No Chile, manifestantes
utilizam lasers para confundir câmaras de reconhecimento facial e derrubar
drones
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Cresce movimento para bloquear
tecnologia de reconhecimento facial. Câmaras associadas a Inteligência
Artificial já permitem reconhecer pessoas em multidões — inibindo protestos e
transformando cidades em territórios de controle
Ricardo Abramovay | Outras Palavras
A Cnil
(Comissão Nacional de Informática e Liberdades) da França proibiu que
um colégio de Nice e outro de Marselha usassem reconhecimento facial para controlar
o acesso dos alunos aos estabelecimentos.
Os colégios alegavam a
possibilidade de economizar tempo dos funcionários e redução de fraudes com as
novas tecnologias. Após análise cuidadosa, a Cnil chegou à conclusão de que
tais procedimentos são contrários aos princípios de proporcionalidade e de
minimização de dados, uma das bases da legislação europeia que regulamenta a
coleta, o armazenamento e a análise de informações pessoais obtidas por meio de
dispositivos digitais.
Não se trata de idiossincrasia
francesa. A autoridade sueca de proteção de dados pessoais baniu o uso de
reconhecimento facial em escolas e multou um estabelecimento que utilizava a
técnica, apesar do consentimento dos pais dos alunos.
Exagero? Nos Estados Unidos, as
câmaras municipais de Berkeley, San Francisco e Oakland, na Califórnia, e de
Summerville, em Massachusetts, baniram o uso por autoridades públicas de
imagens coletadas por dispositivos de reconhecimento facial.
No início de outubro, o
governador da Califórnia assinou uma lei que institui moratória de três anos no
uso de câmaras nos uniformes dos policiais do Estado. Parlamentares de lados
opostos do espectro, como a democrata Alexandria Ocasio-Cortez e o republicano
Jim Jordan, uniram-se para pedir regulamentação legal dessas câmeras antes que
seu uso fique “fora de controle”.
Em 2017, Satya Nadella, CEO da
Microsoft, chegou a citar a obra de George Orwell para referir-se ao risco de
que câmaras de vigilância contribuam para a emergência de um Estado
totalitário. Embora o Google tenha feito da “inteligência artificial em
primeiro lugar” (AI first) seu lema, a empresa recusou-se, no ano passado, a
desenvolver um sistema de reconhecimento facial que seus clientes pudessem
adaptar facilmente a seus dispositivos.
Um grupo de acionistas da Amazon
manifestou preocupação de que o Rekognition, plataforma de reconhecimento
facial da empresa, abrisse caminho à violação de direitos humanos e civis. Em
causa estão não só o viés e as distorções do dispositivo (mais preciso na
identificação de homens brancos do que de mulheres negras, por exemplo), mas
também o perigo de que o Rekognition seja vendido a governos autoritários e se
transforme em obstáculo ao avanço da democracia no mundo.
Setenta organizações da sociedade
civil obtiveram a assinatura de 150 mil pessoas contra esse dispositivo nos
Estados Unidos. Em 2018, o Washington Post publicou editorial alertando contra
os riscos de um Estado orwelliano que resultaria da vigilância generalizada a
que estes equipamentos abrem caminho.
Essas informações suscitam uma
constatação importante: o reconhecimento facial não é um instrumento apenas de
Estados ditatoriais como a China. Londres hoje tem mais dispositivos de
reconhecimento facial por habitante do que Pequim. Nos Estados Unidos, o FBI
dispõe de 641 milhões de imagens de americanos não suspeitos de qualquer crime.
Trata-se de um dos mais prósperos
e promissores negócios da economia contemporânea. A China, onde há 176 milhões
de câmeras de segurança, detém 46% do faturamento em reconhecimento facial no
mundo e tem a ambição de que o setor chegue a US$ 150 bilhões por ano em 2030.
Além de seu emprego sistemático
por autoridades policiais, a tecnologia é a base do sistema de pagamentos no
varejo e dos empréstimos “peer to peer”, altamente difundidos no país. Nos
Estados Unidos esse mercado cresce 20% ao ano desde 2016.
Embora o Brasil não seja
protagonista das inovações tecnológicas trazidas pela revolução digital, aqui
também o reconhecimento facial avança celeremente.
Esse crescimento deve
intensificar-se com o decreto que instituiu o Cadastro
Base do Cidadão, que envolve não apenas foto, digitais e CPF, mas também
dados biométricos como retina, íris, formato da face, voz e maneira de andar.
Todos esses dados poderão ser compartilhados por diferentes órgãos
governamentais, e a gestão desse sistema será feita por um comité formado por
sete representantes do governo, sem qualquer participação da academia, do
mercado ou da sociedade civil.
Mas, se é um negócio tão próspero
e virtualmente tão útil no comércio, na educação e na segurança pública, por
que razão vem suscitando tanta apreensão e tantos protestos?
É difícil acreditar que se trate
de uma espécie de doença infantil que atingiria tecnologias incipientes, quando
alguns dos mais importantes ícones da revolução digital e empresas como a
Microsoft e o Google manifestam publicamente o temor de uma expansão não
regulamentada dessas tecnologias. Do que é acusado o reconhecimento facial?
O problema central é que ele muda
a natureza da biometria pela qual os indivíduos são identificados.
Um dos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (o ODS 16.9) é que até 2030 todos os habitantes do
mundo possuam uma identidade verificável, base para o exercício de sua
cidadania não só no voto mas na obtenção de benefícios de políticas sociais.
Hoje 502 milhões de pessoas na África Subsaariana e 357 milhões na Ásia do Sul
não possuem identificação oficial.
Mas
o reconhecimento facial contemporâneo não se limita a baratear e
tornar mais rápida a obtenção deste direito universal à identificação. Ele traz
ao menos duas mudanças preocupantes na ideia de biometria.
A primeira delas é que, até o
início do século 21, a biometria se apoiava no recolhimento de informações
individualizadas e cuja obtenção exigia o conhecimento e a cooperação das
pessoas. Quando você renova sua carteira de habilitação, você sabe que suas digitais
são captadas eletronicamente. É o que Laura Donohue, do Centro de Direito da
Universidade de Georgetown, qualifica de “identificação biométrica imediata”.
Você está presente fisicamente no ato que o identifica e não tem como
ignorá-lo.
O reconhecimento facial inaugura
outra modalidade, que Donohue chama de “identificação biométrica remota”. Como
as câmeras de identificação são interligadas e conectadas a dispositivos que
contêm gigantesca base de dados (big data), elas podem localizar e identificar as
pessoas em qualquer situação sem que elas tenham a menor ideia de que estão sob
escrutínio.
Hoje, é perfeitamente possível
identificar indivíduos numa multidão. Não é por outra razão que tanto em Hong
Kong como em Santiago os manifestantes tentavam despistar as imagens
das câmaras, apontando raios laser em sua direção.
Sob o ângulo jurídico, essa forma
de identificação pervasiva fere um dos mais importantes preceitos
constitucionais americanos, a Quarta Emenda, segundo a qual o cidadão só pode
ser investigado se houver uma suspeita bem fundamentada de que ele tenha feito
algo errado.
A vigilância generalizada coloca
o conjunto da sociedade sob observação e, na verdade, sob suspeita. À medida
que o indivíduo sabe que, de forma remota, pode ser reconhecido e catalogado
como participante de uma manifestação pública, é difícil dizer que sua própria
liberdade de expressão não está comprometida.
Mas isso não se refere apenas a
manifestações políticas: é a vida cotidiana, a interação social, a
sociabilidade humana que se transformam como resultado da identificação
biométrica remota.
Uma cidade inteiramente
monitorada e cujos dados são permanentemente processados por algoritmos que
interpretam as imagens coletadas perde uma das características mais importantes
do próprio conceito de cidade: o anonimato, a possibilidade de não ser
identificado em locais públicos. Os espaços públicos tornam-se territórios de
vigilância.
A entrada numa igreja, num bar, o
cruzamento dos dados da entrada no bar com aquilo que o indivíduo consumiu (e
que foi pago também por reconhecimento facial), a ida a um psiquiatra, a um
ginecologista, em suma toda a movimentação referente à vida privada e à própria
intimidade das pessoas ganha uma dimensão pública que, ao longo do tempo, acaba
por interferir em seus comportamentos, já que elas sabem que estão sob
observação.
O movimento global pelo banimento
ou ao menos pela moratória na expansão das tecnologias de reconhecimento facial
ganha força.
A possibilidade de que governos
com inclinação autoritária usem o argumento da segurança e da economia para
reprimir manifestações públicas, constranger indivíduos e impor condutas coerentes
com sua visão de mundo é uma ameaça à democracia muito maior que a dos serviços
secretos convencionais.
E o emprego dessas técnicas pelo
setor privado traz igualmente o risco de impor a toda a sociedade
comportamentos em que os indivíduos vão agir como quem sabe que está sendo
permanentemente vigiado.
O tema pode parecer distante, mas
é uma realidade que está em franca implantação e sobre a qual é essencial uma
séria discussão pública que vá além do mantra de que isso é incontornável —como
se o rumo tomado pelas tecnologias fosse independente da capacidade de
interferência dos indivíduos e das organizações da sociedade civil.
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