sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

A nova fisionomia da Irlanda e a sua crescente consciência de classe


PCI [*]

Os resultados das eleições gerais para o 33º Dáil [câmara baixa do parlamento irlandês] confirmaram as crescentes frustrações dentro da classe trabalhadora e a necessidade de políticas sociais e económicas alternativas. Reflectem um crescimento importante na consciência de classe, que precisa ser nutrida e desenvolvida.

O declínio dos dois principais partidos do establishment, Fianna Fáil e Fine Gael, que dominam a vida política deste estado há mais de oito décadas, é de importância sísmica. Eles foram derrotados pela apresentação de uma plataforma económica e social alternativa de esquerda.

Este resultado eleitoral cresceu com a rejeição da austeridade imposta pela UE e com as políticas que dão prioridade às necessidades do capital, dos ricos e poderosos, às custas dos trabalhadores, políticas promovidas por todos os partidos do establishment, incluindo o Partido Trabalhista, e os media do establishment. Segue-se às lutas de massa pela água, habitação, saúde, revogação da 8ª [emenda da Constituição] [1] e igualdade do casamento.

A eleição apenas confirmou que habitação, saúde, pensões e assistência infantil eram questões centrais que tiveram um grande impacto na classe trabalhadora.

As décadas de austeridade UE-Troika afectaram pesadamente a vida dos trabalhadores, os cortes selvagens na saúde, na habitação e nos gastos sociais em geral, com as condições de trabalho cada vez mais difíceis e árduas.

Os trabalhadores deram um golpe político significativo nos partidos do establishment e declararam claramente que desejam uma transformação real, que exigem mudanças sociais e económicas que os beneficiem, às suas famílias e comunidades. Eles estão a exigir a implementação de políticas económicas mais profundas que transformam as reais condições materiais que experimentam diariamente e não astúcias de relações públicas.

A classe trabalhadora está irada com precariedade das suas vidas e com a disseminação de práticas precárias de emprego por parte de empregadores, grandes e pequenos, de ficar numa fila para receber atenção médica urgente ou deitar-se em macas nos corredores dos hospitais, enquanto aqueles que podem pagar a saúde privada saltam a fila.



Que o Sinn Féin tenha conquistado temporariamente a maioria dos votos populares e empurrado os dois principais partidos do establishment para o segundo e o terceiro lugar é um passo importante em frente e deve ser saudado por todas as forças de esquerda e progressistas. Mas seu papel no executivo do Norte e a imposição de políticas sociais e económicas promovidas pelo estado britânico, as quais resultaram em grandes dificuldades para a classe trabalhadora no norte da Irlanda, tão severas quanto as impostas pelos partidos do establishment no Estado do sul, não pressagia nada de bom para qualquer afastamento radical do actual sistema político e moralmente falido.

Nas últimas oito décadas, os dois principais partidos do establishment arrecadaram mais de 80% do apoio eleitoral; agora eles mal conseguem reunir 40% entre si. Claramente, a classe trabalhadora usou a eleição para maximizar a voz esquerda no Dáil, o que é outra indicação do crescimento da consciência de classe.

As formações políticas do Solidarity e do People Before Profit devem o retorno dos seus deputados em grande parte ao enorme excedente e à transferência de votos do Sinn Féin. O sectarismo político e o oportunismo desses grupos provaram ser sua ruína e são um factor significativo no declínio dos seus votos.

Outro factor que está a afastar as pessoas dos partidos do establishment e a pedir uma resposta séria de um governo de esquerda é a crescente conscientização da crise ambiental e o conhecimento de que o governo nunca contestaria poderosos interesses económicos e políticos entrincheirados. Isto resultou em maior apoio ao Partido Verde.

O Sinn Féin conseguiu capturar essa cólera apresentando-se como o partido que pode proporcionar melhorias reais e significativas que o nosso povo precisa tão desesperadamente, em áreas como habitação, saúde e direitos dos trabalhadores – apesar do papel dos media do establishment e dos seus ataques concentrados a quaisquer possíveis políticas económicas alternativas. Os partidos políticos e os mass media continuam suas tentativas de banalizar ou demonizar as aspirações democráticas nacionais, incluindo a reunificação da Irlanda.

O resultado da eleição tem potencial para trazer para o topo da agenda política a questão central de quem tem o controle do poder político e económico na Irlanda.

Nos próximos meses, membros e apoiantes do Sinn Féin e da classe trabalhadora em geral testemunharão a estratégia do establishment para incorporar o Sinn Féin ao sistema, responsabilizá-lo e agir no "interesse nacional" e cumprir seu dever para com aqueles que têm riqueza e poder económico.

Vimos o que acontece com os partidos de esquerda e radicais quando eles entram em governos de coligação com partidos do establishment. Isso só pode revitalizar os partidos do establishment e desmoralizar os trabalhadores, semeando confusão e derrotismo.

O Fianna Fáil e o Fine Gael certamente tentarão salvar seu poder e influência política declinantes através de alguma forma de coligação. Cabe à esquerda dentro do Dáil, e do Sinn Féin como seu maior componente, mobilizar a classe trabalhadora para assegurar que a alternativa de um governo de esquerda progressista tão exigido pela classe trabalhadora seja garantida.

Nas próximas semanas, testemunharemos as negociações de bastidores e os acordos ocultos serem articulados para ver qual combinação de partes constituirá o próximo governo. O oportunismo do Partido Trabalhista, dos social-democratas e do Partido Verde tornam-nos muito propensos a constituir ou apoiar um governo com o Fianna Fáil.

Se bem que os comunistas irlandeses saúdem estes desenvolvimentos progressistas, estamos atentos à história das lutas de classe e da luta pela independência e soberania nacional, de quão facilmente as reivindicações e a energia dos trabalhadores têm sido sufocadas no passado, promovendo a fé cega em que só o sistema eleitoral pode proporcionar mudanças reais ou duradouras.

Os trabalhadores não podem se dar ao luxo de sentar e permitir que o nosso futuro seja decidido por acordos nos bastidores. Sabemos da luta recente como a energia e as reivindicações em relação à água foram marginalizadas e enterradas nos corredores escuros do Dáil. O povo não foi derrotado nas ruas, mas perdeu autoridade para aquelas instituições que controlam nossas vidas, instituições sobre as quais temos muito pouco controle.

Qualquer que seja o controle limitado que os trabalhadores irlandeses tenham sobre Dáil Éireann, não têm nenhum sobre as instituições da União Europeia. Qualquer governo progressista enfrentará oposição destas poderosas forças económicas e políticas, as quais só podem ser enfrentadas com uma mobilização popular.

As novas condições criadas pelo resultado eleitoral devem ser usadas como uma oportunidade para a renovação das lutas populares em toda um conjunto de questões. Este é claramente o momento certo para lutas sindicais e de classe mais vigorosas e militantes.

Todas as forças de esquerda e progressistas precisam mobilizar-se para assegurar que as prometidas mudanças sociais e económicas se materializem; e a única garantia de que isto acontecerá é a própria luta do povo. O desafio agora é se as aspirações e as reivindicações por mudanças reais podem ser consolidadas em mudanças e avanços estruturais a longo prazo.

Esta eleição mostrou claramente que nosso povo quer uma transformação democrática da nossa sociedade, uma sociedade na qual o povo seja soberano, e não aquela em que o bem maior é sacrificado para atender às necessidades e interesses da propriedade privada e dos interesses pessoais. O povo claramente quer uma mudança democrática que transforme as estruturas de poder de controlo a todos os níveis, uma transformação democrática que permita a participação e contribuição dos trabalhadores em todas as decisões, a todos os níveis da vida económica e política.

Sabemos que a adopção das necessárias mudanças sociais, económicas e políticas requer uma classe trabalhadora mobilizada e a construção e o fortalecimento de sua capacidade organizacional e da sua consciência ideológica de classe. Nossa classe precisa desenvolver a necessária clareza política e fortalecer-se para desafiar e repelir os interesses imperialistas representados pela União Europeia, Estados Unidos e Grã-Bretanha e seus aliados na classe subserviente capitalista irlandesa, se a classe trabalhadora quiser avançar e garantir seus próprios interesses.

No período imediato, os trabalhadores precisam apresentar as suas reivindicações, tais como:

• A revogação de todas as leis anti-trabalhadores, incluindo a Lei de Relações Industriais (1990)
• Garantias legislativas e constitucionais para dar aos trabalhadores o direito à negociação colectiva
• Uma gama completa e abrangente de políticas para proteger e promover os direitos dos trabalhadores
• Disposição constitucional para a propriedade do povo sobre a água e todos os recursos naturais
• Adopção de uma estratégia habitacional que altere as regras de propriedade, incluindo a transformação do stock de imóveis vazios em stock de propriedade do Estado
• Investimento maciço num programa universal de habitação pública
• Acabar com o sistema de saúde em dois níveis, pela proibição ao sector privado de saúde de usar o sistema público de saúde
• Fornecimento de um sistema de transporte público gratuito e ampliado por todo o país
• Repúdio da odiosa dívida bancária da UE imposta sobre o nosso povo
• Adopção de uma estratégia progressista para promover a unidade nacional
• Acabar com a utilização do aeroporto de Shannon como um centro de guerra dos EUA e da NATO
• Consagrar a neutralidade na Constituição da Irlanda
• Retirada do PESCO e de todos os compromissos militares com a UE
• Construção de uma estratégia económica alternativa para romper o poder das corporações transnacionais.

12/Fevereiro/2020

[1] Emenda com implicações para a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

Ver também:

Sem comentários:

Mais lidas da semana