Em crónica de um 13 de maio,
escritor revela modo como se movia entre os burgueses, para descrever sua
podridão e hipocrisia. Mais de cem anos depois, fala de âncora da Globo revela
como elite permanece incapaz de se livrar dos cacoetes discriminatórios
Fabrício César de Oliveira, no Observatório da Imprensa | Outras Palavras
A técnica jornalística, a atitude
e a escrita de Machado de Assis são reconhecidas por todos da área, mas poucos
sabem de sua “estratégia de caramujo” enquanto homem negro em uma sociedade sem
democracia racial. O trabalho de tipógrafo, revisor, crítico teatral e cronista
nos jornais do século XIX deram a Joaquim Maria Machado de Assis segurança e
tempo para exercer o que mais gostava: escrever com criticidade. No entanto,
tudo isso não apaga sua origem negra (pai e avós paternos), sua negritude e sua
luta antirracismo. Sendo o modo como escreve, o lugar de onde fotografa com
palavras a realidade (realismo machadiano) e a escolha estratégica de vida as
fontes de toda sua genialidade. Tal genialidade não é a que devemos cobrar dos
nossos jornalistas atuais, porém não podemos tolerar deles, ainda mais de
homens brancos, atitudes racistas como a do âncora do Bom Dia São Paulo,
Rodrigo Bocardi, na última sexta feira (07).
A “estratégia de caramujo” –
adotada e declarada, aos leitores atentos, em uma crônica da semana de 13 de
maio de 1893 (cinco anos depois da abolição da escravatura) – mostra um
escritor negro que escolhe andar pelas frestas, pelas ambiguidades das relações
sociais da burguesia brasileira; e não mudou muito o modo como o racismo no
Brasil é velado, mas existente. Machado de Assis escolhe ser “o mais encolhido
dos caramujos” (como retratam os críticos Eduardo de Assis Duarte e Lilia Moritz
Schwarcz, em seus respectivos estudos), pois, em sociedades pré-abolição e
pós-abolição vividas pelo “bruxo do Cosme Velho”, a estratégia de escrever
sobre a podridão burguesa por dentro da própria burguesia é marca de um génio
que criou representações como Brás Cubas, Bentinho, Capitu, o agregado José
Dias, Rubião, Quincas Borba, Cândido Neves, Tia Mônica, os Pádua, entre outros
tantos personagens de uma época mergulhada em uma ideologia de consumo burguês,
eurocêntrico e branco.
Machado denunciava o sistema de
dentro. A “estratégia de caramujo” de Machado é, portanto, uma singularidade de
um génio produzida por nossas maiores chagas: a escravidão e o racismo, velado
ou não. Contudo, Joaquim Maria não se dobraria ao ambiente, mas sim criaria uma
casca, um casulo protetor, como o de um caramujo, de onde poderia mover-se
lentamente, por letras, por palavras, poderia fazer suas críticas, deixando um
rastro no chão, quase imperceptível para quem tinha olhos distraídos; mas
bastaria olhar mais de fora, por uma espécie de exotopia, para ver claramente a
estratégia de um “bruxo caramujo” e seu rastro, como podemos agora ver, ler e
nos deliciar. Logo, a “estratégia de caramujo” declarada pelo autor foi seu
modo de denunciar o racismo em suas entranhas mais perversas, inconscientes e
veladas. Racismo tão agudo e estrutural que tentou embranquecê-lo em fotos em
campanhas publicitárias e em livros, ao longo das décadas. A “estratégia de
caramujo” é, portanto, mais uma forma de denúncia machadiana à podridão
burguesa e, principalmente, ao racismo.
Não é preciso ir muito longe no
tempo e no espaço para termos outro exemplo de racismo estrutural. Rodrigo
Bocardi, jornalista da Globo, ao se justificar no Twitter, na sexta-feira (07),
dizendo que alguém com a origem dele não pode ser racista, dá abertura para que
o próprio autoelogio seja uma atitude racista: “Alguém como eu não pode ter
preconceito. Eu não tenho. Nunca tive. Nunca terei”.
Mas o que houve para o
apresentador ir até o Twitter? Na sexta, em reportagem sobre mobilidade urbana,
um dos maiores problemas da cidade de São Paulo, um jovem negro com camiseta
esportiva de um clube de elite foi entrevistado pelo repórter de rua da Globo.
Na tentativa de fazer um diálogo amistoso entre o estúdio e o entrevistado, o
âncora fez uma indagação fora do contexto da reportagem, perguntando se ele era
pegador de bolinhas no Clube Pinheiros. Uma pergunta impregnada de senso comum
e estereotipagem. A resposta do jovem Leonel, negro entrevistado, foi um misto
de desapontamento e assertividade no olhar e na voz: “Não, não, não. Sou atleta
do Pinheiros. Jogo polo aquático”. Depois disso e da desconstrução do
estereótipo contido na pergunta do âncora, veio uma enxurrada de críticas ao
apresentador, ao vivo e pelas mensagens das redes interativas. A saída
encontrada pelo jornalista, branco, foi dada no Twitter. Muitos veem
preconceito na pergunta de Bocardi; outros, nem tanto. Mas o que não se pode
negar é a existência do racismo, nem se pode dizer de forma categórica,
dogmática e axiomática que “Nunca tive. Nunca terei (atitude preconceituosa)”,
pois afirmar de tal forma já é um ato de falta de um questionamento mais
profundo, histórico e honesto.
Por outro lado: as saídas, a
inclusão e o jornalismo preto
Não vivemos mais nos tempos
machadianos: o jornalismo mudou, pois a sociedade está em transformação. As
denúncias que outrora eram veladas, em invólucros de escritor caramujo, agora
estão mais evidentes, pois é assim que revelamos os sintomas e podemos
tratá-los coletivamente. Não escondendo a ferida, que poderá virar tumor, mas
pedindo ajuda ou mesmo apontando o dedo para ela. Está sendo assim que o
jornalismo dessa segunda década do século XXI no Brasil vem se manifestando:
pela voz de quem tem sua singularidade e existência colocadas em xeque por
questões patológicas e pseudocientíficas ainda do século XIX. Está sendo assim
que o jornalismo preto vem cada vez mais aparecendo (e deve), seja no Alma
Preta Jornalismo e no Letra Preta, da
revista piauí, ou por influências fortes de grupos de estudos nas
universidades, como o Geledés,
organizado e coordenado por mulheres negras, como a filósofa e doutora em
educação Sueli Carneiro, ou por forte atuação de grupos, hubs e startups como o
Black Money, fundado em 2017, que tem na liderança uma brasileira negra,
chamada Nina Silva, eleita pela revista Forbes uma das mulheres mais
poderosas do Brasil e que ficou entre as 100 figuras afrodescendentes mais
influentes com menos de 40 anos no ranking da Most Influential People of Africa
Descent, instituição ligada à Organização das Nações Unidas (ONU). O Black
Money prioriza o consumo entre os negros fazendo circular capital entre eles; a
ideia é dar autonomia à comunidade negra na era digital e fortalecer o
ecossistema de negócios geridos por essa população. É esta, portanto, a ideia
mais objetiva, segundo alguns articuladores, de enfrentamento ao racismo
estrutural no Brasil, pois ataca a raiz do problema: o capital burguês, que aos
poucos vai ganhando cor, melanina e aspectos de democracia, realmente liberal e
racial. Une, portanto, a luta contra o racismo a uma luta de inclusão ao sistema.
Machado de Assis não errou em
nada. Não podemos acusá-lo, anacronicamente, de não ter feito jornalismo preto
nem abolicionista; por isso, não errou. Fez de seu modo uma denúncia
antirracista e profundamente antissistémica. Exímio que era, mostrou-nos, e
mostra sempre, quais os problemas da alma burguesa, quais seus defeitos, sua
podridão de comportamento, suas patologias e jogos sociais. Mostrou-nos como um
caramujo-escritor, deixando o rastro na terra, deixando o rastro em palavras e
crítica, fez seu sinal de alertar sobre a sociedade que se apoia em
pseudociências (como o racismo). Genial, Machado ironizou seu tempo e os modos
de vida que o circundavam. Em outra perspectiva, o Black Money nos mostra como
usar de estratégias do sistema os modos de modificar o próprio sistema pela
inclusão do negro. É uma saída. Uma outra saída. Antirracista, mas não
antissistémica.
Mais de um século depois, não há
como ser jornalista, escritor, brasileiro, da mesma forma, sem denunciar e sem
ler os rastros que o “bruxo do Cosme Velho” tanto fez questão que nós lêssemos
com o passar do tempo. E nem há saída à sociedade sem jornalismo preto e a
força de movimentos como o Black Money. Muito menos há como seguir fazendo
jornalismo, sendo homem branco, sem sair do seu lugar de privilégio ou sequer
parar para se desculpar com os que ofendeu, como ainda não fez Rodrigo Bocardi
na TV, embora já tenha pedido desculpas para o público seleto e mais crítico do
Twitter. É hora da escuta! Foi-se o tempo da “estratégia de caramujo”, mas
sempre será tempo de Machado de Assis!
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