quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O CÍRCULO 4F -- Martinho Júnior



Liberdade?

Conhecemos seu ponto de partida, que é um imprescindível e inequívoco ponto de ruptura e um primeiro passo no degrau em busca de vida…

Mas depois, de utopia em utopia, entremeada com tanta coisa que se vai conseguindo a pulso realizar, subindo a escada de degrau em degrau, há uma longa ascendência que nos transporta hoje à necessidade de paz, da sobrevivência das espécies, de respeito pelo planeta, à ampla necessidade de vida por que afinal também a espécie humana está em risco de desaparecer, à mercê da irracionalidade do próprio homem!...


01- … E então aconteceu aquele 4 de Fevereiro, em 1961, como um grito e uma telúrica chispa colectiva dum povo secularmente vilipendiado, oprimido, reprimido, mas ávido, por isso mesmo ávido, de amor, de solidariedade, de dignidade, de paz e de vida!

Naquele 4 de Fevereiro, até um imenso muro feito da argamassa do silêncio e da indiferença havia que romper, precisamente com o rebentar das grilhetas… e não havendo armas de fogo, tal a imensa miséria e marginalidade em que se encontravam os ousados, foi mesmo com os instrumentos de trabalho próprios da escravidão e do contrato, próprios dum indigenato que nem como número contava, que os homens se ergueram e saltaram resolutos para o primeiro movimento ascendente, autodeterminados em busca de vida e de liberdade!

Se um dia foi assim no Haiti, quando rebentou a poderosa revolução dos escravos que até Napoleão venceu no outro lado do Atlântico remoto, por que razão não haveria de ser assim, ainda que mais de século e meio depois, se a condição que a opressão e a repressão impunham, se o poder que instrumentalizava essa opressão e essa repressão, era invariavelmente o mesmo?

Naquele tempo, apesar do analfabetismo crónico, apesar da legítima revolta, apesar dos estômagos vazios, dum vazio que ia da alma às entranhas, alguns souberam identificar o inimigo que havia que vencer, olhos nos olhos, com a temperança dos justos: os que integravam e compunham os instrumentos do poder colonial opressor e repressor!

… Por isso havia que assaltar ali, nos covis onde agrilhoavam os sonhos alados, ou cair sobre os energúmenos, nos movimentos intestinos de seus labirintos quotidianos, numa esquina próxima onde a surpresa fosse ardil…

Aquele 4 de Fevereiro não foi contra um povo irmão, ainda que o poder da ocasião quisesse manipular no sentido desse choque, a obsessão do “choque entre civilizações” que queriam tornar em mais uma artificiosa manipulação… outros teriam essa opção sangrenta em nome da liberdade que afinal iludiram, iludindo-se!

A partir dali a luta armada de libertação nacional contra o colonial-fascismo definiu-se e definiu seus contornos: mesmo de armas na mão, a conjuntura em busca de autodeterminação e independência iluminava o caminho essencialmente político, por que após a hecatombe da IIª Guerra Mundial, a humanidade compreendia que chegava a hora da maioridade juvenil dos povos, de todos os povos do mundo que ainda não haviam alcançado sequer a utopia mínima, do primeiro degrau da ascendente escada da liberdade!

Agostinho Neto compreendeu-o com seu génio vanguardista, a sua sagrada esperança, a sua renúncia impossível e a sua vida foi uma dádiva para que se subisse essa penosa escada, vencendo colonialismo, “apartheid” e tantas das suas sequelas, à frente dum povo que para tal generalizou sua luta e levou-a avante em comunhão com outros povos, nos imensos espaços da África Central e Austral!

Sendo aquele 4 de Fevereiro um momento tático que foi sangrentamente sufocado, a utopia era realizável de Argel ao Cabo e também naquela praça-forte que o internacional fascismo desenhou: o quadrilátero do sudoeste africano que compunha Angola!

Do outro lado do Atlântico, uma revolução e um povo revolucionário haveria de se juntar à saga que então se iniciara, de Argel ao Cabo e honraria os escravos caídos no imenso campo de tão legítima luta, como aquela ignota Carlota de Cuba, nas vésperas da revolução no Haiti!

Vencer colonialismo e “apartheid” era uma utopia em 1961, mas com os olhos das novas gerações, a utopia tornou-se substantiva e a liberdade tornou-se emocionalmente repartida entre os povos irmãos de toda a África Central e Austral, a liberdade tornou-se palpável, está aí mesmo à mão, mesmo que haja tanta diversão e engano que nos chega de fora com a cumplicidade duns quantos de dentro, como as lantejoulas dum pungente negócio tão antigo que cheira a mofo… acabadinho de chegar através dos mares e dos céus deste século XXI…



2- … E então aconteceu aquele 4 de Fevereiro de 1992, quase duzentos anos após o romper das grilhetas coloniais nas Américas e honrando os que içaram, com a derrota colonial, suas bandeiras de liberdade!...

… Por que a liberdade não se cinge, nem se reduz a uma bandeira tornada pelo poder do império num símbolo fútil e fértil de enganos, subvertendo os mais suculentos sonhos ainda e sempre ávidos de vida, de paz e de liberdade, os degraus da ascendência em busca de vida no colectivo, foram-se sucedendo!

A longa escada das Américas há que subi-la a pulso e com os pulmões a rebentar numa atmosfera rarefeita, por vezes azotada, ou mesmo sulfúrica, uma escada tão íngreme como os vértebras colossais dos Andes… chegar às alturas de Machu Picchu, reflectir sobre a velha cidade abandonada e em ruínas, num ambiente de silêncio e verdes vertigens…

… Ainda que vencendo o colonialismo hispânico, a liberdade não se reduziu a subir um mero degrau!…

Nas Américas, nas suas veias abertas, há que contar como em nenhum outro continente, com o poderoso expansionismo que se abate sobre os povos do sul, o expansionismo imperador que avassala desde o norte e mobiliza correntes de sonhos em busca de cada vez mais desvirtuados e subvertidos enganos… e artificiosos brilhos que encobrem, cada vez mais, agónicos circuitos vazios que alucinadamente querem tornar perpétuos!

No corpo das Américas há que oxigenar o sangue das artérias quando as veias continuam abertas e uma redobrada utopia para além do içar das bandeiras, esvoaça desde os sonhos de Marti, de Sandino, de Bolivar, numa imenso espaço tornado numa incontornável e decisiva Pátria Grande!

Outra prova de amor fecundo, outra prova de dignidade há que dar às bandeiras da liberdade, porque a liberdade é uma cultura que se deve transmitir de geração em geração, num concerto de desafios tornados vida e paz, tornados respeito para com a Mãe Terra, conforme ensinavam os antepassados desaparecidos nas alturas de Machu Picchu e Marti e Sandino e Bolivar e os Comandantes vitais do século XX e XXI!...

“Por ora”, aquele momento tático ávido de vida, de futuro, de dignidade, de solidariedade e de paz, a 4 de Fevereiro de 1992, foi também vencido, mas ele deu azo à energia, à força predestinada para a ascensão, tal como aquele outro 4 de Fevereiro de 1961!

Numa prova de maturidade em prol das bandeiras: não basta chegar à emancipação da juventude, há que continuar as provas de vida maturidade adentro e tornar essas provas de vida na equação duma resistência equilibrada entre povo e armas, na continuada busca de liberdade, vencendo outra e outra vez os Andes, degrau a degrau!

… E então emerge Hugo Chavez, numa vanguarda feita duma harmonia resistente, duma argamassa cívica e militar, participativa e protagonista, por que nas Américas os sonhos correm o risco de se tornar em quimeras à mercê do poderoso Condor, como ocorreu num dia pelas amargas ruas de Santiago ensanguentado!… 

… Em Santiago identificou-se a injecção dum novo estigma que abria ainda mais as veias das Américas, com as transversais facas do neoliberalismo cortando o tecido dos povos, facas manejadas por mãos reitoras de novos modelos de opressão e repressão, facas que rompiam até com os tecidos ambientais dum planeta cada vez mais exangue, carente de respeito, de dedicação e de amor!


3- O círculo 4F completa-se e fecha-se nas duas margens do Atlântico Sul, por que a utopia da dignidade, da solidariedade, da paz, do amor, das bandeiras semeadas com o heroísmo dos povos, a da liberdade tão ansiada pelos povos, corre no oxigenado sangue das Américas e de África, apesar de todas as intemperanças e subversões semeadas desde o norte pelo mais renitente poder imperial que alguma vez recaiu sobre toda a humanidade!

É um Círculo 4F que emerge intemporal, transatlântico, imprescindível, por que os impérios, os decadentes impérios, um dia quiseram condenar “eternamente” os escravos à saga dos grilhões em paragens remotas onde se escondiam e se escondem, em caixas fechadas a cadeado todas as servidões, como se fazia aliás com os velhos baús de riquezas espoliadas pelos corsários e piratas… baús enterrados sordidamente nas areias de ilhas desconhecidas, perdidas entre brumas plasmadas em irrespiráveis ambientes de dor, de depredação e de sangue!

O Círculo 4F transatlântico toca ainda como um imenso sino, a rebate, por que afinal também a espécie humana sente-o, sobretudo aquela parte mais vilipendiada, oprimida, subjugada e deliberadamente saqueada!

A humanidade está em risco de desaparecer à mercê da irracionalidade do próprio homem tornado poder sobre os outros homens, daquele homem egoisticamente mesquinho que cultiva a avidez dum poder que se tornou contra toda a humanidade e até, irremediavelmente, contra o âmago do seu próprio ser!...

O transatlântico Círculo 4F, vencido colonialismo, vencido o “apartheid” e vencidas tantas das suas sequelas, corre no sangue oxigenado das artérias das Américas e de África, por que as veias abertas pelo neoliberalismo desde os anos 70 do século XX, trazem o sinal duma avassaladora servidão e por isso é preciso, com os homens que vão subindo a penosa escada da liberdade mesmo com os pulmões a rebentar, alcançar os cumes enevoados das utopias, nos Andes como no Quilimanjaro, pois as utopias estão aí mesmo à mão, feitas de democracia, participativa, protagonismo social, digna e solidária, nos horizontes que nos absorvem na esponja medular imensa de que é feito este século XXI!...

Martinho Júnior -- Luanda, 4 de fevereiro de2020

Imagens:
Quartel da Montanha, Mausoléu de Agostinho Neto, Sarcófago do Comandante Hugo Chavez e Sarcófago de Agostinho Neto; honra e glória aos alicerces do transatlântico Círculo 4F!

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