segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

"Basta uma declaração de Eduardo dos Santos para pôr muita gente na cadeia"


Não há imunidade contra a possibilidade de JES ser declarante, esclarece jurista. Mas, se o ex-Presidente de Angola falasse, muita gente ligada ao poder "cairia", desconfiam analistas. Tudo não passará de um embuste?

Pela primeira vez, José Eduardo dos Santos (JES) é citado num documento da Justiça em Angola. No despacho de sentença que determina o arresto dos bens da sua filha Isabel dos Santos, do genro Sindika Dokolo e do gestor dos seus negócios Mário Leite da Silva, o ex-Presidente de Angola é várias vezes apontado como aquele que favoreceu e autorizou transações imorais ou ilegais no contexto de parcerias público-privadas que terão beneficiado os visados.

Entretanto, José Eduardo dos Santos está isento de qualquer responsabilização judicial pois goza de imunidade, segundo a Lei sobre o Estatuto dos Antigos Presidentes da República de Angola aprovada em 2017.

"Não há imunidade contra a possibilidade dele ser declarante"

Mas isso não lhe tira a obrigação de responder como declarante se for chamado a fazê-lo. De acordo com o jurista Albano Pedro, "legalmente, ele não está impedido. Nada diz que o ex-Presidente José Eduardo dos Santos, apesar de ser irreponsável pelos atos que praticou durante a governação, não possa responder em processo. Não há imunidade contra a possibilidade dele ser declarante".

"Caso seja necessário, poderá responder e, claro, o tribunal é soberano. As ordens do tribunal são de cumprimento obrigatório e o não cumprimento acarreta consequências de natureza penal, desobediência, que se podem traduzir em crime. Então, ele está legalmente obrigado a prestar declarações caso seja chamado a fazê-lo", esclarece ainda o jurista.

E Albano Pedro, que vê com desconfiança esta celeuma que agita Angola, esboça vários cenários envolvendo possíveis declarações do ex-estadista: "Não o fazendo, confirmará a teatralização; fazendo, tendenciosamente também confirmará a teatralização. [Mas] fazendo, desmascarando o sistema e a forma como o combate à corrupção está a ser feito, aí sim, terá hipótese de desfazer esse teatro."

Aperto do cerco a José Eduardo dos Santos?

Como quem come pelas beiradas, a Justiça angolana começou pelos três filhos mais influentes do antigo chefe de Estado, mais ou menos por ordem de importância, e, aos poucos, chega, como quem não quer nada, ao núcleo, a José Eduardo dos Santos.

Qual é a intenção por detrás desta exposição do ex-Presidente em documentos da Justiça? O sociólogo Paulo Inglês opina: "Acho que a ideia é legitimar um pouco esta ideia de combate à corrupção do Presidente João Lourenço, no sentido de que, se o próprio ex-Presidente José Eduardo dos Santos é exposto, os seus antigos colaboradores ainda [o são] mais."

Concluindo, o sociólogo acredita que, "no fundo, é uma mensagem que ele envia a antigos colaboradores que andam por aí, que se consideram intocáveis. Agora, não sei se o Presidente pode ir mais longe. Provavelmente não."

E se José Eduardo dos Santos falasse?

Inglês não é único que acha que a citação do nome de José Eduardo dos Santos é só "para inglês ver". O jurista Albano Pedro também não tem fé que uma ação mais contundente contra o ex-Presidente angolano se concretize, porque muitas "cabeças iriam rolar" se decidisse abrir a boca.

Albano Pedro entende que as ações em volta da família dos Santos não passam de atos de uma peça de teatro, "porque se o pai acaba aparecendo nesses processos, todo esse processo de combate à corrupção desmorona. Basta uma declaração de José Eduardo dos Santos para arruinar todo esse processo e pôr muita gente na cadeia, inclusive gente que hoje está no poder. Claro que essa teatralização tem de criar algumas vítimas", afirma.

"O que se pretende é enganar as pessoas"

E, quando a guerra entre o clã dos Santos e o Presidente João Lourenço atinge o auge, José Eduardo dos Santos decidiu sair do silêncio sepulcral este fim de semana, para, a partir do exterior, mandar uma mensagem aos angolanos de fim de ano. Nela deseja também sucessos ao atual Presidente e ao seu partido, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

À parte as leituras que se podem fazer das relações entre os dois, há uma imagem que é percebida por certos setores, que os leva a vaticinar que a Justiça não será cega para o clã dos Santos. O jurista Pedro Kaparakata afirma que "não há divórcio [entre José Eduardo dos Santos e João Lourenço]. É mais ou menos a mesma situação que se passa no Irão, entre o 'ayatolah' e o Presidente. Portanto, temos o ex-Presidente JES como a figura moral neste preciso momento, é o nosso 'ayatolah', e temos João Lourenço como o tenente do 'ayatolah'."

Cético, o jurista afirma que "o que se pretende é enganar as pessoas. Nem vale a pena pensar que a Procuradoria-Geral da República vai algum dia responsabilziar JES no contexto atual. Isso é impensável."

Nádia Issufo | Deutsche Welle

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