O espírito belicista da Cimeira
das Lajes continua bem vivo nos governantes portugueses. Depois de Barroso,
cabe aos socialistas interpretar a segunda temporada.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Já é degradante para o prestígio
interno e internacional de um país acolher na sua capital uma reunião
conspirativa de dois sociopatas mundiais como são o primeiro-ministro de
Israel, Benjamin Netanyahu, e o secretário de Estado norte-americano da Administração
Trump, Michael Pompeo. O facto de o primeiro-ministro, António Costa, receber
ambos os fora-de-lei transforma o caso numa situação trágica, porque expõe
directamente o país às consequências do previsível agravamento da instabilidade
global decorrente destes encontros. Afinal o espírito belicista da Cimeira das Lajes – que afundou o
Médio Oriente na crise de guerras sucessivas em que se encontra –
continua bem vivo nos governantes portugueses. Depois de Barroso, cabe aos
socialistas interpretar a segunda temporada.
Nem os britânicos, chefiados por
uma aberração chamada Boris Johnson, permitiram que o encontro entre Netanyahu
e Pompeo decorresse nas suas ilhas, simplesmente por não estarem disponíveis
para acolher o chefe do governo israelita. Ao contrário do trabalhista Blair,
em 1993, o conservador Johnson eximiu-se agora do complot.
Costa não. Embora com a nuance,
meramente formal, de receber os dois violadores das leis internacionais em
separado, o facto é que eles fizeram anteriormente o trabalho sujo. O que quer
que tenham decidido em termos de agressão e operação de mudança de regime no
Irão, «normalização» dos colonatos israelitas e anexação do Vale do Jordão na
Cisjordânia – à revelia do direito internacional – e de um tratado de «defesa
mútua» que, no limite, implica a mobilização da NATO no caso de Israel sofrer
uma «agressão», fizeram-no num contexto que envolve o governo da República
Portuguesa.
António Costa, o seu ministro
Santos Silva e a generalidade da equipa escolheram não se distanciar do gueto
internacional formado pelo núcleo de países responsáveis por uma nova fase de
desestabilização belicista internacional. Isolaram-se, por uma vez, da sua
querida União Europeia e logo pelos piores motivos. Tornaram-se parceiros das
agressivas fugas para a frente de dois regimes desacreditados, desesperados,
fora de lei, afundados em escândalos de corrupção, violência, racismo e
xenofobia como são os de Trump e Netanyahu.
Os portugueses não se
pronunciaram para que os seus votos fossem usados desta maneira irresponsável.
Grau zero da legalidade
Ignora-se se António Costa tem no
seu horizonte curricular o cargo de presidente da Comissão Europeia. Pelo menos
foi assim que Durão Barroso iniciou o caminho para o Eldorado que passou por
Bruxelas e o levou à cúpula do banco que «faz o papel de Deus na Terra».
O elementar bom senso, porém,
aconselharia a que Lisboa ou qualquer outro lugar do território português fosse
poupado a uma reunião entre o fundamentalista «cristão sionista», como Pompeo
se identifica, e a principal figura do fascismo sionista, definição que cabe a
preceito em Benjamin Netanyahu.
Não se pense que o qualificativo
de «foras-de-lei» aplicado aos dois dirigentes é uma mera figura de retórica.
Nada disso: eles são-no – e com provas dadas.
Michael Pompeo interpreta a
«diplomacia» de Trump; e esta acaba de proclamar que os colonatos israelitas e a aquisição de
território palestiniano pela força estão conformes com a lei internacional.
De facto não estão e não basta
que seja a cúpula do regime norte-americano a afirmar o contrário para isso
ganhar força de lei. Convenções internacionais como a de Viena e várias
resoluções das Nações Unidas definem os colonatos como ilegais e exigem a sua
extinção, não a «legalização». Já era tempo de o secretário-geral das Nações
Unidas reafirmar esse princípio, pelo menos para assinalar por onde passa a
lei. Mas Guterres, ensimesmado como está com as urgências do clima, parece não
ter palavras para as muito maiores urgências traduzidas pelos avanços das
políticas de guerra e as violações contumazes dos direitos humanos.
Pompeo é o braço direito de Trump
numa administração sob impeachment no seu país, mas que acaba de ter
espaço – que os autores do impeachment não lhe vedam – para enviar
mais 14 mil militares e artefactos de guerra de última geração para o Médio
Oriente.
Um movimento militar que está
certamente associado ao complot urdido em Lisboa em regime de pé-de-orelha com
o primeiro-ministro de Portugal.
Podem assinalar-se outras
malfeitorias em que Pompeo está directamente envolvido, como a usurpação de poder na Venezuela, o golpe fascista na Bolívia,
a imposição de condições miseráveis de vida a vários povos, desde Cuba e
Venezuela ao Irão – coisas, aliás, bem aceites por António Costa e pelo
prestimoso Santos Silva. Haverá, entretanto, quem considere estas sevícias
como matérias «subjectivas», passíveis de outras «interpretações». Pois bem:
quanto à questão de considerar «legais» os colonatos ilegais não há
subjectividade possível. O que faz de Pompeo um fora-de-lei.
Benjamin Netanyahu há muito que é
um energúmeno contumaz, um criminoso de guerra. Basta recordar a situação de
Gaza, a colonização permanente, a tortura e morte dos presos políticos
palestinianos nas prisões israelitas, a institucionalização do regime de
apartheid em Israel, os muros de separação, o roubo da água, a destruição de
estruturais vitais palestinianas, a limpeza étnica contínua da Palestina. O rol
de crimes é longo, conhecido de todos, talvez até do primeiro-ministro António
Costa.
Acresce que Benjamin Netanyahu é
primeiro-ministro em exercício mas já falhou duas tentativas para formar novo
governo, pelo que são necessárias terceiras eleições gerais consecutivas.
Como se não fosse suficiente,
Benjamin Netanyahu desembarcou em Lisboa num momento em que é acusado pela justiça israelita de crimes de corrupção, fraude
e quebra de confiança, passíveis de prisão e que põem em causa a sua posição de
chefe de governo – já de si meramente em gestão de assuntos correntes.
Isto é, Netanyahu é um fora de lei no ponto mais baixo da legitimidade
institucional. De tal maneira que o próprio presidente de Israel lhe propôs uma
solução: indultá-lo dos crimes desde que reconheça a sua culpa e se demita da
chefia do governo.
Foi recebido em Portugal num
momento em que tenta aproveitar desesperadamente o espaço que lhe resta para
criar focos de instabilidade militar que o transformem em intocável
comandante-em-chefe. Será difícil que um chefe de governo como o português não
interprete os riscos desta fuga de Netanyahu para diante.
Missão Lisboa
Que vieram os sociopatas Pompeo e
Netanyahu fazer a Lisboa?
Não vale a pena ter em conta os
despachos feitos pelos jornalistas seleccionados por ambos para acompanhar a
viagem, os únicos com acesso à informação oficial. Não se trata de informação
mas de propaganda; os agentes que foram escolhidos têm exactamente essa missão:
transformar em factos aquilo que Trump e Netanyahu delinearam como estratégia.
Jornalistas portugueses estão incomodados por terem sido excluídos da cobertura
dos actos da visita, quando, na verdade, deveriam sentir-se orgulhosos: não
merecem a confiança dos malfeitores; e, por outro lado, receberam uma lição de
como funciona a verdadeira liberdade de informação dos que verdadeiramente
dirigem o «mundo livre»1.
Pompeo e Netanyahu vieram acertar
agulhas sobre a agressão ao Irão na perspectiva da mudança de regime no país.
Os movimentos de massas que estão a acontecer no Iraque e no Irão reflectem uma
componente da estratégia de desestabilização que tem uma opção militar latente
– daí o novo reforço de efectivos e do aparelho agressor no Médio Oriente.
Em segundo lugar, concertaram
posições quanto à iminente ocupação do Vale do Jordão, na Cisjordânia, pelo
regime israelita. Trata-se da região mais atraente economicamente de toda a
Margem Ocidental do Rio Jordão – pelo que está na calha para seguir o caminho
dos Montes Golã sírios e de Jerusalém Leste. Como os Estados Unidos deixaram de
considerar «ilegal» a colonização, a anexação desse território é um importante trunfo de campanha que Netanyahu pretende
brandir perante o eleitorado, no sentido de unificar toda a extrema-direita
fascista. Recorda-se que têm sido núcleos deste sector a impedir o êxito
das tentativas de formação de governo pelo primeiro-ministro em exercício.
Escusado será dizer, mas há que
registá-lo: a anexação do Vale do Jordão liquida, de vez, a solução de dois
Estados na Palestina e que está inscrita no direito internacional. Não haverá
mais espaço para um Estado Palestiniano independente, soberano e viável. O
governo da República Portuguesa torna-se directamente cúmplice pela violação de
um princípio que ele próprio diz defender. E, claro, de uma atrocidade contra a
legalidade internacional.
As administrações Trump e
Netanyahu estão prestes a concluir um tratado de «defesa mútua», isto é, o
mecanismo que permitirá às tropas norte-americanas – e da NATO, obviamente –
acudirem em socorro de Israel caso este país seja «agredido». Pelo que não será
de excluir uma provocação que simule, por exemplo, um «ataque iraniano», para
fazer deflagrar uma guerra de proporções inimagináveis.
Factos consumados
Entre os conteúdos da conspiração
de Lisboa estão, tudo leva a crer, decisões no sentido de avançar para factos
que a relação mundial de forças não permitirá reverter depois de consumados.
Tem sido esta uma das estratégias essenciais para a anexação de territórios,
sobretudo palestinianos, que Israel vem executando desde a fundação do Estado.
Expulsão de populações e construção de colonatos são dois vectores primordiais
de tal estratégia e a previsível ocupação do Vale do Jordão será o exemplo mais
recente, com a respectiva vaga de expulsões no quadro de uma limpeza étnica
perante a qual o mundo continua cego.
Está por apurar, ainda, a reacção
das principais instâncias internacionais à «legalização» da colonização
anunciada pelos Estados Unidos. A acção segue na linha da transferência da
Embaixada norte-americana para Jerusalém – que significa a aceitação da
anexação de Jerusalém Leste – e do reconhecimento por Washington da anexação
dos Montes Golã sírios.
Em qualquer dos casos houve
virulentas reacções internacionais, em termos verbais, e que rapidamente
esmoreceram até à extinção. Reacção prática? Nem sombra. Os factos estão
consumados.
No caso presente há a anotar,
mais uma vez, o mutismo do secretário-geral das Nações Unidas, claramente sem
coragem para citar os Estados Unidos como um mau exemplo quanto ao modo de
encarar a legalidade internacional. Não lhe ficaria mal uma nota de registo.
Mas não: seria demasiado para António Guterres, tal como demasiado seria
pronunciar-se contra a carnificina israelita em Gaza – território que a própria
ONU calculou como humanamente inabitável em 2020, isto é, daqui a dias.
No quadro da estratégia de factos
consumados pode inserir-se o cumprimento em curso de elementos conhecidos do
chamado «acordo do século», um plano urdido por Trump e Netanyahu como solução
final da questão palestiniana.
A anexação de uma parte vital da
Cisjordânia, como o Vale do Jordão, faz parte desse elenco de medidas
arbitrárias que ainda não foi apresentado à comunidade internacional mas que,
escrutinando a situação no terreno, está a ser cumprido de maneira avulsa e
conspirativa. Certamente o tema esteve à mesa no menu de Lisboa.
Poderá dizer-se que, estando o
«acordo do século» implicitamente na agenda, à mesa na capital portuguesa
sentou-se ainda um convidado virtual, a Arábia Saudita, um dos obreiros do
plano. Enquanto isso, o governo português esteve por perto, receptivo e
facilitador. O governo de António Costa tem vindo a esmerar-se nas aproximações
que faz na arena internacional. De Guaidó a Trump, Pompeo e Netanyahu, mais os
que o silêncio esconde, como a fascista Añez na Bolívia e o carniceiro saudita
bin Salman, a lista é bastante selecta e democrática.
Imagem | Mike Pompeo, secretário
de Estado dos Estados Unidos da América, e Benjamin Netanyahu,
primeiro-ministro do Estado de Israel, reuniram-se num hotel de Lisboa, a 4 de
Dezembro de 2019. CréditosPatrícia de Melo Moreira / AP/Pool
1. Segundo
notícia da agência Lusa, «Pompeo e Netanyahu reúnem-se em Lisboa com
jornalistas portugueses mantidos longe», de 4 de Dezembro de 2019, a imprensa
portuguesa foi impedida de fotografar o encontro ou registar declarações,
reservadas aos jornalistas das duas delegações. Pompeo e Netanyahu
cumprimentaram-se no hall de um hotel identificado apenas como sendo
«no centro de Lisboa» e seguiram para uma sala próxima, onde estavam os
jornalistas que acompanharam as viagens para Lisboa do secretário de Estado
norte-americano e do primeiro-ministro israelita e uma pool de
jornalistas designados por media internacionais. À porta da referida
sala, Todd Miyahira, conselheiro de imprensa da embaixada dos Estados Unidos em
Lisboa, informou a Lusa que quer a fotografia do encontro quer uma
posterior conferência de imprensa estavam vedadas aos jornalistas portugueses, sem
contudo avançar uma razão para o facto. A informação, afirma a Lusa, é
semelhante à obtida pela agência junto de fonte israelita que pediu para não
ser identificada.
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