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Tamme de Boer, You Played
Yourself, 2012
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Em tempos de ultra-capitalismo,
três de suas ideias destacam-se: só a revolta salvará o planeta; ela poderá
partir das periferias do sistema – mas só em democracia as multidões
transformarão o mundo e a si mesmas
Algumas palavras pessoais, a
título de introdução. Descobri a Rosa Luxemburgo por volta de 1955, aos 17
anos, graças ao meu amigo Paulo Singer. Paulo explicou-se longamente a teoria
do imperialismo, mas o que me atraiu mesmo foram os textos políticos que me
passou, a crítica do centralismo, a visão revolucionária e democrática de Rosa
Luxemburgo. Aderimos juntos a uma pequena organização “luxemburguista”, a Liga
Socialista Independente, da qual também faziam parte Maurício Tragtenberg,
Hermínio Sacchetta e, alguns anos depois, os irmãos Sader. Tínhamos um local de
reuniões no centro de São Paulo que media 2×5 metros e cuja única ornamentação
era um quadro com um desenho que representava Rosa Luxemburgo.
Nessa época, recebi da minha mãe
um exemplar das cartas de prisão[fn]Rosa Luxemburgo, “Briefe” (Berlim, Verlag
der Jugend-Internationale, 1927) que tinha trazido de Viena quando emigrou para
o Brasil, o que me permitiu apreciar melhor a dimensão humana e generosa da
revolucionária intransigente. Anos mais tarde, escrevi, sob a orientação de
Lucien Goldmann, uma tese sobre o jovem Marx, apresentada na Sorbonne em 1964.
Esta tese está disponível no Brasil com o título “A teoria da revolução do
jovem Marx” (Boitempo, 2013), toda inspirada no marxismo de Rosa Luxemburgo. É
uma paixão que dura até hoje.
Marxismo e a filosofia da práxis
Quando publicou as “Teses sobre
Feuerbach” [Em “A ideologia alemã”, Boitempo 2007] de Marx, em 1888, Engels
qualificou-as de “primeiro documento em que está depositado o germe genial de
uma nova concepção do mundo”. Com efeito, nesse texto Marx supera
dialeticamente – a famosa Aufhebung, negação/conservação/superação – o
materialismo e o idealismo anteriores e formula uma nova teoria, que se poderia
designar como filosofia da práxis. Enquanto os materialistas franceses
insistiam que é necessário mudar as circunstâncias para que os seres humanos se
transformem, os idealistas alemães acreditavam que, ao promover uma nova
consciência nos indivíduos, se modifica depois a sociedade. Contra essas duas
percepções unilaterais, que conduziam ao impasse – e à busca de um “Grande
Educador” ou Salvador Supremo – Marx afirma na Tese III: “A coincidência da
mudança das circunstâncias e da atividade humana, ou mudança de si mesmo [Selbstveränderung],
pode ser apreendida e racionalmente compreendida apenas enquanto práxis
revolucionária”. Por outras palavras: na prática revolucionária, na ação
coletiva emancipadora, o sujeito histórico – as classes oprimidas – transforma
ao mesmo tempo as circunstâncias materiais e sua própria consciência. Marx
volta a essa problemática na Ideologia alemã, na qual escreve:
“A revolução, portanto, não é
apenas necessária porque não há outro meio de derrubar a classe dominante, mas
porque a classe subversiva [stürzende] pode ter êxito apenas por meio de uma
revolução para se livrar de toda a velha merda [Dreck] e tornar-se assim capaz
de efetuar uma nova fundação da sociedade.” Karl Marx e Friedrich Engels,
“L’idéologie allemande” (Paris, Éditions Sociales, 1968), VI, p. 243. [Ed.
bras.: “A ideologia alemã”, São Paulo, Boitempo, 2007.]
Isso significa que a
autoemancipação revolucionária é a única forma possível de libertação: é só
pela sua própria práxis, pela sua experiência na ação, que as classes oprimidas
podem transformar a sua consciência, ao mesmo tempo que subvertem o poder do
capital. É verdade que em textos posteriores, como, por exemplo, no famoso
prefácio de 1857 à “Contribuição à Crítica da Economia Política” [em “As armas
da crítica”, Boitempo, 2012], encontramos uma versão muito mais determinista,
que vê a revolução como resultado inevitável da contradição entre forças e
relações de produção, mas o princípio da autoemancipação dos trabalhadores
continua a inspirar o pensamento político de Marx.
É Antonio Gramsci, nos “Cadernos
da Prisão” [em “As armas da crítica”, Boitempo, 2012], que vai utilizar pela
primeira vez a expressão “filosofia da práxis” para se referir ao marxismo.
Afirmam alguns que isso seria apenas uma astúcia para enganar os guardas de
prisão fascistas, que poderiam desconfiar de qualquer referência a Marx; mas
esse argumento não explica porque não usou outra fórmula, como “dialética
racional” ou “filosofia crítica”. Na verdade, com essa expressão, ele define de
modo preciso e coerente o que distingue o marxismo como visão de mundo
específica e distancia-se radicalmente das leituras positivistas e
evolucionistas do materialismo histórico.
A filosofia da práxis no
pensamento de Rosa Luxemburgo
Poucos marxistas do século XX
estiveram tão próximos do espírito dessa filosofia marxista da práxis como Rosa
Luxemburgo. Claro, ela não escrevia textos filosóficos nem elaborava teorias
sistemáticas – como observa com razão Isabel Loureiro: “as suas ideias,
dispersas em artigos de jornais, brochuras, discursos, cartas […] são muito
mais respostas imediatas à conjuntura do que uma teoria lógica e internamente
coerente”. Isabel Loureiro, “Rosa Luxemburgo: os dilemas da ação
revolucionária” (São Paulo, Unesp, 1995, p. 23). Ainda assim, a filosofia da
práxis, que ela interpreta de maneira original e criativa, é o fio condutor –
no sentido elétrico da palavra – da sua obra e da sua ação enquanto
revolucionária. Mas o seu pensamento está longe de ser estático: é uma reflexão
em movimento, que se enriquece com a experiência histórica. Tentaremos
reconstituir a evolução do seu pensamento usando alguns exemplos.
É verdade que os seus escritos
são atravessados por uma tensão entre o determinismo histórico – a
inevitabilidade da derrocada do capitalismo – e o voluntarismo da ação
revolucionária. Isso aplica-se em particular aos seus primeiros trabalhos,
anteriores a 1914; “Reforma ou revolução?”, de 1899, obra com que Rosa
Luxemburgo se tornou conhecida no movimento operário alemão e internacional, é
um exemplo claro dessa ambivalência. Contra Bernstein, insiste que a evolução
do capitalismo se orienta no sentido de um desmoronamento (Zusammenbruch) e que
esse desmoronamento é “a via histórica que conduz à realização da sociedade
socialista”. Trata-se, em última análise, de uma variante socialista da
ideologia do progresso linear e inevitável que dominou o pensamento ocidental
desde a “Filosofia da Ilustração”. O que salva o seu argumento de um
economicismo fatalista é a pedagogia revolucionária da ação: “Somente no curso
[…] de lutas demoradas e tenazes, poderá o proletariado chegar ao grau de
maturidade política que lhe permita obter a vitória definitiva da revolução”.
Rosa Luxemburgo, “Reforma ou revolução?” (São Paulo, Expressão Popular, 1999),
p. 24, 41 e 105. Cito a tradução brasileira, de Lívio Xavier, bela figura
militante e intelectual que ainda cheguei a conhecer.
Essa pedagogia dialética da luta
é também um dos principais eixos da polémica com Lenine, em 1904:
“É apenas no decorrer da luta que
o exército do proletariado se recruta e que toma consciência dos fins dessa
luta. A organização, a conscientização [Aufklärung] e o combate não são fases
distintas, mecanicamente separadas no tempo […] mas apenas aspectos diversos de
um único e mesmo processo.”
É claro que a classe se pode se
equivocar no decurso desse combate, mas, em última análise, “os erros cometidos
por um movimento realmente revolucionário são histórica e infinitamente mais
fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor ‘Comité Central’”.
A autoemancipação dos oprimidos
implica a autotransformação da classe revolucionária por sua experiência
prática; esta, por sua vez, produz não só à consciência – tema clássico do
marxismo –, mas também à vontade:
“O movimento histórico-universal [Weltgeschichtlich]
do proletariado até à sua vitória é um processo cuja particularidade reside no
fato de que aqui, pela primeira vez na história, as próprias massas populares
impõem a sua vontade contra as classes dominantes […]. Entretanto, as massas
não podem conquistar essa vontade senão na luta quotidiana com a ordem
estabelecida, isto é, no quadro dessa ordem”. Idem, “Organisationsfragen der
russischen Sozialdemokratie” (1904), em “Die Russische Revolution” (Frankfurt,
Europäische Verlagsanstalt, 1963), p. 27-8, 42 e 44. [Ed. bras.: “ARevolução
Russa”, Petrópolis, Vozes, 1991.]
Poderíamos comparar a visão de
Lenine com a de Rosa Luxemburgo na seguinte imagem: para Vladimir Ilitch,
redator do jornal Iskra, a centelha revolucionária é trazida pela vanguarda
política organizada, de fora para dentro das lutas espontâneas do proletariado;
para a revolucionária judia polaca, a centelha da consciência e da vontade
revolucionária acende-se no combate, na ação de massas. É verdade que a sua
visão de partido como expressão orgânica da classe correspondia mais à situação
na Alemanha do que na Rússia ou na Polônia, onde já se colocava a questão da
diversidade de partidos em relação ao socialismo.
Os eventos revolucionários de
1905 no Império Russo czarista vão amplamente confirmar Rosa Luxemburgo na sua
convicção de que o processo de tomada de consciência das massas operárias
resulta menos da atividade “esclarecedora” do partido do que da experiência de
ação direta e autônoma dos trabalhadores:
“É o proletariado que vai
derrubar o absolutismo na Rússia. Mas o proletariado necessita para isso de um
alto grau de educação política, de consciência de classe e de organização.
Todas essas condições não podem surgir da leitura de panfletos e brochuras, mas
somente na escola da luta e na luta política viva, no curso da revolução em
marcha. […] O súbito levantamento geral [Generalerhebung] do proletariado em
janeiro, sob a forte impulsão dos acontecimentos de São Petersburgo, foi, na
sua ação dirigida para o exterior, um ato político de declaração de guerra
revolucionária ao absolutismo. Mas essa primeira ação geral direta da classe
teve um impacto ainda maior numa direção interna, despertando pela primeira
vez, como que por um choque elétrico [einen elektrischen Schlag], o sentimento
e a consciência de classe em milhões e milhões de indivíduos”. Idem,
“Massenstreik, Partei und Gewerkschaften”, em “Gewerkschaftskampf und
Massenstreik” (Berlim, Vereinigung Internationaler Verlagsanstalten, 1928, p.
426-7) [ed. bras.: “Greve de massas, partido e sindicatos”, São Paulo, Kayros,
1979]. Trata-se de uma coletânea de ensaios de Rosa Luxemburgo sobre a greve de
massas, organizada por seu excelente discípulo e biógrafo Paul Frölich, expulso
nos anos 20 do Partido Comunista. Consegui esse livro num alfarrabista em Tel-Aviv;
o exemplar tinha o carimbo do Kibutz Ein Harod, “Seminário de Ideias,
Biblioteca Central”. O proprietário do livro era, sem dúvida, um esquerdista
judeu alemão que emigrou para a Palestina em 1933 e entregou sua biblioteca ao
kibutz onde se instalou. Com a morte dos velhos militantes do kibutz, e como a
nova geração não lê alemão, a biblioteca vendeu ao alfarrabista o seu stock de
livros na língua de Marx.
É verdade que a fórmula polémica
sobre “panfletos e brochuras” parece subestimar a importância da teoria
revolucionária nesse processo; por outro lado, a atividade política de Rosa
Luxemburgo, que consistia em grande parte na redação de artigos de jornais e de
brochuras – sem falar de suas obras teóricas no campo da economia política –
demonstra, sem dar margem a dúvidas, o significado decisivo que atribuía ao
trabalho teórico e à polémica política no processo de preparação da revolução.
Na famosa brochura de 1906 sobre
a greve de massas [publicado em “As Armas da Crítica”, Boitempo 2012], Rosa
Luxemburgo ainda utiliza os argumentos deterministas tradicionais: a revolução
ocorrera “com a necessidade de uma lei da natureza”. Mas a sua visão concreta
do processo revolucionário coincide com a teoria da revolução de Marx, tal como
ele a desenvolve na Ideologia alemã, obra que ela não conhecia, já que só foi
publicada após a sua morte: a consciência revolucionária não se pode
generalizar senão no curso de um movimento “prático”, a transformação “maciça”
dos oprimidos só pode se generalizar no decorrer da própria revolução. A
categoria da práxis – que, para ela e para Marx, é a unidade dialética entre o
objetivo e o subjetivo, a mediação pela qual a classe em si se torna para si –
permite superar o dilema paralisante e metafísico da social-democracia alemã,
entre o moralismo abstrato de Bernstein e o economicismo mecânico de Kautsky:
enquanto, para o primeiro, a mudança “subjetiva”, moral e espiritual dos
“homens” é a condição do advento da justiça social, para o segundo é a evolução
econômica objetiva que leva “fatalmente” ao socialismo. Isso permite entender
melhor por que razão Rosa Luxemburgo se opunha não só aos revisionistas
neokantianos, mas também, a partir de 1905, à estratégia de “atentismo” passivo
defendida pelo assim chamado “centro ortodoxo” do partido.
Essa mesma visão dialética da
práxis é que lhe permite superar o tradicional dualismo encarnado no Programa
de Erfurt do Partido Social-Democrata Alemão entre as reformas (ou o “programa
mínimo”) e a revolução (ou o “objetivo final”). Pela estratégia da greve de
massas que ela propõe em 1906 – contra a burocracia sindical – e em 1910 –
contra Kautsky –, Rosa Luxemburgo encontra precisamente o caminho capaz de
transformar as lutas econômicas ou o combate pelo sufrágio universal num
movimento revolucionário geral.
Ao contrário de Lenine, que
distingue a “consciência sindical” da “consciência social-democrata”, ela
sugere uma distinção entre a consciência teórica latente, característica do
movimento operário no período de dominação do parlamentarismo burguês, e a
consciência prática e ativa, que surge no processo revolucionário, quando as
próprias massas, e não apenas os deputados e dirigentes do partido, aparecem na
cena política, cristalizando a sua “educação ideológica” diretamente na práxis;
é graças a essa consciência prático-ativa que as camadas menos organizadas e
mais atrasadas se podem tornar, num período de luta revolucionária, o elemento
mais radical. Dessa premissa decorre a sua crítica àqueles que baseiam a sua
estratégia política numa superestimação do papel da organização na luta de
classes – o que é acompanhado em geral da subestimação do proletariado não
organizado –, esquecendo a ação pedagógica da luta revolucionária: “Seis meses
de revolução farão mais para a educação das massas atualmente não organizadas
do que dez anos de reuniões públicas e distribuição de panfletos”. Ibidem, p.
455-7.
Então, Rosa Luxemburgo é
espontaneísta? Não é bem assim. Na brochura sobre “Greve de massas, partido e
sindicatos” (1906) [em “As armas da crítica”, Boitempo, 2012], ela insiste que
o papel da “vanguarda consciente” não é esperar “com fatalismo” que o movimento
popular espontâneo “caia do céu”. Ao contrário, seu papel é precisamente
“preceder [vorauseilen] a evolução das coisas e tentar acelerá-la”. Ela
reconhece que o partido socialista deve tomar “a direção política” da greve de
massas, o que consiste em “dar à batalha a sua palavra de ordem, a sua
tendência, assim como a tática da luta política”; chega a afirmar que a
organização socialista é “a vanguarda [Vorhut] dirigente de todo o povo
trabalhador” e que “a clareza política, a força, a unidade do movimento
resultam precisamente dessa organização”. Ibidem, p. 445 e 457.
É interessante observar que a
organização polaca dirigida por Rosa Luxemburgo e Leo Jogiches, o Partido
Social-Democrata do Reino da Polónia e Lituânia (SDKPiL), clandestina e
revolucionária, tinha mais semelhanças com o partido bolchevique do que com a
social-democracia alemã. Deve-se também levar em conta, na discussão das
concepções organizacionais de Rosa Luxemburgo, as suas teses sobre a
Internacional como partido mundial centralizado e disciplinado, propostas num
documento redigido em 1914, após o colapso da Segunda Internacional. Por uma
ironia da história, Karl Liebknecht, numa carta à amiga Rosa Luxemburgo,
censurou essa concepção da nova Internacional como sendo “demasiado centralista
e mecânica”, com “‘disciplina’ em excesso e muito pouca espontaneidade”,
considerando as massas “demasiados instrumentos da ação, não portadoras de
vontade; mais como instrumentos da ação desejados e decididos pela
Internacional, e menos desejados e decididos por elas mesmas”. Ver Karl
Liebknecht, “À Rosa Luxemburg: remarques à propos de son projet de thèses pour
le groupe ‘Internationale’”, Partisans, n. 45, jan. 1969, p. 113.
O otimismo determinista
(econômico) da teoria do Zusammenbruch, a derrocada do capitalismo como
vítima das suas próprias contradições, não desaparece dos seus escritos, mas,
ao contrário, encontra-se no centro da sua grande obra econômica “A acumulação
do capital” [trecho em “As armas da crítica”, Boitempo, 2012], de 1911. O texto
que vai superar essa visão tradicional do movimento socialista do começo do
século é a brochura “A Crise da Social Democracia”, escrita na prisão em 1915,
publicada na Suíça em janeiro de 1916 e assinada com o pseudônimo Junius. Esse
documento, graças à palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, é um marco na história
do pensamento marxista. Curiosamente, o argumento de Rosa Luxemburgo começa por
se referir às “leis inalteráveis da história”; ela observa que a ação do
proletariado “contribui para determinar a história”, mas parece acreditar que
se trata apenas de “acelerar ou retardar” o processo histórico. Até aqui, nada
de novo!
Logo em seguida, porém, ela
compara a vitória do proletariado a “um salto da humanidade do reino animal
para o reino da liberdade”, acrescentando: esse salto não será possível “se a
faísca incendiária [zündende Funke] da vontade consciente das massas não surgir
das circunstâncias materiais que são fruto do desenvolvimento anterior”. Aqui
aparece então a famosa Iskra, essa centelha da vontade revolucionária que é
capaz de fazer explodir a pólvora seca das condições materiais. Mas o que
produz essa zündende Funke? É graças a uma “grande cadeia de poderosas
lutas” que “o proletariado internacional fará o seu aprendizado sob a direção
da social-democracia e tentará tomar em suas mãos a sua própria história [seine
Geschichte]”. Rosa Luxemburgo, “Brochura Junius”, em “Rosa, a vermelha” (2.
ed., São Paulo, Busca Vida, 1988), p. 114-5, corrigido pelo original alemão Die
Krise der Sozialdemokratie von Junius (Bern, Unionsdruckerei, 1916), p. 11. Essa
cópia da edição original pertenceu ao meu professor e orientador Lucien
Goldmann; recebi-a recentemente da sua viúva, Annie Goldmann. Por outras
palavras: é na experiência prática da luta que se acende a centelha da
consciência revolucionária dos oprimidos e explorados.
Ao introduzir a expressão
“socialismo ou barbárie”, Junius refere-se à autoridade de Engels num escrito
de “quarenta anos atrás” (o “Anti-Dühring”): “Friedrich Engels disse certa vez:
‘A sociedade burguesa acha-se num dilema: avanço ao socialismo ou regressão à
barbárie’”.[1] Na verdade, o que Engels disse é bastante diferente:
“As forças produtivas engendradas
pelo modo de produção capitalista moderno, assim como o sistema de repartição
dos bens que criou, entraram em contradição flagrante com o modo de produção em
si, e isso a tal grau que se torna necessária uma mudança do modo de produção e
de repartição, se não quisermos ver toda a sociedade moderna perecer”.[2]
O argumento de Engels –
essencialmente económico e não político, como o de Junius – é bem mais
retórico, uma espécie de demonstração por absurdo da necessidade do socialismo,
senão a sociedade moderna vai “perecer” – fórmula vaga que não se sabe bem a
que se refere. Na verdade, foi Rosa Luxemburgo quem inventou, no sentido pleno
da palavra, a expressão “socialismo ou barbárie”, que teria tanto impacto no
curso do século XX. Se se refere a Engels, é talvez para tentar dar
legitimidade maior a uma tese bastante heterodoxa. Evidentemente, foi a guerra
– e o desmoronamento do movimento operário internacional, em agosto de 1914 –
que terminou abalando sua convicção na vitória inevitável do socialismo. Nos
parágrafos seguintes, Junius desenvolve seu ponto de vista inovador:
“Encontramo-nos hoje, tal como
profetizou Engels há uma geração, diante da terrível opção: ou triunfa o
imperialismo, provocando a destruição de toda a cultura e, como na Roma Antiga,
o despovoamento, a desolação, a degeneração, um imenso cemitério, ou triunfa o
socialismo, ou seja, a luta consciente do proletariado internacional contra o
imperialismo, os seus métodos, as suas guerras. Tal é o dilema da história
universal, a sua alternativa de ferro, a sua balança a oscilar no ponto de
equilíbrio, aguardando a decisão do proletariado”.
Pode-se discutir o significado do
conceito de “barbárie”: trata-se, sem dúvida, de uma barbárie moderna,
“civilizada”, portanto a comparação com a Roma Antiga é pouco útil e, nesse
caso, a afirmação da brochura Junius revela-se profética: o fascismo alemão,
manifestação suprema da barbárie moderna, resultou da derrota do socialismo.
Contudo, o mais importante na fórmula “socialismo ou barbárie” é a palavra
“ou”: trata-se do princípio de uma história aberta, de uma alternativa ainda
não decidida (pelas “leis da história” ou da economia), que depende, em última
análise, de fatores “subjetivos”: a consciência, a decisão, a vontade, a
iniciativa, a ação, a práxis revolucionária. Não insisto mais porque escrevi já
há muitos anos um artigo sobre essa questão.[3] Como aponta Isabel Loureiro no seu
belo livro, é verdade que mesmo na brochura Junius, assim como em textos
posteriores de Rosa Luxemburgo, ainda encontramos referências ao colapso
inevitável do capitalismo, à “dialética da história” e à “necessidade histórica
do socialismo”.[4] Mas de alguma maneira, com a fórmula “socialismo ou
barbárie”, colocavam-se as bases de uma outra concepção da “dialética da
história”, distinta do determinismo econômico e da ideologia iluminista do
progresso inevitável.
Voltamos a encontrar a filosofia
da práxis no centro da polêmica de 1918 sobre a Revolução Russa – outro texto
capital redigido atrás das grades da prisão. O teor desse documento é
conhecido: de um lado, o apoio aos bolcheviques, que, com Lenine e Trotsky à
frente, salvaram a honra do socialismo internacional, ousando a Revolução de
Outubro; de outro, um conjunto de críticas, algumas bastante discutíveis, como
as questões agrária e nacional, e outras, como o capítulo da democracia, que
aparecem como proféticas. O que preocupa a revolucionária judia polaco alemã é,
acima de tudo, a supressão das liberdades democráticas pelos bolcheviques:
liberdade de imprensa, de associação e de reunião, que são precisamente a
garantia da “atividade política das massas operárias”; sem elas, “é
inconcebível a dominação das grandes massas populares”. As tarefas gigantescas
da transição ao socialismo – “às quais os bolcheviques se apegaram com coragem
e resolução” – não podem ser realizadas sem “uma intensa educação política das
massas e uma acumulação de experiências”, impossíveis sem liberdades
democráticas. A construção de uma nova sociedade é uma “terra virgem”, que
levanta “problemas para milênios”; ora, “só a experiência é capaz de trazer as
correções necessárias e abrir novos caminhos”. O socialismo é um produto histórico
“nascido da própria escola da experiência”: o conjunto das massas populares (Volksmassen)
deve participar nessa experiência, de outro modo “o socialismo é decretado,
outorgado, por uma dezena de intelectuais reunidos em torno de um pano verde”.
Para os inevitáveis erros do processo, “o único sol curativo e purificador é a
própria revolução e o seu princípio renovador, a vida espiritual, a atividade e
a autorresponsabilidade [Selbstverantwortung] das massas que surgem com ela e
formam-se na mais ampla liberdade política”.[5]
Esse argumento é muito mais
importante do que o debate sobre a Assembleia Constituinte, no qual se
concentraram as objeções “leninistas” ao texto de 1918. Sem liberdades
democráticas é impossível a práxis revolucionária das massas, a autoeducação
popular pela experiência prática, a autoemancipação revolucionária dos
oprimidos e o próprio exercício do poder pela classe trabalhadora.
Georg Lukács, no seu importante
ensaio “Rosa Luxemburgo marxista”, de janeiro de 1921, mostra com grande
agudeza como, graças à unidade da teoria e da práxis (formulada “por Marx nas
suas Teses sobre Feuerbach”), Rosa Luxemburgo conseguiu superar o dilema da
impotência dos movimentos social-democratas, “o dilema do fatalismo das leis
puras e da ética das puras intenções”. O que significa essa unidade dialética?
Da mesma forma que o proletariado
como classe não pode conquistar e guardar a sua consciência de classe,
elevar-se ao nível da sua tarefa histórica (objetivamente dada) senão no
combate e na ação, o partido e o militante individual não podem apropriar-se
realmente da sua teoria senão ao passar essa unidade na sua práxis.[6]
Portanto, é surpreendente que,
apenas um ano mais tarde, em janeiro de 1922, Lukács redija o ensaio
“Comentários críticos sobre a crítica da Revolução Russa em Rosa Luxemburgo”,
que também acaba por figurar em “História e consciência de classe” e em que
rejeita na totalidade o conjunto dos comentários dissidentes da fundadora da
Liga Espártaco, afirmando, ainda por cima, que ela “representa a revolução
proletária nas formas estruturais das revoluções burguesas”[7] – uma acusação
pouco credível, como mostra Isabel Loureiro.[8] Como explicar a diferença, no
tom e no conteúdo, entre o ensaio de janeiro de 1921 e o de janeiro de 1922? Uma
conversão rápida ao leninismo ortodoxo? Possivelmente, mas também entra em jogo
a posição de Lukács em relação aos debates do comunismo alemão. Paul Levi,
principal dirigente do Partido Comunista Alemão, tinha se oposto à “Ação de
Março de 1921”,
uma tentativa fracassada de insurreição comunista na Alemanha, que teve o apoio
entusiasmado de Lukács, mas foi criticada por Lenine. Excluído do partido, Paul
Levi decide publicar em 1922 o manuscrito sobre a Revolução Russa, que Rosa
Luxemburgo lhe tinha confiado em 1918. A polêmica de Lukács em relação a esse
documento é também, indiretamente, um acerto de contas com Paul Levi.
Na verdade, o capítulo sobre
democracia desse folheto de Rosa Luxemburgo é um dos textos mais importantes do
marxismo, do comunismo, da teoria crítica e do pensamento revolucionário no
século XX. E difícil imaginar uma refundação do socialismo no século XXI que
não tenha em conta os argumentos desenvolvidos nessas páginas febris. Os
representantes mais inteligentes do leninismo e do trotskismo, como Ernest
Mandel, reconheciam que essa crítica de 1918 ao bolchevismo, no que diz
respeito à questão das liberdades democráticas, era, em última análise,
justificada. É óbvio que a democracia à qual se refere Rosa Luxemburgo é a
exercida pelos trabalhadores num processo revolucionário, e não a “democracia
de baixa intensidade” do parlamentarismo burguês, na qual as decisões
importantes são tomadas por banqueiros, empresários, militares e tecnocratas.
A zündende Funke, a centelha
incendiária de Rosa Luxemburgo, brilhou uma última vez em dezembro de 1918, na
conferência do congresso de fundação do Partido Comunista Alemão (Liga
Espártaco). Ainda encontramos nesse texto referências à “lei do desenvolvimento
objetivo e necessário da revolução socialista”, mas trata-se, na realidade, da
“amarga experiência” que várias forças do movimento operário têm de fazer antes
de encontrarem o caminho revolucionário. As últimas palavras dessa memorável
conferência são diretamente inspiradas pela perspectiva da práxis
autoemancipadora dos oprimidos:
“É só exercendo o poder que a
massa aprende a exercer o poder. Não há outra maneira de ensinar-lhe. Nós já
superamos, felizmente, o tempo em que se pretendia ensinar o socialismo ao
proletariado. Aparentemente, esse tempo ainda não passou para os marxistas da
escola de Kautsky. Educar as massas queria dizer: fazer-lhes discursos,
difundir panfletos e brochuras. Não, a escola socialista dos proletários não
necessita de nada disso. A sua educação faz-se quando eles passam à ação [zur
Tat greifen]”.
Aqui Rosa Luxemburgo refere-se a
uma famosa frase de Goethe: Am Anfang war die Tat! No começo de tudo não
se encontra o Verbo, mas a Ação! Nas palavras da revolucionária marxista: “No
começo era a Ação, tal é aqui nossa divisa; e a ação é quando os conselhos de
operários e de soldados se sentem chamados a tornarem-se a única força pública
do país e aprendem a sê-lo”.[9] Poucos dias depois, ela seria assassinada
pelos paramilitares (Freikorps) mobilizados pelo governo social-democrata
contra a insurreição dos operários espartaquistas de Berlim.
Rosa Luxemburgo não era
infalível, cometeu erros como qualquer ser humano e qualquer militante, e as
suas ideias não constituem um sistema teórico fechado, uma doutrina dogmática
para ser aplicada em qualquer lugar e em qualquer época. Mas, sem dúvida, o seu
pensamento é uma caixa de ferramentas preciosa para tentar desmontar a máquina
capitalista que nos tritura. Não é por acaso que ela se tornou nos últimos
anos, em particular na América Latina, uma das referências mais importantes do
debate acerca de um socialismo do século XXI, capaz de superar os impasses das
experiências, reivindicando o socialismo do século passado, seja a
social-democracia, seja o estalinismo. A sua oposição irreconciliável ao
capitalismo e ao imperialismo, a sua concepção de um socialismo revolucionário
e ao mesmo tempo democrático, baseado na práxis autoemancipadora dos
trabalhadores, na autoeducação pela experiência e pela ação das grandes massas
populares, é de uma impressionante atualidade, sobretudo no Brasil e na América
Latina.
Dizem os jornais que
recentemente, noventa anos após a sua morte, o seu corpo teria sido encontrado.
Haverá um novo enterro de Rosa Luxemburgo? Por mais que a enterrem uma e outra
vez, não conseguirão libertar-se de seu espectro. Ninguém conseguirá apagar a
centelha incendiária das suas ideias.
Artigos originalmente publicados
no número 15 da revista semestral Margem Esquerda – Ensaios Marxistas da
Boitempo, com o título, “A centelha se acende na ação: a filosofia da práxis no
pensamento de Rosa Luxemburgo”, e republicado a 5 de março de 2015 no Blog da Boitempo
Notas:
1 Ibidem, p. 115.
2 Friedrich Engels, Anti-Dühring (Boitempo, 2015).
3 Michael Löwy, “O significado metodológico da fórmula ‘socialismo ou
barbárie’”, em Método dialético e teoria política (3. ed., São Paulo, Paz e
Terra, 1985).
4 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 123.
5 Rosa Luxemburgo, “A Revolução Russa”, em Rosa, a vermelha, cit., p. 217-22,
corrigido pelo original alemão, Die Russische Revolution, cit., p. 73-6.
6 Georg Lukács, “Rosa Luxemburg, marxiste”, em Histoire et conscience de classe
(Paris, Minuit, 1960), p. 65. [Ed. bras.: História e consciência de classe, São
Paulo, Martins Fontes, 2003.]
7 Ibidem, p. 321.
8 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 85-8.
9 Rosa Luxemburgo, “Rede zum Programm der KPD (Spartakusbund)”, em Ausgewählten Reden
und Schriften (Berlim, Dietz Verlag, 1953), Band II, p. 687. A edição que estou
utilizando aqui tem uma história curiosa: trata-se de uma coletânea de ensaios
de Rosa Luxemburgo editada pelo “Marx-Engels-Lenin-Stalin Institut beim ZK der
SED”, com prefácio de Wilhelm Pieck, dirigente stalinista da República
Democrática Alemã, e introduções de Lenin e Stalin, com críticas aos “erros” da
autora. Comprei esse exemplar num sebo e descobri que trazia uma dedicatória em
inglês, datada de 1957, assinada por “Tamara e Isaac” – sem dúvida, Tamara e
Isaac Deutscher –, em que pediam desculpas por não terem encontrado uma edição
sem todas essas supérfluas “introduções”!
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