um instrumento político para meter na cadeia, de qualquer maneira, os alvos do processo Lava Jato em geral e, em particular, para impedir que Lula da Silva fosse candidato as eleições presidenciais.

Quando, hoje em dia, olhamos para o Brasil e para o seu combate à corrupção, assente boa parte na delação premiada, só podemos ter a certeza de uma coisa: a justiça parece ser tão corrupta como a política.

É isso que queremos para Portugal?

Quando discutimos a delação premiada, quando aparecem propostas como a do governo para a facilitar, não nos podemos esquecer da experiência de outros países.

O combate à corrupção em Portugal está a produzir resultados.

Temos um antigo primeiro-ministro a responder em tribunal, já condenámos a penas de cadeia vários políticos e também ilibámos alguns.

Até juízes e procuradores estão sob suspeita, a ser investigados, ou foram já condenados.
Temos processos complexos na área da banca, com acusados que durante anos dominaram a economia do país.

As coisas são lentas, desesperadamente lentas, mas progridem, apesar do vendaval que provocaram na opinião pública, com um mínimo de coerência e de credibilidade.

A delação premiada vai tirar essa coerência e essa credibilidade à justiça, vai fragilizar um pilar institucional crucial para a nossa democracia: o Estado de Direito vai perder equilíbrio, porque os tribunais passarão a condenar com base em declarações de pessoas, os delatores, que têm vantagem em mentir - e isso põe todas as decisões sob dúvida.

O combate à corrupção tem de ser uma prioridade, caso contrário as ideias fascizantes, populistas ou justiceiras que contaminam uma parte da sociedade terão mais e mais adeptos.

Deem mais dinheiro e mais meios às polícias e aos magistrados, acabem com o segredo de justiça, acabem (como a Suécia, um dos países menos corruptos do mundo, faz desde o princípio do século passado) com o segredo fiscal, acabem com os megaprocessos, façam o que quiserem, mas não reforcem as possibilidades e os prémios da delação premiada.

O combate à corrupção não pode ser feito através de um caminho que, inevitavelmente, corromperá a própria justiça e, em consequência, dará ainda mais força a essas ideias da extrema-direita, que tanto assustam os donos do regime.

Contra a corrupção, sim, a favor de uma justiça corrupta, não.

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