Novo livro tenta explicar como
sistema que diz defender a liberdade gerou figuras como Trump e Bolsonaro.
Explicação pode estar na auto-corrosão e niilismo a que estão sujeitas as
sociedades quando creem no valor supremo do dinheiro
Eleutério F. S. Prado | Outras
Palavras
O neoliberalismo é, sim, criador.
Do que mesmo, na prática!? De má distribuição da renda, da destruição da
proteção social dos mais pobres, da precarização da condição de vida dos
trabalhadores – tudo isso é bem conhecido. Ainda que procure se justificar em
nome da liberdade, o que ele procura mesmo é elevar a taxa de lucro do capital
industrial e manter intocado e em processo de valorização o volumoso capital
fictício acumulado nas últimas décadas. Mas a sua mais terrível – tem gente que
gosta desse último termo e o emprega positivamente – criação não é bem
conhecida. E ela precisa, sim, ser mostrada e bem mostrada.
Antes disso, note-se que esse
agenciamento político é de certo modo sincero quando exalta a liberdade. Mas
veja-se também que defende, em última análise, a liberdade do agente econômico,
do homem como personificação do seu capital. E, nessa perspectiva, é preciso
perceber que o neoliberalismo move-se também no terreno da moralidade e tem uma
pretensão tanto idealista quanto “idealista”.
O livro mais recente da cientista
política norte-americana Wendy Brown tem uma importância fundamental porque
aponta para o pior que o neoliberalismo está criando em vários países da
“civilização ocidental”. No recém-publicado In the ruins of neoliberalism
– The rise of antidemocratic politics in the West (Columbia University
Press, 2019), ela mostra que diversos movimentos políticos de extrema direita,
com diversos tons de cinza, crescem atualmente no mundo. E que eles são filhos
legítimos do neoliberalismo, sem que – segundo ela – fossem desejados por ele.
Ainda que essa afirmação, tal
como Brown mostra, seja verdadeira quando se refere a um pensador como
Friedrich Hayek, é certo, também, que essa forma de governamentalidade assomou
ao poder pela primeira vez na história durante um governo de direita, por meio
da ditadura do general Pinochet, no Chile. E foi aí, como bem se sabe, que
pontificaram os rebentos ideológicos de Milton Friedman, outro conhecido
apóstolo do neoliberalismo. O sonho de fazer o sistema funcionar alimentou um
pesadelo.
Brown, professora de ciência
política da Universidade da California, em Berkeley, modifica a sua tese
anterior sobre a natureza do neoliberalismo, que fora apresentada em outra
obra, Undoing the Demos: Neoliberalism’s stealth revolution (Zone
Books, 2015). Aí, sustentara que o projeto dessa corrente consistia basicamente
em ampliar o âmbito das relações mercantis, inclusive para as esferas do mundo
da vida pessoal e social; mas agora percebeu que o neoliberalismo mantinha e
mantém um projeto muito mais ambicioso. Eis que tem uma pretensão moral e
política de “proteger as hierarquias tradicionais negando a própria ideia de
sociedade e restringindo radicalmente o poder político nos estados-nações”.
Margareth Thatcher, repercutindo Hayek, não afirmou que a sociedade não existe,
isto é, que só existem os indivíduos?!
Brown julga que apenas se pode
entender essa forma de governamentalidade quando se lê rigorosamente os textos
de Hayek. Eis que esse autor considera o mercado como uma ordem moral que,
estimulando a máxima liberdade na descoberta de inovações mercantis, promove o
contínuo desenvolvimento da civilização. Essa ordem, segundo ele, evolui
espontaneamente por seleção de normas que são transmitidas pela tradição. Ou
seja – e é preciso indicar enfaticamente – esse autor crê que tais normas não
são postas por deliberação intencional, pelo poder político e, em especial,
pela construção política, mas por meio de inúmeras iniciativas privadas que
ocorrem contínua e descentralizadamente na sociedade. E compreende esta última
apenas como uma ordem formada por indivíduos que interagem com outros
indivíduos, formando um sistema complexo.
Ocorre que não é bem isto o que
está acontecendo nos países que ainda se veem como pluralistas, liberais e
democráticos – uma imagem que é motivo de orgulho e material de propaganda.
Seja ele denominado de autoritarismo, fascismo, populismo, iliberalismo ou
plutocracia, o fato é que está crescendo aí um tipo de movimento social e
político que parece relembrar, ainda que com diferenças, os piores momentos do
século passado, em especial na Itália e na Alemanha, nas décadas de 1920 e
1930.
Esses movimentos – menciona Brown
– combinam de modo peculiar libertarismo, moralismo, autoritarismo,
nacionalismo e governo forte, além de racismo, homofobia e misoginia. De modo
aparentemente contraditório, juntam antielitismo com favorecimento dos mais
ricos; defesa de rigor moral e civilidade com uma conduta amoral e brutal;
religiosidade fervorosa com comportamentos impiedosos com as vítimas de seu
ódio. Mantêm um certo desprezo pela ciência e pela intelectualidade, mas não
deixam de ser seduzidos pelos avanços tecnológicos e por filosofias políticas
extravagantes. Enfim: “desdenham a política e os políticos, mas, ao mesmo tempo,
mostram um feroz desejo de poder, assim como ambição política desmesurada”.
Como explicar esse ornitorrinco
que não é só australiano e muito menos brasileiro? Brown lembra, então, que não
faltaram esforços para classificar esse novo animal, arredio ao conhecimento
mas sem dúvida bestial em sua forma de ser.
Tomando por referência a
realidade dos países capitalistas desenvolvidos, alguns elementos foram
propostos para caracterizar o nascimento e o crescimento desse enjeitado, em
pleno século XXI. As políticas neoliberais iniciadas já no final da década dos
anos 1970 reduziram não só as taxas, mas também a qualidade do crescimento
econômico. Os sindicatos foram desincentivados e os empregos intensivos em
trabalho, deslocados para o exterior. Assim, os salários reais estagnaram, os
bons empregos rarearam, as escolas públicas receberam poucos recursos (algumas
foram privatizadas), as infraestruturas das cidades deixaram de ser bem
cuidadas, os sistemas de aposentadoria encolheram. Os países mais prósperos, ademais,
receberam uma enorme imigração de força de trabalho barata. Uma insatisfação
social de fundo assediou os trabalhadores fabris, brancos e cristãos, nesses
países.
O processo produziu uma
polarização na esfera do trabalho, da cultura e das crenças religiosas. As
ocupações de baixos salários, pouco exigentes, e as de altas remunerações, que
requerem mais escolaridade e mais treinamento, cresceram, mas não muito; as
intermediárias com bons salários, no entanto, tornaram-se escassas. Os
imigrantes que vieram de outros países tinham outros costumes e outras crenças;
ora, isto produziu um estranhamento crescente entre os habitantes antigos e os
recentemente chegados nas zonas mais pobres. Um mal-estar latente, mas pontuado
por conflitos abertos, alastrou-se entre os antigos moradores dessas zonas e os
que para ali vieram na condição de estrangeiros ou mesmo de párias.
A insatisfação cresceu entre
aqueles que foram educados na ideologia do progresso e na lógica consumista do
bem-estar crescente. Esta foi contrariada por uma estagnação persistente, por
uma deterioração das condições de vida e por uma insuficiência de serviços
públicos em especial nas zonas mais carentes. Como foi bem documentado, a
desigualdade de renda cresceu fortemente. Racismo e a xenofobia
desenvolveram-se, então, espontaneamente, sob as políticas e os discursos do
neoliberalismo que se justificavam falando em “equidade e inclusão”. Um ódio à
globalização engendrou-se na mesma medida em que passou a ocorrer a
transferência de empregos para o exterior e a implantação de tecnologias que
produziam desemprego tecnológico – tudo isso em nome da difusão dos padrões
ocidentais para o resto do mundo.
Nessa linha de argumentação,
chegou-se à tese de que populistas espertos, bem assessorados no marketing e na
propaganda, foram capazes de capturar eleitoralmente todas as frustrações
acumuladas no período em que prevaleceu o assim chamado “neoliberalismo progressista”.
Desse modo, tornaram-se capazes de ascender ao poder, dando continuidade quase
às mesmas políticas do período anterior – apenas agora com uma aparência
populista e antissistema. Para alcançar os seus objetivos, os plutocratas
apresentaram-se na cena política como críticos da financeirização, do roubo de
empregos pelas firmas do exterior, da invasão de estrangeiros no mercado
nacional etc. Para dourar uma pílula amarga que piora ainda mais as condições
de vida dos assalariados e dos precários, passaram a se apresentar como
tradicionalistas religiosos, nacionalistas e militaristas que tinham por tarefa
salvar a pátria da ruína trazida pelos políticos tradicionais.
Brown considera que essa
narrativa contém uma certa verdade, ainda que não diga tudo o que precisa ser
dito; mais do que isso, pensa que omite o principal. Eis que não apreende por
que forças políticas profundamente antidemocráticas cresceram nesse ambiente de
tal modo a fazer reaparecer, ainda que mal disfarçados de democratas, os velhos
demônios do autoritarismo e, no limite, do fascismo.
Ademais, essa compreensão – diz
Brown – não é capaz de pensar o neoliberalismo como uma forma de
governamentalidade que promove a moralidade tradicional e, ao mesmo tempo, a
lógica da concorrência em todas as esferas da sociedade. É preciso ver aqui que
a sua ascensão não ocorreu por mérito próprio. A oportunidade veio apenas
quando a taxa de lucro despencou, no correr da década dos anos 1970 e se
descobriu que a social-democracia estava entravando o evolver da acumulação de
capital. Em consequência, teve de enfrentar condições difíceis. Pois, tinha que
transformar o padrão de atuação do Estado enfrentando a contradição entre a
necessidade de aumentar a lucratividade, manter a demanda efetiva, conservar a
boa saúde do próprio capitalismo (o que requer gastos públicos crescentes). Os
resultados acima apontados de modo breve decorreram de sua atuação que pode ser
considerada desastrosa.
De qualquer modo, o
neoliberalismo tem de sustentar continuamente uma esperança de retomada e de
prosperidade que não pode fazer acontecer. Mantém-se, assim, num estado de
hipocrisia, o qual, quando descoberto, transforma-se em cinismo: promete sempre
mais, mais uma vez, para o futuro mais próximo, aquilo que não pôde realizar no
passado recente. Ora, este não é ainda o principal. Pois, nesse momento da
exposição, essa autora apresenta um achado central: como promove a
racionalidade econômica de modo intenso, a ficção do capital humano, do ser que
se pensa como uma empresa de si mesmo, o neoliberalismo reforça o niilismo. Eis
o que diz:
Ora, aquela narrativa não abrange
a intensificação do niilismo que agora contesta a verdade dos fatos e
transforma a moralidade tradicional em arma na luta política. Não identifica os
assaltos à democracia constitucional, à igualdade sexual, de gênero e racial; a
sabotagem praticada contra a educação pública e a esfera civil pública e não
violenta, ao mesmo tempo em que fala de liberdade e moralidade. Não apreende,
enfim, como a racionalidade neoliberal desorienta radicalmente a esquerda ao
chamar de “politicamente correto” o discurso que clama pela justiça social.
O novo livro de Brown defende a
tese de que o neoliberalismo, durante trinta anos (1979-2008), preparou o
terreno onde medraram as correntes antidemocráticas na segunda década do século
XXI. Ela não afirma que seja a causa direta do direitismo extremado, nem que
este último tenha sido desejado por ele. Diferentemente, afirma que, ao
expandir a racionalidade da competição econômica para outras esferas da
sociedade, minou a democracia em vigor nesses países e, ao mesmo tempo,
desacreditou a confiança em certos valores comunitários em que esta
supostamente se baseia. O neoliberalismo, em última análise, “intensificou o
niilismo e este se manifestou como quebra da fé na verdade, nos fatos e nos
valores que fundam a sociedade”. Ou seja, remontando a Nietzsche, ela afirma
que a desvolaração dos valores, a quebra da confiança nas condições necessárias
para o funcionamento do próprio sistema econômico, foi o solo em que renasceram
as tendências fascistas.
Brown lembra que, do ponto de
vista intelectual, o neoliberalismo nasceu, em 1947, com a criação da Sociedade
Mont-Pelerin. Formada por conhecidos pensadores liberais como Hayek, Friedman,
Aron etc., passou a se reunir anualmente nessa cidade da Suíça. Seu propósito
explícito era reprogramar o liberalismo, com o fim de combater os
totalitarismos que haviam medrado com o socialismo burocrático no Oriente e com
os regimes nazifascistas na Europa Ocidental. O projeto de sociedade então
criado colocava a lógica de funcionamento dos mercados como um antidoto,
supostamente eficaz, contra a centralização do sistema econômico por meio do
Estado, vista como a causa principal dos regimes totalitários. Ou seja,
Ansiosos para separar o mercado
da política, os neoliberais originais queriam tornar odientos tanto o
capitalismo de compadrio quanto o poder oligárquico internacional. (…) Ao
afastar a política dos mercados, assim como os interesses econômicos da política
econômica, queriam evitar a manipulação dos interesses públicos mais gerais,
feita pelos grandes industriais capitalistas . Desejavam, sobretudo, debelar as
mobilizações demagógicas dos cidadãos e, para tanto, pensaram os mercados como
uma disciplina moral que poderia limitar a democracia e conter o populismo.
Talvez haja aí uma concessão
excessiva, já que Hayek visitou o Chile de Pinochet e aprovou a sua ditadura.
Não importa. Nesse sentido, Brown vai argumentar que a catástrofe política do
presente, em que se vê as tendências neofascistas se organizarem e tomarem o
poder ou parte dele em diversos países, não foi uma consequência intencional da
política neoliberal, mas apenas a sua criatura Frankenstein.
O “erro” cometido por aqueles
intelectuais decorreu certamente da grande confiança que tinham na economia
baseada em mercados e movida descentralizadamente pelo autointeresse dos
participantes, organizações, empresas e pessoas. Trata-se, para eles, do
sistema que cria prosperidade, promove a liberdade e estabelece as condições
para uma vida pacífica. Faltou-lhes, portanto, um conhecimento melhor do
capitalismo enquanto tal, um sistema em que o dinheiro é a forma privilegiada
do capital, e este é um princípio de desenvolvimento infinito que transforma os
indivíduos sociais em personificações.
Em consequência, eles não foram
capazes de pensar com a categoria do niilismo que Nietzsche consagrou como uma
característica fundamental da sociedade moderna. Ora, não parece difícil
aceitar que a lógica do dinheiro que gera mais dinheiro – mesmo se esse
filósofo não tenha dito isso expressamente – é a grande responsável pela
desvaloração de todos os valores nessa sociedade que não aqueles associados à
lógica de crescimento infinito do capital. Há, pois, um vínculo obscuro – não
propositado – entre o liberalismo e o fascismo, ainda que os lanços não sejam
reconhecidos como tais.
Em consequência, vale perguntar
se os neoliberais originais, alguns dos quais receberam o Prêmio Nobel de
Economia, foram apenas ingênuos, cegos devido à aparência mercantil do sistema
do capital ou ignorantes por má vontade, já que não quiseram ler ou compreender O
capital de Marx?
Para tentar responder essa
pergunta, faz-se uma citação de Roger Scruton no livro O que é
conservadorismo (É realização editora, 2001):
Marx tomou de empréstimo da
filosofia hegeliana o conceito de alienação para descrever a condição do homem
sob o capitalismo. (…) Reconhecendo que pode haver verdade na descrição de
nossa “condição alienada”, e reconhecendo também a sua conexão profunda entre
essa condição e o ‘fetichismo da mercadoria’ (…) os conservadores vão desejar
apresentar sua própria versão da alienação e refutar a acusação de que a
propriedade privada é sua causa.
Bem, é preciso convir, para
terminar, que nem toda propriedade privada é condição da alienação, mas somente
aquela que embasa a forma mercadoria dos produtos do trabalho. Ademais, é
preciso dizer que em O capital não há, de fato, uma condenação moral
da exploração!
Como Roger Scruton, o autor
citado resolve o seu problema? Seu truque consiste em tratar o trabalho não
como um meio, mas como um fim, algo que depende da vontade expressa do
trabalhador. É assim, por meio de uma reinterpretação, que o trabalho alienado
se transforma em não alienado, “um fim em si mesmo”. Scruton, então, revela
para os seus leitores que ele tem muita satisfação em trabalhar na escrita de
livros que promovem a causa do conservadorismo. E que, por isso, não é
alienado. Vale, então, repetir a pergunta antes feita, mas dirigida agora a
esses opositores do liberalismo: são eles apenas ingênuos, cegos devido à
aparência mercantil do sistema do capital ou ignorantes por má vontade, já que
também não quiseram compreender a fundo O capital de Marx?
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