sábado, 7 de dezembro de 2019

Paulo Branco em Macau, pela divulgação do cinema em português na China


“[Venho] tentar perceber se Macau pode ser a grande plataforma da chegada de filmes em língua portuguesa a outros territórios”

De passagem por Macau para a estreia asiática do filme “A Herdade”, Paulo Branco é um dos convidados especiais do Festival Internacional de Cinema e Cerimónia de Entrega de Prémios de Macau (IFFAM). Com mais de 300 filmes e uma carreira de 40 anos, o produtor português já trabalhou com alguns dos maiores realizadores do cinema internacional, como Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Wim Wenders ou David Cronenberg.

Paulo Branco acompanhou a evolução da indústria cinematográfica das últimas décadas e produziu centenas de filmes de alguns dos maiores realizadores do cinema mundial

A viver entre Portugal e França desde o início da década de 70, o produtor português assume que a maneira de os filmes serem vistos pelo público mudou muito, na sequência do fecho de salas de cinema e do surgimento das novas plataformas. Cúmplice da genialidade de Manoel de Oliveira, Paulo Branco produziu mais de 20 filmes do grande mestre do cinema português. Preocupado com o final de alguns dos circuitos independentes de distribuição do cinema mundial, Paulo Branco continua à procura de boas histórias que dêem em filmes, como foi o caso de “A Herdade”. Uma ideia que lhe surgiu há 10 anos e que se materializou este ano. Para o produtor, faltava fazer em Portugal um filme épico sobre o outro lado da Revolução de Abril. Assumindo que cada filme é uma aventura, Paulo Branco quer analisar a viabilidade de Macau ser, no futuro, uma plataforma de entrada do cinema de língua portuguesa no mercado asiático. O produtor marca presença hoje, às 20 horas, no Centro Cultural de Macau, na projecção do filme “A Herdade”, enquadrada nas Apresentações Especiais do IFFAM. 




A entrevista

Depois de se estrear no Festival de Veneza e de passar pelo Festival de Cinema de Toronto, “A Herdade” é o candidato de Portugal ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e tem estreia marcada em Macau para o dia 6 de Dezembro, inserido na secção Apresentações Especiais do Festival Internacional de Cinema de Macau. Com cerca de 300 filmes produzidos ao longo de uma carreira de 40 anos, em que contexto é que surgiu a ideia para este filme?

Penso que no cinema português faltavam filmes com uma dimensão ficcional que tratassem períodos da história marcantes. Creio que o que se passou durante a transição do salazarismo, através da Revolução [de Abril], para os tempos modernos ainda não tinha tido um filme que retratasse, pelo menos, em que ângulo fosse, essa evolução do país. Baseado em algumas experiências pessoais que vivi, já há cerca de 10 anos que tinha esta ideia de tentar, a partir de um filme, que se retratasse sobretudo o que nós podíamos chamar os perdedores da revolução, e que no fundo acabavam por não ser, como sabe, os verdadeiros perdedores, porque depois as coisas deram a volta. [Neste filme] temos uma família que nunca na sua vida pensaria que a sua posição fosse posta em causa, que a sua herdade fosse posta em causa, assim como a própria coesão familiar, e que realmente esta passagem de uma época, quase se pode chamar feudal, através de uma revolução, para uma época depois de democracia europeia, e todas as sequelas que isso deixou, penso que era matéria ficcional mais do que suficiente para se fazer um grande épico. 

A ideia surgiu-lhe então há mais de 10 anos neste contexto de pré-revolução, durante a década de 60, sobre os grandes latifundiários do Alentejo. Uma vez que foi viver para França no início da década de 70, as suas memórias também têm alguma ligação emocional à produção deste filme?

Sim, fui testemunha directa e indirecta de todo esse mundo. Tinha contactos muito directos com eles, sem fazer parte dessas famílias. Isso mesmo dava-me um poder de observação diferente de qualquer outro. Eu saí de Portugal em 1971, mas vi também alguns desses casos muito particulares que atravessaram a revolução e a evolução dessas famílias, desses latifúndios, sabendo que isto não é, de maneira nenhuma, o exemplo do que se passou em Portugal, é um caso muito particular. São casos muito particulares e, como em qualquer tipo de filme, é completamente ficcionado. Sobretudo quis que o filme tivesse uma dimensão melodramática, um pouco na veia dos grandes filmes clássicos de melodramas americanos.

Depois dos filmes “Coisa Ruim” (2006) e de “Entre os Dedos” (2008), escolheu Tiago Guedes para realizar “A Herdade”. Quando lhe apresentou este projecto já tinha uma ideia clara do que pretendia. Porquê a escolha deste realizador?

A escrita do argumento foi feita sem saber ainda qual seria o realizador e o que poderia fazer. Eu, na minha cabeça, sempre pensei no Tiago [Guedes], mas a concretização dele como realizador apareceu quando já se tinha trabalhado durante alguns anos sobre o argumento. Quando o convidei, [o guião] ainda não estava exactamente como gostaria, e a entrada do Tiago acabou por dar uma nova visão e uma nova dimensão ao filme. Era alguém a quem eu queria dar a oportunidade de fazer um filme com esta dimensão, porque quando fiz o “Coisa Ruim” e o “Entre os Dedos” percebi que ele tinha uma enorme capacidade, por um lado, de direcção de actores, que era muito importante aqui, e, por outro, era alguém que, se tivesse um guião à altura, poderia fazer um grande filme. E foi exactamente o que aconteceu, penso que ele fez um trabalho absolutamente extraordinário e o filme reflecte isso.

Tiago Guedes acabou por ser um dos autores do guião juntamente com Rui Cardoso Martins. Que indicações é que lhe deu, ou se lhe deu alguma sugestão para a génese desta narrativa, destas personagens, deste cenário, deste contexto?

O cenário fui eu que lhe propus, o sítio onde está filmado era uma herdade que eu conheci muito bem, de uma enorme amizade de há muitos anos com o proprietário. E o argumento foi discutido. Todos os dias falávamos e todos os dias ele trazia novas ideias, novos elementos e definimos conjuntamente algumas ideias que também que lhe sugeri. Foi um trabalho com um realizador absolutamente fantástico. Filmámos em nove semanas e não houve nenhum percalço pelo contrário, acho que tínhamos exactamente a visão, a mesma visão do que queríamos que o filme fosse. E depois a escolha do [Roberto] Perpignani como montador, que também se tornou essencial. Era alguém que conheço há muitos anos, há 40 anos, que tinha montado grandes filmes italianos, e sabia que seria realmente o montador ideal para dar o toque final, mais do que isso, para realmente transformar e dar um ritmo à narração que pudesse estar à altura daquilo que nós pretendíamos.

O trabalho de Perpignani no documentário “Torre Bela”, de Thomas Harlan (1977), sobre a ocupação de uma propriedade do Ribatejo, assim como o seu conhecimento sobre os tempos da reforma agrária em Portugal, no chamado Verão quente da revolução, pesou nesta escolha?

Conheço o Perpignani desde a altura do “Torre Bela”, dos anos 70, foi o Thomas Harlan que mo apresentou, e depois trabalhei com ele na “Estrangeira” do João Mário Grilo. É preciso não esquecer que, quando o João Mário Grilo fez esse filme, tinha 22 anos e conseguimos pô-lo em competição em Veneza. Ficámos sempre amigos. De vez em quando ajudava-me em alguns filmes, que eu achava que não estavam correctos, e tive a ideia de o desafiar, até como uma espécie de provocação, se ele não queria montar o contracampo do “Torre Bela”. O desafio foi fascinante e quando viu o material e isso tudo, disse-me: “Paulo, acho que temos um filme nas mãos”. Porque quando rodamos, logicamente que não temos muito a noção se conseguimos ou não tudo o que pretendíamos. E ele realmente deu essa coesão absolutamente necessária que faz deste filme o que ele é neste momento.

O filme necessitava de uma montagem que fosse para além da técnica, uma vez que não tem banda sonora, para acentuar os momentos mais dramáticos? 

A banda sonora impôs-se por ela própria, os ventos, os silêncios, as coisas todas, isso tudo impôs que realmente a música estaria a mais. A música está onde deve ser necessária, que é no princípio e no fim, e o filme respira por ele próprio. Não necessita de acentuar o lado melodramático que já está aí todo, nem o lado emocional, porque está aí todo. Não há nenhuma cena, penso eu, que não tenha emoção. Tudo o que é ilustrativo não está, tirámos. Portanto, é um filme que, até agora, pelo que temos visto, prende o espectador da primeira à última imagem.

Teve duas produções no último Festival de Veneza, “A Herdade”, em competição, e “Francisca”, de Manoel de Oliveira, exibido como um clássico restaurado, numa secção especial. São dois filmes que marcaram duas eras distintas na sua carreira de produtor?

Para mim foi marcante este Festival de Veneza por isso mesmo. Ter um filme que produzi há quase 40 anos, 38 anos para ser exacto, e que ainda existe e é considerado um dos clássicos do cinema mundial. Estar ligado a esse personagem enorme que é o Manoel de Oliveira, para mim é gratificante, como deve calcular. E, ao mesmo tempo, ainda estar em actividade. Ainda ter a mão, perceber que ainda posso estar associado a projectos que trazem agora qualquer coisa também de novo.

O filme “Francisca” foi muito marcante porque foi a primeira vez que trabalhou com o Manoel de Oliveira como produtor, e foi um início de um ciclo muito produtivo para os dois, tanto para Paulo Branco como para Manoel de Oliveira. Foi um filme que marcou o início da construção de uma relação. Como foi essa construção?

Esta relação começou quando estreei o “Amor de Perdição” em França, que mudou a visão que havia em Portugal do Manoel de Oliveira, nessa altura considerado já um reformado, entre aspas, que já tinha tido as suas oportunidades, e já estavam quase a tentar pô-lo na prateleira. E, realmente, o êxito crítico que o filme teve em Paris, quando ele se estreou, abriu-lhe portas. Quando decidi ser produtor, ele veio ter comigo e perguntou-me se eu queria produzir o filme que ele estava a preparar, que não era o “Francisca”, ia ser outro, mas depois acabou por ser o “Francisca”, e a partir daí houve uma relação de confiança enorme que se manteve durante quase trinta anos, ou mais. Produzimos acho que 22 obras juntos e foi um percurso, como se diz, para mim fulcral, e para ele também foi extremamente importante, porque quando, quase aos 80 anos, se recomeça uma carreira e se consegue realizar o número de obras que ele realizou depois, é realmente um caso único na cinematografia mundial. 

Apesar de ter aberto um novo caminho para a internacionalização do cinema português, sente que também ajudou Manoel de Oliveira a ter um justo reconhecimento em Portugal?

Claro, e é preciso não esquecer que se produzimos tantas obras juntos é porque cada uma das obras afirmava o génio do Manoel Oliveira. Nós sabíamos que rapidamente se classifica os realizadores e, portanto, o Manoel sabia que, em cada filme que fazia, arriscava continuar ou não a sua carreira, e a cada um dos filmes ele renovava-se, abrindo as portas para continuar. E aí estava eu a ajudá-lo, para que os filmes tivessem uma dimensão e uma visibilidade internacional importante, e nacional, de maneira que fosse inquestionável que ele continuasse a trabalhar.

Quando é que sentiu que o ciclo criativo com Manoel de Oliveira tinha chegado ao fim?

A certa altura eu já não trazia ao Oliveira o que ele talvez pretendesse. Ele também, com a idade, começou a isolar-se daqueles que o tinham ajudado durante estes anos todos, e a certa altura disse-lhe que o lado produtivo da nossa relação podia-se transformar em algo mais negativo, e pronto. Quando fiz o “Quinto Império”, eu já tinha avisado antes que depois ele devia procurar outra via, porque comigo, acho que já tínhamos fechado o ciclo, e foi o que aconteceu. Eu penso que isso até lhe deu uma nova energia para depois fazer mais dois ou três filmes. Como produtor, nós também temos de ter essa noção, quando a certa altura deixamos, não é de estar a mais, mas já não trazemos aquelas mais-valias que podíamos trazer aos projectos quando nos ocupamos deles.

A promoção internacional de um filme está mais complicada nos tempos actuais?

Antigamente, houve filmes nossos, do Manoel de Oliveira, por exemplo, que estrearam em mais de trinta países. Agora já é mais difícil estar nesses patamares, porque há muitos países que praticamente já não têm distribuição independente. Com o aparecimento das novas plataformas, essas coisas todas mudam, não sei se são mais difíceis nem mais fáceis, é diferente neste momento chamar a atenção sobre um filme. E realmente, por exemplo, com “A Herdade” tivemos essa vantagem de estar num Festival de Veneza, que é muito diferente do que era antigamente, porque basta ver que este ano, tirando o nosso, não vi nenhum filme que não tivesse uma grande estrela internacional como actor. E ter um filme sem vedetas conhecidas em competição, chamou logo a atenção: o que é que este filme está aqui a fazer? Também está numa das secções principais do Festival de Toronto, e, portanto, o êxito em Portugal também. Tudo isso permitiu que “A Herdade”, neste momento, seja um filme de que toda a gente já ouviu falar. Alguns viram, outros ainda não viram, e que também está a abrir as portas para conquistar todos os mercados internacionais. Daí a importância que eu dou à passagem no Festival de Macau e a deslocar-me, porque entretanto o Tiago Guedes vai estar em Havana e em Washington, portanto dividimo-nos.

“A Herdade” vai estrear-se em Macau esta sexta-feira. Vai estar no território para a sua apresentação. Já esteve em Macau, que memórias tem da região?

Só isso já seria outra conversa (risos).

Mas perguntava-lhe então qual o potencial desta ainda imberbe indústria cinematográfica de Macau. Vê algum potencial?

Eu vou um bocado também para tentar perceber o que se passa realmente em Macau, agora. Vou para estar, exactamente para testemunhar realmente a evolução que houve ou não em Macau, e é isso que também me faz fazer esta viagem.

Qual a importância que Macau poderá ter para a difusão de filmes de língua portuguesa no mercado asiático? Acha que há aqui um mercado a explorar?

Não sei. Mas é isso que eu vou tentar perceber. É isso mesmo, é tentar perceber se Macau pode ser, ou não, a grande plataforma da chegada de filmes em língua portuguesa a outros territórios.

Há algum realizador de Macau que lhe desperte interesse em produzir?

Também é isso que eu vou tentar perceber. Vão ser três dias em cheio por isso mesmo. Porque “A Herdade” já a vi, como deve calcular (risos). Vou mais para isso do que para outra coisa.

E o Ivo M. Ferreira, que produziu em 2002?

O Ivo fez o primeiro filme, “Em Volta”, comigo, e sou amigo dele há muitos anos. Agora já não é bem um cineasta macaense, agora já é mais um cineasta português. Já foi um cineasta macaense, agora não sei, depende da evolução dos projectos dele.

Há muito que se fala de uma maldição no cinema para se produzir um filme sobre D. Quixote de La Mancha. Orson Wells tentou durante décadas, mas não conseguiu terminá-lo em vida. Sentiu que essa maldição se confirmou consigo no “O Homem que Matou Dom Quixote”?

Mas o filme existe. A maldição era que o filme nunca seria feito, e provou-se que o filme poderia ser feito e foi feito, e eu penso que há muita coisa… E se o filme existe é porque realmente houve a minha intervenção. Depois o resto contarei um dia destes, mas deixo estar por agora, porque está tudo em tribunais. Quando isto estiver tudo definido eu depois contarei exactamente como foi. Eu pelo menos provei que não há maldições que fiquem (risos).

Mas houve muitas histórias sobre problemas nas filmagens, desde aviões a passar, a cheias. Parecia que havia sempre algum problema a impedir a concretização do filme…

O filme existe. Graças a mim, o filme existe e talvez exista contra mim (risos). Eu fiz com que o filme existisse, mas isso só prova que, de uma certa maneira, eu fui essencial nesse projecto.

Ponto Final | Texto: Eduardo Santiago | Fotografia: Eduardo Martins | Titulo: PG

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