Ricardo Paes Mamede | Diário de
Notícias | opinião
O Estado português precisa de
reduzir o seu nível de endividamento. Este é um pressuposto consensual, que tem
sido usado para justificar a necessidade de excedentes nas contas do Estado. A
ideia soa intuitiva: para reduzir a dívida é preciso poupar, certo? Nem por
isso. Não é preciso que as receitas do Estado em cada ano sejam superiores às
despesas para que o peso da dívida diminua.
Vejamos um exemplo simples (não
se assuste com os números, é menos difícil de perceber do que parece).
Imaginemos que a riqueza
produzida no país em 2019 foi de 100 unidades monetárias e que a dívida pública
no final do ano era de 120 unidades monetárias (ou seja, 120% do PIB). Se em
2020 o volume de produção crescesse 1,9% e os preços dos bens produzidos 1,4%,
o valor do PIB em 2020 seria cerca de 103,3 unidades monetárias. Suponhamos
também que o saldo orçamental será nulo em 2020, ou seja, que o Estado gastará
exactamente o que receber. A ser assim, não seria necessário pedir mais
dinheiro emprestado e o valor da dívida manter-se-ia em 120 unidades monetárias
(salvo operações excepcionais que têm impacto na dívida e não no défice).
Nas circunstâncias descritas, o
rácio da dívida pública sobre o produto cairia de 120% para cerca de 116% (o
que corresponde a 120 a dividir por 103,4). Ou seja, o Estado não pouparia nada
em 2020 e ainda assim o peso da dívida no PIB cairia cerca de quatro pontos
percentuais. Este exemplo mostra que não é preciso o Estado poupar para fazer
cair o peso da dívida.
Seguindo a mesma lógica, é fácil
mostrar que mesmo que houvesse um défice orçamental de 1% do PIB em 2020 o
rácio da dívida pública sobre o PIB cairia três pontos percentuais (ou seja,
para 117%). Por outras palavras, as despesas do Estado poderiam até ser menores
do que as receitas em 1% do PIB, e ainda assim o peso da dívida diminuiria. A
chave para compreender este resultado está no aumento do PIB: aquilo que a
economia produz a mais de um ano para o outro mais do que compensa o défice
incorrido.
Os valores que utilizei no
exemplo acima para o crescimento do PIB em valor (1,9% de aumento da produção
combinado com 1,4% de aumento dos preços) correspondem ao que o governo prevê
na proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2020.
O mesmo não se aplica ao que se
estabelece como objectivo para o saldo orçamental: o executivo não pretende ter
um défice de 1% do PIB (que, como vimos, permitiria fazer baixar o rácio da
dívida em três pontos percentuais do PIB); nem sequer se limita a fixar como
meta um défice nulo (que melhoraria o rácio da dívida em quase quatro pontos
percentuais). A proposta de OE 2020 visa atingir um excedente de 0,2% do PIB,
um valor que está além do necessário para colocar o rácio da dívida pública
numa trajectória decrescente.
Estabelecer objectivos para a
dívida pública mais exigentes do que o necessário tem custos. Cada 0,1% do PIB
de saldo orçamental representa cerca de 200 milhões de euros por ano. É mais do
que o programa plurianual de investimentos em saúde que o governo inscreveu no
OE2020. Estes recursos poderiam ser utilizados para melhorar o funcionamento
dos serviços colectivos, para recuperar o investimento público e/ou para
reduzir os impostos.
A questão que se coloca é: será o
objectivo do governo para o saldo orçamental de 2020 excessivo? A resposta a
esta questão não é óbvia.
Um dos argumentos que têm sido
utilizados para justificar aquele objectivo é a credibilização do Estado
português junto dos credores. Mas é difícil sustentar que um Estado cujo rácio
da dívida está a cair de forma evidente não merece a confiança dos
investidores. Ainda mais se os recursos em causa fossem utilizados em despesas
que terão de ser realizadas mais cedo ou mais tarde (e em muitos casos é mesmo
disso que se trata).
Outro argumento em defesa de um
saldo orçamental positivo é a necessidade de respeitar as regras da UE. As
normas orçamentais em vigor estabelecem metas para a redução do rácio da dívida
e do défice estrutural. Quanto à primeira, tendo em conta a situação actual, é
suposto a dívida descer no a uma média de três pontos percentuais do PIB. Como
se viu acima, dadas as previsões para 2020, esta meta poderia ser atingida
mesmo com défices orçamentais próximos de 1%.
Mais difícil é rebater o
argumento de que o governo está obrigado a reduzir o défice estrutural. Se não
sabe o que isto é, não se admire. Trata-se de um indicador não-observável, que
está sujeito a estimações estatísticas baseadas em conceitos polémicos e de
validade questionável. Se for este o principal motivo para poupar umas centenas
de milhões de euros a mais do que seria necessário e desejável, a resposta à
pergunta que dá o título a este texto seria qualquer coisa como: "na
verdade, não queremos nem precisamos de um excedente orçamental; existe porque
tem de ser". Não seria uma conclusão nova. Mas seria lamentável.
Economista e Professor do ISCTE
O autor escreve segundo a
ortografia pré-acordo ortográfico
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