Não, não vou aborrecer os
leitores aludindo ao simbólico natalício baseado na humildade, na caridade, na
representação da pobreza, no Menino deitado nas palhinhas aquecido recebendo o
bafo da vaquinha e do burrinho. Os dominicanos rivais dos jesuítas ironicamente
diziam (dizem): esta é que é a companhia de Jesus?
A presença de Jesus, em muitos
lares, ao longo dos séculos, servia e serve de lenitivo aos desgraçados e
carentes de tudo, Eça de Queirós assim o interpretou no ‘Suave Milagre’.
O «Natal e os pobres» é tema e
inspiração de artistas e escritores de todas as latitudes e longitudes, também
no que tange a comeres, embora neste ponto de referência prevalecem as criações
de maior relevo, mesmo no referente à dieta dos pobres e remediados.
A noite de Consoada e dia de
Natal no Mundo da cristandade são, a par da Páscoa, as grandes efemérides a
salientar, onde surgem em miscelânea sentimentos de bondade, actos de genuíno
amor ao próximo, com farroncas de solidariedade no intento de impressionar os
vizinhos e engrossar biografias de esmoleres, a fim de esconderem a origem de
fortunas amassadas em sangue, suor e lágrimas dos infelizes explorados até ao
tutano.
Se tivermos o cuidado de dedicar
algum tempo a investigar o visco oportunista, não tardamos a descobrir os seus
autores.
O único lucro retirado de tal
pasta reside na benfeitoria aos precisados, todo o resto é palha adoçante dos
beiços de negreiros ou similares.
A leitura de confissões e
memórias avivam as chagas derivadas da hipocrisia, o orçamento engloba uma
verba consignada ao Natal dos pobres, publicitava-se e publicita-se, logo bela
figura nas fotografias, «pró ano há mais».
O avarento de Dickens ainda se
conseguiu redimir, os meninos filhos da miséria retratados tinham um dia de
rancho melhorado, a ementa dos restantes incluía pancada a torto e a direito,
trabalho de ver a ver, imundície, doença e morte.
Eu podia enunciar receitas de
várias origens e procedências, de economia, para além da roupa velha, pudim de
bacalhau, carne sobrante com cebolinhas, pudim de pão, entre muitas outras, mas
deliberei não o fazer.
A próxima crónica será mais
amena, a aspereza desta qual arranhadela de garo, procura sensibilizar o leitor
a fazer o bem, a toda a hora e momento, nunca esquecendo a sentença: a boa
prática da mão direita nem a esquerda deve saber.
O problema de fundo reside na
vaidade sem freio ou açaimo. Sendo a vaidade factor de progresso importa
trazê-la bem presa, caso contrário até o mais virtuoso escorrega nos dejectos
vaidosos. Se tiverem dúvidas façam o favor de pensar no atribulado fim de
Narciso, no respeitante aos milhões de narcisos é só olharmos à nossa volta. A sinuosa
pulsão manifesta-se debaixo de mil disfarces, conheci operativo sábio vaidoso
de não ser vaidoso, logo a seguir alargava o sorriso alardeando a sua
capacidade poética compondo sonetos em latim, tal como os poetas latinos.
O Natal dos pobres de bens
materiais poderá amenizar-se enormemente na nossa sociedade se cooperarmos
livremente no alcance da pretensão. Relativamente ao Natal dos pobres de
espírito, o quadro muda de figura. Ai a vaidade!
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