“[Venho] tentar perceber se Macau
pode ser a grande plataforma da chegada de filmes em língua portuguesa a
outros territórios”
De passagem por Macau para a
estreia asiática do filme “A Herdade”, Paulo Branco é um dos convidados
especiais do Festival Internacional de Cinema e Cerimónia de Entrega de Prémios
de Macau (IFFAM). Com mais de 300 filmes e uma carreira de 40 anos, o produtor
português já trabalhou com alguns dos maiores realizadores do cinema
internacional, como Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Wim Wenders ou
David Cronenberg.
Paulo Branco acompanhou a
evolução da indústria cinematográfica das últimas décadas e produziu centenas
de filmes de alguns dos maiores realizadores do cinema mundial.
A viver entre
Portugal e França desde o início da década de 70, o produtor português assume
que a maneira de os filmes serem vistos pelo público mudou muito, na sequência
do fecho de salas de cinema e do surgimento das novas plataformas. Cúmplice da
genialidade de Manoel de Oliveira, Paulo Branco produziu mais de 20 filmes do
grande mestre do cinema português. Preocupado com o final de alguns dos
circuitos independentes de distribuição do cinema mundial, Paulo Branco
continua à procura de boas histórias que dêem em filmes, como foi o caso de “A
Herdade”. Uma ideia que lhe surgiu há 10 anos e que se materializou este ano.
Para o produtor, faltava fazer em Portugal um filme épico sobre o outro lado da
Revolução de Abril. Assumindo que cada filme é uma aventura, Paulo Branco quer
analisar a viabilidade de Macau ser, no futuro, uma plataforma de entrada do
cinema de língua portuguesa no mercado asiático. O produtor marca presença
hoje, às 20 horas, no Centro Cultural de Macau, na projecção do filme “A
Herdade”, enquadrada nas Apresentações Especiais do IFFAM.
A entrevista
Depois de se estrear no Festival
de Veneza e de passar pelo Festival de Cinema de Toronto, “A Herdade” é o
candidato de Portugal ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e tem estreia
marcada em Macau para o dia 6 de Dezembro, inserido na secção Apresentações
Especiais do Festival Internacional de Cinema de Macau. Com cerca de 300 filmes
produzidos ao longo de uma carreira de 40 anos, em que contexto é que surgiu a
ideia para este filme?
Penso que no cinema português
faltavam filmes com uma dimensão ficcional que tratassem períodos da história marcantes.
Creio que o que se passou durante a transição do salazarismo, através da
Revolução [de Abril], para os tempos modernos ainda não tinha tido um filme que
retratasse, pelo menos, em que ângulo fosse, essa evolução do país. Baseado em
algumas experiências pessoais que vivi, já há cerca de 10 anos que tinha esta
ideia de tentar, a partir de um filme, que se retratasse sobretudo o que nós
podíamos chamar os perdedores da revolução, e que no fundo acabavam por não
ser, como sabe, os verdadeiros perdedores, porque depois as coisas deram a
volta. [Neste filme] temos uma família que nunca na sua vida pensaria que a sua
posição fosse posta em causa, que a sua herdade fosse posta em causa, assim
como a própria coesão familiar, e que realmente esta passagem de uma época,
quase se pode chamar feudal, através de uma revolução, para uma época depois de
democracia europeia, e todas as sequelas que isso deixou, penso que era matéria
ficcional mais do que suficiente para se fazer um grande épico.
A ideia surgiu-lhe então há mais
de 10 anos neste contexto de pré-revolução, durante a década de 60, sobre os
grandes latifundiários do Alentejo. Uma vez que foi viver para França no início
da década de 70, as suas memórias também têm alguma ligação emocional à
produção deste filme?
Sim, fui testemunha directa e
indirecta de todo esse mundo. Tinha contactos muito directos com eles, sem
fazer parte dessas famílias. Isso mesmo dava-me um poder de observação
diferente de qualquer outro. Eu saí de Portugal em 1971, mas vi também alguns desses
casos muito particulares que atravessaram a revolução e a evolução dessas
famílias, desses latifúndios, sabendo que isto não é, de maneira nenhuma, o
exemplo do que se passou em Portugal, é um caso muito particular. São casos
muito particulares e, como em qualquer tipo de filme, é completamente
ficcionado. Sobretudo quis que o filme tivesse uma dimensão melodramática, um
pouco na veia dos grandes filmes clássicos de melodramas americanos.
Depois dos filmes “Coisa Ruim”
(2006) e de “Entre os Dedos” (2008), escolheu Tiago Guedes para realizar “A
Herdade”. Quando lhe apresentou este projecto já tinha uma ideia clara do que
pretendia. Porquê a escolha deste realizador?
A escrita do argumento foi feita
sem saber ainda qual seria o realizador e o que poderia fazer. Eu, na minha
cabeça, sempre pensei no Tiago [Guedes], mas a concretização dele como
realizador apareceu quando já se tinha trabalhado durante alguns anos sobre o
argumento. Quando o convidei, [o guião] ainda não estava exactamente como
gostaria, e a entrada do Tiago acabou por dar uma nova visão e uma nova
dimensão ao filme. Era alguém a quem eu queria dar a oportunidade de fazer um
filme com esta dimensão, porque quando fiz o “Coisa Ruim” e o “Entre os Dedos”
percebi que ele tinha uma enorme capacidade, por um lado, de direcção de
actores, que era muito importante aqui, e, por outro, era alguém que, se
tivesse um guião à altura, poderia fazer um grande filme. E foi exactamente o
que aconteceu, penso que ele fez um trabalho absolutamente extraordinário e o
filme reflecte isso.
Tiago Guedes acabou por ser um
dos autores do guião juntamente com Rui Cardoso Martins. Que indicações é que
lhe deu, ou se lhe deu alguma sugestão para a génese desta narrativa, destas
personagens, deste cenário, deste contexto?
O cenário fui eu que lhe propus,
o sítio onde está filmado era uma herdade que eu conheci muito bem, de uma
enorme amizade de há muitos anos com o proprietário. E o argumento foi
discutido. Todos os dias falávamos e todos os dias ele trazia novas ideias, novos
elementos e definimos conjuntamente algumas ideias que também que lhe sugeri.
Foi um trabalho com um realizador absolutamente fantástico. Filmámos em nove
semanas e não houve nenhum percalço pelo contrário, acho que tínhamos
exactamente a visão, a mesma visão do que queríamos que o filme fosse. E depois
a escolha do [Roberto] Perpignani como montador, que também se tornou
essencial. Era alguém que conheço há muitos anos, há 40 anos, que tinha montado
grandes filmes italianos, e sabia que seria realmente o montador ideal para dar
o toque final, mais do que isso, para realmente transformar e dar um ritmo à
narração que pudesse estar à altura daquilo que nós pretendíamos.
O trabalho de Perpignani no
documentário “Torre Bela”, de Thomas Harlan (1977), sobre a ocupação de uma
propriedade do Ribatejo, assim como o seu conhecimento sobre os tempos da
reforma agrária em Portugal, no chamado Verão quente da revolução, pesou nesta
escolha?
Conheço o Perpignani desde a
altura do “Torre Bela”, dos anos 70, foi o Thomas Harlan que mo apresentou, e
depois trabalhei com ele na “Estrangeira” do João Mário Grilo. É preciso não
esquecer que, quando o João Mário Grilo fez esse filme, tinha 22 anos e
conseguimos pô-lo em competição em Veneza. Ficámos sempre amigos. De vez em
quando ajudava-me em alguns filmes, que eu achava que não estavam correctos, e
tive a ideia de o desafiar, até como uma espécie de provocação, se ele não
queria montar o contracampo do “Torre Bela”. O desafio foi fascinante e quando
viu o material e isso tudo, disse-me: “Paulo, acho que temos um filme nas
mãos”. Porque quando rodamos, logicamente que não temos muito a noção se
conseguimos ou não tudo o que pretendíamos. E ele realmente deu essa coesão
absolutamente necessária que faz deste filme o que ele é neste momento.
O filme necessitava de uma
montagem que fosse para além da técnica, uma vez que não tem banda sonora, para
acentuar os momentos mais dramáticos?
A banda sonora impôs-se por ela
própria, os ventos, os silêncios, as coisas todas, isso tudo impôs que
realmente a música estaria a mais. A música está onde deve ser necessária, que
é no princípio e no fim, e o filme respira por ele próprio. Não necessita de
acentuar o lado melodramático que já está aí todo, nem o lado emocional, porque
está aí todo. Não há nenhuma cena, penso eu, que não tenha emoção. Tudo o que é
ilustrativo não está, tirámos. Portanto, é um filme que, até agora, pelo que
temos visto, prende o espectador da primeira à última imagem.
Teve duas produções no último
Festival de Veneza, “A Herdade”, em competição, e “Francisca”, de Manoel de
Oliveira, exibido como um clássico restaurado, numa secção especial. São dois
filmes que marcaram duas eras distintas na sua carreira de produtor?
Para mim foi marcante este
Festival de Veneza por isso mesmo. Ter um filme que produzi há quase 40 anos,
38 anos para ser exacto, e que ainda existe e é considerado um dos clássicos do
cinema mundial. Estar ligado a esse personagem enorme que é o Manoel de
Oliveira, para mim é gratificante, como deve calcular. E, ao mesmo tempo, ainda
estar em actividade. Ainda ter a mão, perceber que ainda posso estar associado
a projectos que trazem agora qualquer coisa também de novo.
O filme “Francisca” foi muito
marcante porque foi a primeira vez que trabalhou com o Manoel de Oliveira como
produtor, e foi um início de um ciclo muito produtivo para os dois, tanto para
Paulo Branco como para Manoel de Oliveira. Foi um filme que marcou o início da
construção de uma relação. Como foi essa construção?
Esta relação começou quando
estreei o “Amor de Perdição” em França, que mudou a visão que havia em Portugal
do Manoel de Oliveira, nessa altura considerado já um reformado, entre aspas,
que já tinha tido as suas oportunidades, e já estavam quase a tentar pô-lo na
prateleira. E, realmente, o êxito crítico que o filme teve em Paris, quando ele
se estreou, abriu-lhe portas. Quando decidi ser produtor, ele veio ter comigo e
perguntou-me se eu queria produzir o filme que ele estava a preparar, que não
era o “Francisca”, ia ser outro, mas depois acabou por ser o “Francisca”, e a
partir daí houve uma relação de confiança enorme que se manteve durante quase
trinta anos, ou mais. Produzimos acho que 22 obras juntos e foi um percurso,
como se diz, para mim fulcral, e para ele também foi extremamente importante,
porque quando, quase aos 80 anos, se recomeça uma carreira e se consegue
realizar o número de obras que ele realizou depois, é realmente um caso único
na cinematografia mundial.
Apesar de ter aberto um novo
caminho para a internacionalização do cinema português, sente que também ajudou
Manoel de Oliveira a ter um justo reconhecimento em Portugal?
Claro, e é preciso não esquecer
que se produzimos tantas obras juntos é porque cada uma das obras afirmava o
génio do Manoel Oliveira. Nós sabíamos que rapidamente se classifica os
realizadores e, portanto, o Manoel sabia que, em cada filme que fazia,
arriscava continuar ou não a sua carreira, e a cada um dos filmes ele
renovava-se, abrindo as portas para continuar. E aí estava eu a ajudá-lo, para
que os filmes tivessem uma dimensão e uma visibilidade internacional
importante, e nacional, de maneira que fosse inquestionável que ele continuasse
a trabalhar.
Quando é que sentiu que o ciclo
criativo com Manoel de Oliveira tinha chegado ao fim?
A certa altura eu já não trazia
ao Oliveira o que ele talvez pretendesse. Ele também, com a idade, começou a
isolar-se daqueles que o tinham ajudado durante estes anos todos, e a certa
altura disse-lhe que o lado produtivo da nossa relação podia-se transformar em
algo mais negativo, e pronto. Quando fiz o “Quinto Império”, eu já tinha
avisado antes que depois ele devia procurar outra via, porque comigo, acho que
já tínhamos fechado o ciclo, e foi o que aconteceu. Eu penso que isso até lhe
deu uma nova energia para depois fazer mais dois ou três filmes. Como produtor,
nós também temos de ter essa noção, quando a certa altura deixamos, não é de estar
a mais, mas já não trazemos aquelas mais-valias que podíamos trazer aos
projectos quando nos ocupamos deles.
A promoção internacional de um
filme está mais complicada nos tempos actuais?
Antigamente, houve filmes nossos,
do Manoel de Oliveira, por exemplo, que estrearam em mais de trinta países.
Agora já é mais difícil estar nesses patamares, porque há muitos países que
praticamente já não têm distribuição independente. Com o aparecimento das novas
plataformas, essas coisas todas mudam, não sei se são mais difíceis nem mais
fáceis, é diferente neste momento chamar a atenção sobre um filme. E realmente,
por exemplo, com “A Herdade” tivemos essa vantagem de estar num Festival de
Veneza, que é muito diferente do que era antigamente, porque basta ver que este
ano, tirando o nosso, não vi nenhum filme que não tivesse uma grande estrela
internacional como actor. E ter um filme sem vedetas conhecidas em competição,
chamou logo a atenção: o que é que este filme está aqui a fazer? Também está
numa das secções principais do Festival de Toronto, e, portanto, o êxito em
Portugal também. Tudo isso permitiu que “A Herdade”, neste momento, seja um
filme de que toda a gente já ouviu falar. Alguns viram, outros ainda não viram,
e que também está a abrir as portas para conquistar todos os mercados
internacionais. Daí a importância que eu dou à passagem no Festival de Macau e
a deslocar-me, porque entretanto o Tiago Guedes vai estar em Havana e em
Washington, portanto dividimo-nos.
“A Herdade” vai estrear-se em
Macau esta sexta-feira. Vai estar no território para a sua apresentação. Já
esteve em Macau, que memórias tem da região?
Só isso já seria outra conversa
(risos).
Mas perguntava-lhe então qual o
potencial desta ainda imberbe indústria cinematográfica de Macau. Vê algum potencial?
Eu vou um bocado também para
tentar perceber o que se passa realmente em Macau, agora. Vou para estar,
exactamente para testemunhar realmente a evolução que houve ou não em Macau, e
é isso que também me faz fazer esta viagem.
Qual a importância que Macau
poderá ter para a difusão de filmes de língua portuguesa no mercado asiático?
Acha que há aqui um mercado a explorar?
Não sei. Mas é isso que eu vou
tentar perceber. É isso mesmo, é tentar perceber se Macau pode ser, ou não, a
grande plataforma da chegada de filmes em língua portuguesa a outros
territórios.
Há algum realizador de Macau que
lhe desperte interesse em produzir?
Também é isso que eu vou tentar
perceber. Vão ser três dias em cheio por isso mesmo. Porque “A Herdade” já a
vi, como deve calcular (risos). Vou mais para isso do que para outra coisa.
E o Ivo M. Ferreira, que produziu
em 2002?
O Ivo fez o primeiro filme, “Em
Volta”, comigo, e sou amigo dele há muitos anos. Agora já não é bem um cineasta
macaense, agora já é mais um cineasta português. Já foi um cineasta macaense,
agora não sei, depende da evolução dos projectos dele.
Há muito que se fala de uma
maldição no cinema para se produzir um filme sobre D. Quixote de La Mancha.
Orson Wells tentou durante décadas, mas não conseguiu terminá-lo em vida.
Sentiu que essa maldição se confirmou consigo no “O Homem que Matou Dom
Quixote”?
Mas o filme existe. A maldição era
que o filme nunca seria feito, e provou-se que o filme poderia ser feito e foi
feito, e eu penso que há muita coisa… E se o filme existe é porque realmente
houve a minha intervenção. Depois o resto contarei um dia destes, mas deixo
estar por agora, porque está tudo em tribunais. Quando isto estiver tudo
definido eu depois contarei exactamente como foi. Eu pelo menos provei que não
há maldições que fiquem (risos).
Mas houve muitas histórias sobre
problemas nas filmagens, desde aviões a passar, a cheias. Parecia que havia
sempre algum problema a impedir a concretização do filme…
O filme existe. Graças a mim, o
filme existe e talvez exista contra mim (risos). Eu fiz com que o filme
existisse, mas isso só prova que, de uma certa maneira, eu fui essencial nesse
projecto.
Ponto Final | Texto: Eduardo
Santiago | Fotografia: Eduardo Martins | Titulo: PG
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