“A China será provavelmente um
rival mais formidável do que a União Soviética alguma vez foi”, escreveu
recentemente Stephen M. Walt.
José Pedro Teixeira
Fernandes* | Público | análise, opinião
1. “Pela primeira vez,
abordamos a ascensão da China — tanto nos desafios quanto nas oportunidades que
coloca — e nas implicações para a nossa segurança. Os líderes concordaram que
necessitamos de resolver esse assunto juntos, como uma Aliança. E que devemos
encontrar formas de incentivar a China a participar nos acordos sobre o
controlo de armamentos.” (Ver press conference
by NATO Secretary General Jens Stoltenberg, 4/12/2019). Esta referência
feita à China num comunicado de imprensa oficial da NATO, ainda que em tons
diplomáticos e ambivalentes — equaciona desafios (leia-se nas entrelinhas,
ameaças) e oportunidades (leia-se, possibilidade de alguns compromissos) —, é
mais do que uma referência simbólica. Não é um mero parágrafo inócuo no meio de
um comunicado para o público, nem uma frase vazia do ponto de vista
estratégico.
2. Se as actuais tendências
económicas e políticas se confirmarem, a disputa sino-americana irá ser a linha
maior da política internacional do século XXI, pelo menos no que toca às lutas
de poder entre grandes potências. O futuro da NATO irá jogar-se assim, de uma
forma ou de outra, também na relação com a China. Não é uma previsão muito
arriscada de efectuar. Obviamente que não se pode afastar de todo a
possibilidade de rupturas provocadas por acontecimentos imprevistos, que
alterem drasticamente o rumo dos acontecimentos. Isso poderia levar a questão
chinesa, tal como se desenha agora, a perder relevância em termos de segurança
e defesa, ou a não ser um ponto de atrito maior nas relações internacionais.
Mas, feita essa ressalva, tudo indica que a China irá estar no centro de uma
renovada finalidade estratégica partilhada pela Aliança Atlântica, ou então
alimentar, ainda mais, as divisões e as tendências de desagregação que já são
observáveis nesta.
3. A Cimeira de Londres
celebrou os 70 anos do Tratado do Atlântico Norte, assinado em Washington, nos
EUA, em 1949. Encontra-se aí a origem da NATO. Foi um dos pilares da
reconstrução e pacificação europeia no mundo pós-II Guerra Mundial — o outro
pilar foram as Comunidades Europeias. Excepto para os seus inimigos ideológicos
e/ou rivais estratégicos, é uma organização de defesa e segurança sem
alternativas sólidas à vista para os europeus. Isto não significa que a sua
actuação esteja acima de críticas fundadas, como aconteceu nos casos dos
conflitos da Jugoslávia nos anos 1990, especialmente no Kosovo, ou na guerra da
Líbia em 2011. Mas esse é o problema da NATO a partir de 1989, com o final da
Guerra-Fria. Apesar dos sucessivos alargamentos posteriores mostrarem uma
renovada atracção, esta perdeu uma parte significativa da sua consistência estratégica
original. As alianças militares normalmente só são sólidas quando há a
percepção generalizada de um poderoso inimigo comum. E a União Soviética já não
existe. Hoje, diferentes Estados da NATO percepcionam diferentes ameaças e
inimigos.
4. Há um período que vale a
pena revisitar, ocorrido após a extinção do Pacto de Varsóvia e a dissolução da
União Soviética em 1991. Nessa altura, existiam dois caminhos possíveis para a
NATO: o seu fim na lógica do término da Guerra-Fria, ou a sua continuidade adaptando-a
ao novo mundo que estava a emergir. A garantia de segurança dada pela
“hiperpotência” norte-americana — o rótulo foi popularizado pelo Ministro dos
Negócios Estrangeiros francês, Hubert Védrine —, a atracção pelo bem-estar
europeu ocidental e as marcas deixadas por mais de quatro décadas de domínio
soviético, foram decisivos para a mudança de campo dos antigos aliados
soviéticos-russos. E para a continuidade da NATO. Estes tiverem um papel
central na sua perpetuação no pós-Guerra Fria. Mas a sua reconfiguração sempre
foi uma questão delicada na relação com a Rússia. A relação futura seria de
cooperação e de parceria para paz, não de rivalidade e de conflito. A Rússia
deixava de ser o inimigo do passado, que originara a própria NATO. Todavia, aí
começou uma ambiguidade estratégica nunca resolvida — a maioria dos novos
membros do Leste tinham em mente a Rússia como ameaça à sua segurança. Era
contra esta que procuravam abrigo. Como Mikhail Gorbachev notou na época, o
alargamento da NATO só não induziria novo impulso nacionalista entre os russos
se a Rússia fosse uma pequena nação cosmopolita. Mas a Rússia não é uma coisa
nem outra.
5. Apesar das memórias da
Guerra-Fria — e da União Soviética — se projectarem na Rússia actual, para os
EUA esta é mais um “irritante estratégico” e que causa alguns danos de maior ou
menor dimensão, do que um sério rival a nível global, como nos tempos da União
Soviética. Entre outras fraquezas, a Rússia não dispõe de uma economia, nem uma
população, que lhe permitam competir globalmente e projectar o seu poder como
os EUA e China fazem. Para além do petróleo, do gás natural, ou do armamento,
não tem produções importantes para exportar e competir nos mercados globais. Se
tivesse esses meios, poderia usá-los como instrumento para criar uma rede de
dependências e de Estados-clientes, mas não tem. Assusta os Estados Bálticos, a
Polónia e Geórgia, tornou o Leste da Ucrânia um terreno de batalha, projecta
influência política e militar na Síria ou na Venezuela. Mas essas são acções que
disfarçam muitas fraquezas do Estado russo, por muito hábil que Vladimir Putin
seja estrategicamente — e tem, de facto, inquestionáveis qualidades nesse
campo. Mas uma Rússia relativamente frágil que se faz forte, nunca será o
cimento do medo que a União Soviética foi para a NATO até à queda do muro de
Berlim, em 1989.
6. Nas análises prospectivas
de tipo geopolítico, a China ocupava já um papel de relevo no pensamento
realista político norte-americano da década de 1990, sendo antecipada como o
grande rival do futuro. Reler o que Henry Kissinger (ver Diplomacia, trad.
port, Gradiva, 1996) ou Samuel P. Huntington (ver O Choque das
Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, trad. port., Gradiva, 1999)
escreviam na época mostra bem isso. Mas esse futuro já chegou.
Agora a China está mesmo no
centro da discussão estratégica. Recentemente foi Stephen M. Walt a levantar a
questão, colocando os chineses no cerne de uma reconfiguração da NATO.
Atente-se neste excerto: “A ascensão da China continua a desviar a atenção dos
EUA da Europa para a Ásia e não há motivos para pensarmos que essa tendência
irá parar. A China será provavelmente um rival mais formidável do que a União
Soviética alguma vez foi”. Como consequência, os EUA irão reduzir gradualmente
o seu comprometimento de defesa com a Europa. Para Stephen M. Walt, a solução —
que também seria do interesse dos europeus — passa por reorientar a NATO para
conter a China. Pelo menos na esfera económica, os europeus têm um papel
relevante nessa contenção, a qual deixará os EUA mais empenhados na
continuidade da Aliança Atlântica. Tal reconfiguração, “poderá fornecer à NATO
a justificação estratégica que lhe falta desde 1992 e manter a parceria
transatlântica durante mais tempo”. (Ver Stephen M. Walt, “Europe’s Future Is
as China’s Enemy” in Foreign Policy, 22/01/2019,
https://foreignpolicy.com/2019/01/22/europes-future-is-as-chinas-enemy/).
7. Na imprensa chinesa,
dominada pelo Partido Comunista, o espectro da NATO designar a China como
inimigo já está a provocar fortes reacções. “Graças aos EUA, o perigo de uma
nova Guerra Fria está a aproximar-se da região da Ásia-Pacífico. No dia 26 de
Setembro foi realizado o primeiro Diálogo Quadrilateral de Segurança ao nível
ministerial — conhecido como Quad —, o qual decorreu em Nova Iorque entre os
EUA, o Japão, a Índia e a Austrália. Os políticos dos EUA designaram-no como
‘um aumento significativo’ do nível do diálogo, enquanto alguns observadores
argumentam que o Quad, que visa a China, tem agora mais probabilidades de
evoluir para uma ‘NATO asiática.’” (Ver NATO naming China the
enemy will lead to consequences no Global Times, 12/11/2019). Na
mesma linha, o embaixador chinês nos EUA, Cui Tiankai, afirmou que os EUA estão
a tentar construir um ‘muro de Berlim’ contra a China. (Ver China’s
man in Washington says US building ‘Berlin Wall’ against Beijing em South
China Morning Post, 5/12/2019). Como se pode verificar pelas tendências
descritas, tudo indica que a disputa sino-americana irá continuar, ou até
acentuar-se. Para a NATO, a luta contra o terrorismo sempre foi um cimento
superficial, pela desproporção da ameaça face aos meios militares da
organização e divergências políticas — basta ver o desalinhamento da Turquia
para quem as milícias curdas é que são os terroristas. Os seus membros
europeus, Portugal incluído, têm agora um delicadíssimo problema nas mãos.
Estavam habituados a separar as questões económicas — o comércio e o
investimento —, das questões estratégicas de segurança político-militar. Esse
mundo acabou e não estão preparados para o novo mundo que se aproxima.
*Investigador do IPRI-NOVA
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