Ricardo Paes Mamede | Diário de
Notícias | opinião
A proposta de Orçamento de Estado
(OE) para 2020 prevê um aumento de 0,3% nos salários da função pública. Prevê
também uma inflação para Portugal de 1%. Isto significa que muitos funcionários
públicos vão perder poder de compra. Outra vez. Será o 19º ano que isto
acontece nos últimos 20.
O governo diz que não é bem
assim. Segundo o relatório do orçamento, em 2020 haverá promoções e progressões
nas várias carreiras da função pública, traduzindo-se num aumento salarial
médio de 3,2% (e numa despesa adicional de 715 milhões de euros) face a 2019.
No total, a factura salarial do
Estado deverá aumentar 3,6% (mais do que o PIB nominal), devido às promoções e
progressões, mas também ao reforço do número de funcionários do Estado. Por
exemplo, foi anunciada a intenção recrutar mais 8.400 profissionais de saúde
nos próximos dois anos e 1.000 trabalhadores qualificados para reforçar as
competências da administração.
Um governo que faz crescer as
despesas com salários da função pública em percentagem do PIB, que aumenta as
remunerações médias dos seus trabalhadores, que descongela carreiras, que
repõem direitos de progressão e que aumenta o número de funcionários em
áreas-chave, dificilmente pode ser visto como inimigo do Estado e de quem nele
trabalha.
No entanto, para a maioria dos
funcionários públicos isto não é grande consolação. Percebe-se porquê. Nas
últimas duas décadas a administração pública foi um dos alvos preferenciais (a
par da lei laboral) das chamadas reformas estruturais. A preocupação central da
generalidade das medidas tomadas pelos diferentes governos foi apenas uma:
reduzir a despesa. Cortou-se a eito no número de funcionários (menos 50 mil
desde 2005). Eliminaram-se estruturas e cargos dirigentes, muitas vezes sem
justificação evidente. Criou-se um modelo de avaliação que deveria servir para
estimular o desempenho, mas cujo principal resultado prático foi limitar o
ritmo de progressões na carreira.
Tudo isto aconteceu antes que
Paulo Portas, então vice-Primeiro Ministro, apresentasse em 2013 o seu famoso
guião para a reforma do Estado. Não admira que já então não houvesse muito para
propor, mesmo por quem sempre disse querer "racionalizar" o sector
público.
Ou seja, nas últimas duas décadas
quem trabalha para o Estado não se limitou a ver cair o seu salário real -
nalguns casos em quase 20%. Teve também de lidar com uma instabilidade
recorrente nos serviços, um aumento do volume de trabalho efectivo e a
implementação de sistemas disfuncionais de gestão de pessoas. Tudo isto no seio
de instituições cada vez mais envelhecidas e onde as pessoas se sentem
muitas vezes tratadas como meras variáveis de ajustamento financeiro.
Por tudo isto, não é de esperar
que a paz social reine na função pública em 2020, apesar dos vários sinais do
governo de querer valorizar o papel do Estado. Os sindicatos argumentam, com
razão, que o aumento dos salários médios anunciado no OE2020 traduz uma
reposição apenas parcial de tudo o que os trabalhadores perderam na última
década. Para muitos funcionários públicos - os que não serão abrangidos pelas
progressões previstas - 2020 será mais um ano em que o salário cai em termos
reais, tal como aconteceu em todos os anos excepto um desde a viragem do
século. Para grande parte dos serviços, a falta de pessoal para responder às
solicitações e a dificuldade em lidar com os desafios actuais com equipas cada
vez mais envelhecidas, vai continuar a ser a norma.
Motivar as equipas que prestam
serviços públicos nestas condições não é fácil. Mais difícil ainda é convencer
jovens qualificados e competentes a abraçar uma carreira na função pública,
face aos salários que se praticam e ao histórico de desconsideração pelos
profissionais do Estado. À luz desta experiência, o argumento habitual sobre o
privilégio de ser funcionário público - o de não correr riscos de despedimento
- é cada vez menos decisivo.
Todos parecem querer ter um
Estado mais moderno e eficaz. Nas actuais circunstâncias, consegui-lo seria
quase um milagre. Aos governos não se pedem milagres. Mas podemos esperar que
tenham noção dos desafios.
*Economista e Professor do ISCTE
Sem comentários:
Enviar um comentário