quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Portugal | À espera de milagres


Ricardo Paes Mamede | Diário de Notícias | opinião

A proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2020 prevê um aumento de 0,3% nos salários da função pública. Prevê também uma inflação para Portugal de 1%. Isto significa que muitos funcionários públicos vão perder poder de compra. Outra vez. Será o 19º ano que isto acontece nos últimos 20.

O governo diz que não é bem assim. Segundo o relatório do orçamento, em 2020 haverá promoções e progressões nas várias carreiras da função pública, traduzindo-se num aumento salarial médio de 3,2% (e numa despesa adicional de 715 milhões de euros) face a 2019.

No total, a factura salarial do Estado deverá aumentar 3,6% (mais do que o PIB nominal), devido às promoções e progressões, mas também ao reforço do número de funcionários do Estado. Por exemplo, foi anunciada a intenção recrutar mais 8.400 profissionais de saúde nos próximos dois anos e 1.000 trabalhadores qualificados para reforçar as competências da administração.

Um governo que faz crescer as despesas com salários da função pública em percentagem do PIB, que aumenta as remunerações médias dos seus trabalhadores, que descongela carreiras, que repõem direitos de progressão e que aumenta o número de funcionários em áreas-chave, dificilmente pode ser visto como inimigo do Estado e de quem nele trabalha.

No entanto, para a maioria dos funcionários públicos isto não é grande consolação. Percebe-se porquê. Nas últimas duas décadas a administração pública foi um dos alvos preferenciais (a par da lei laboral) das chamadas reformas estruturais. A preocupação central da generalidade das medidas tomadas pelos diferentes governos foi apenas uma: reduzir a despesa. Cortou-se a eito no número de funcionários (menos 50 mil desde 2005). Eliminaram-se estruturas e cargos dirigentes, muitas vezes sem justificação evidente. Criou-se um modelo de avaliação que deveria servir para estimular o desempenho, mas cujo principal resultado prático foi limitar o ritmo de progressões na carreira.


Tudo isto aconteceu antes que Paulo Portas, então vice-Primeiro Ministro, apresentasse em 2013 o seu famoso guião para a reforma do Estado. Não admira que já então não houvesse muito para propor, mesmo por quem sempre disse querer "racionalizar" o sector público.

Ou seja, nas últimas duas décadas quem trabalha para o Estado não se limitou a ver cair o seu salário real - nalguns casos em quase 20%. Teve também de lidar com uma instabilidade recorrente nos serviços, um aumento do volume de trabalho efectivo e a implementação de sistemas disfuncionais de gestão de pessoas. Tudo isto no seio de instituições cada vez mais envelhecidas e onde as pessoas se sentem muitas vezes tratadas como meras variáveis de ajustamento financeiro.

Por tudo isto, não é de esperar que a paz social reine na função pública em 2020, apesar dos vários sinais do governo de querer valorizar o papel do Estado. Os sindicatos argumentam, com razão, que o aumento dos salários médios anunciado no OE2020 traduz uma reposição apenas parcial de tudo o que os trabalhadores perderam na última década. Para muitos funcionários públicos - os que não serão abrangidos pelas progressões previstas - 2020 será mais um ano em que o salário cai em termos reais, tal como aconteceu em todos os anos excepto um desde a viragem do século. Para grande parte dos serviços, a falta de pessoal para responder às solicitações e a dificuldade em lidar com os desafios actuais com equipas cada vez mais envelhecidas, vai continuar a ser a norma.

Motivar as equipas que prestam serviços públicos nestas condições não é fácil. Mais difícil ainda é convencer jovens qualificados e competentes a abraçar uma carreira na função pública, face aos salários que se praticam e ao histórico de desconsideração pelos profissionais do Estado. À luz desta experiência, o argumento habitual sobre o privilégio de ser funcionário público - o de não correr riscos de despedimento - é cada vez menos decisivo.

Todos parecem querer ter um Estado mais moderno e eficaz. Nas actuais circunstâncias, consegui-lo seria quase um milagre. Aos governos não se pedem milagres. Mas podemos esperar que tenham noção dos desafios.

*Economista e Professor do ISCTE

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