Martinho Júnior, Luanda
Liberdade?
Conhecemos seu ponto de partida,
que é um imprescindível e inequívoco ponto de ruptura e um primeiro passo no
degrau em busca de vida…
Mas depois, de utopia em utopia,
entremeada com tanta coisa que se vai conseguindo a pulso realizar, subindo a
escada de degrau em degrau, há uma longa ascendência que nos transporta hoje à
necessidade de paz, da sobrevivência das espécies, de respeito pelo planeta, à
ampla necessidade de vida por que afinal também a espécie humana está em risco
de desaparecer, à mercê da irracionalidade do próprio homem!...
01- … E então aconteceu aquele 4
de Fevereiro, em 1961, como um grito e uma telúrica chispa colectiva dum povo
secularmente vilipendiado, oprimido, reprimido, mas ávido, por isso mesmo
ávido, de amor, de solidariedade, de dignidade, de paz e de vida!
Naquele 4 de Fevereiro, até um
imenso muro feito da argamassa do silêncio e da indiferença havia que romper,
precisamente com o rebentar das grilhetas… e não havendo armas de fogo, tal a
imensa miséria e marginalidade em que se encontravam os ousados, foi mesmo com
os instrumentos de trabalho próprios da escravidão e do contrato, próprios dum
indigenato que nem como número contava, que os homens se ergueram e saltaram
resolutos para o primeiro movimento ascendente, autodeterminados em busca de
vida e de liberdade!
Se um dia foi assim no Haiti,
quando rebentou a poderosa revolução dos escravos que até Napoleão venceu no
outro lado do Atlântico remoto, por que razão não haveria de ser assim, ainda
que mais de século e meio depois, se a condição que a opressão e a repressão
impunham, se o poder que instrumentalizava essa opressão e essa repressão, era
invariavelmente o mesmo?
Naquele tempo, apesar do
analfabetismo crónico, apesar da legítima revolta, apesar dos estômagos vazios,
dum vazio que ia da alma às entranhas, alguns souberam identificar o inimigo
que havia que vencer, olhos nos olhos, com a temperança dos justos: os que
integravam e compunham os instrumentos do poder colonial opressor e repressor!
… Por isso havia que assaltar
ali, nos covis onde agrilhoavam os sonhos alados, ou cair sobre os energúmenos,
nos movimentos intestinos de seus labirintos quotidianos, numa esquina próxima
onde a surpresa fosse ardil…
Aquele 4 de Fevereiro não foi
contra um povo irmão, ainda que o poder da ocasião quisesse manipular no
sentido desse choque, a obsessão do “choque entre civilizações” que
queriam tornar em mais uma artificiosa manipulação… outros teriam essa opção
sangrenta em nome da liberdade que afinal iludiram, iludindo-se!
A partir dali a luta armada de
libertação nacional contra o colonial-fascismo definiu-se e definiu seus
contornos: mesmo de armas na mão, a conjuntura em busca de autodeterminação e
independência iluminava o caminho essencialmente político, por que após a
hecatombe da IIª Guerra Mundial, a humanidade compreendia que chegava a hora da
maioridade juvenil dos povos, de todos os povos do mundo que ainda não haviam
alcançado sequer a utopia mínima, do primeiro degrau da ascendente escada da
liberdade!
Agostinho Neto compreendeu-o com
seu génio vanguardista, a sua sagrada esperança, a sua renúncia impossível e a
sua vida foi uma dádiva para que se subisse essa penosa escada, vencendo
colonialismo, “apartheid” e tantas das suas sequelas, à frente dum
povo que para tal generalizou sua luta e levou-a avante em comunhão com outros
povos, nos imensos espaços da África Central e Austral!
Sendo aquele 4 de Fevereiro um
momento tático que foi sangrentamente sufocado, a utopia era realizável de
Argel ao Cabo e também naquela praça-forte que o internacional fascismo
desenhou: o quadrilátero do sudoeste africano que compunha Angola!
Do outro lado do Atlântico, uma
revolução e um povo revolucionário haveria de se juntar à saga que então se
iniciara, de Argel ao Cabo e honraria os escravos caídos no imenso campo de tão
legítima luta, como aquela ignota Carlota de Cuba, nas vésperas da revolução no
Haiti!
Vencer colonialismo e “apartheid” era
uma utopia em 1961, mas com os olhos das novas gerações, a utopia tornou-se
substantiva e a liberdade tornou-se emocionalmente repartida entre os povos
irmãos de toda a África Central e Austral, a liberdade tornou-se palpável, está
aí mesmo à mão, mesmo que haja tanta diversão e engano que nos chega de fora
com a cumplicidade duns quantos de dentro, como as lantejoulas dum pungente
negócio tão antigo que cheira a mofo… acabadinho de chegar através dos mares e
dos céus deste século XXI…
2- … E então aconteceu aquele 4
de Fevereiro de 1992, quase duzentos anos após o romper das grilhetas coloniais
nas Américas e honrando os que içaram, com a derrota colonial, suas bandeiras
de liberdade!...
… Por que a liberdade não se
cinge, nem se reduz a uma bandeira tornada pelo poder do império num símbolo
fútil e fértil de enganos, subvertendo os mais suculentos sonhos ainda e sempre
ávidos de vida, de paz e de liberdade, os degraus da ascendência em busca de
vida no colectivo, foram-se sucedendo!
A longa escada das Américas há
que subi-la a pulso e com os pulmões a rebentar numa atmosfera rarefeita, por
vezes azotada, ou mesmo sulfúrica, uma escada tão íngreme como os vértebras
colossais dos Andes… chegar às alturas de Machu Picchu, reflectir sobre a velha
cidade abandonada e em ruínas, num ambiente de silêncio e verdes vertigens…
… Ainda que vencendo o
colonialismo hispânico, a liberdade não se reduziu a subir um mero degrau!…
Nas Américas, nas suas veias
abertas, há que contar como em nenhum outro continente, com o poderoso
expansionismo que se abate sobre os povos do sul, o expansionismo imperador que
avassala desde o norte e mobiliza correntes de sonhos em busca de cada vez mais
desvirtuados e subvertidos enganos… e artificiosos brilhos que encobrem, cada
vez mais, agónicos circuitos vazios que alucinadamente querem tornar perpétuos!
No corpo das Américas há que
oxigenar o sangue das artérias quando as veias continuam abertas e uma
redobrada utopia para além do içar das bandeiras, esvoaça desde os sonhos de
Marti, de Sandino, de Bolivar, numa imenso espaço tornado numa incontornável e
decisiva Pátria Grande!
Outra prova de amor fecundo,
outra prova de dignidade há que dar às bandeiras da liberdade, porque a
liberdade é uma cultura que se deve transmitir de geração em geração, num
concerto de desafios tornados vida e paz, tornados respeito para com a Mãe
Terra, conforme ensinavam os antepassados desaparecidos nas alturas de Machu
Picchu e Marti e Sandino e Bolivar e os Comandantes vitais do século XX e
XXI!...
“Por ora”, aquele momento tático
ávido de vida, de futuro, de dignidade, de solidariedade e de paz, a 4 de
Fevereiro de 1992, foi também vencido, mas ele deu azo à energia, à força
predestinada para a ascensão, tal como aquele outro 4 de Fevereiro de 1961!
Numa prova de maturidade em prol
das bandeiras: não basta chegar à emancipação da juventude, há que continuar as
provas de vida maturidade adentro e tornar essas provas de vida na equação duma
resistência equilibrada entre povo e armas, na continuada busca de liberdade,
vencendo outra e outra vez os Andes, degrau a degrau!
… E então emerge Hugo Chavez,
numa vanguarda feita duma harmonia resistente, duma argamassa cívica e militar,
participativa e protagonista, por que nas Américas os sonhos correm o risco de
se tornar em quimeras à mercê do poderoso Condor, como ocorreu num dia pelas
amargas ruas de Santiago ensanguentado!…
… Em Santiago identificou-se a
injecção dum novo estigma que abria ainda mais as veias das Américas, com as
transversais facas do neoliberalismo cortando o tecido dos povos, facas
manejadas por mãos reitoras de novos modelos de opressão e repressão, facas que
rompiam até com os tecidos ambientais dum planeta cada vez mais exangue,
carente de respeito, de dedicação e de amor!
3- O círculo 4F completa-se e
fecha-se nas duas margens do Atlântico Sul, por que a utopia da dignidade, da
solidariedade, da paz, do amor, das bandeiras semeadas com o heroísmo dos
povos, a da liberdade tão ansiada pelos povos, corre no oxigenado sangue das
Américas e de África, apesar de todas as intemperanças e subversões semeadas
desde o norte pelo mais renitente poder imperial que alguma vez recaiu sobre
toda a humanidade!
É um Círculo 4F que emerge
intemporal, transatlântico, imprescindível, por que os impérios, os decadentes
impérios, um dia quiseram condenar “eternamente” os escravos à saga
dos grilhões em paragens remotas onde se escondiam e se escondem, em caixas
fechadas a cadeado todas as servidões, como se fazia aliás com os velhos baús
de riquezas espoliadas pelos corsários e piratas… baús enterrados sordidamente
nas areias de ilhas desconhecidas, perdidas entre brumas plasmadas em
irrespiráveis ambientes de dor, de depredação e de sangue!
O Círculo 4F transatlântico toca
ainda como um imenso sino, a rebate, por que afinal também a espécie humana
sente-o, sobretudo aquela parte mais vilipendiada, oprimida, subjugada e
deliberadamente saqueada!
A humanidade está em risco de
desaparecer à mercê da irracionalidade do próprio homem tornado poder sobre os
outros homens, daquele homem egoisticamente mesquinho que cultiva a avidez dum
poder que se tornou contra toda a humanidade e até, irremediavelmente, contra o
âmago do seu próprio ser!...
O transatlântico Círculo 4F,
vencido colonialismo, vencido o “apartheid” e vencidas tantas das
suas sequelas, corre no sangue oxigenado das artérias das Américas e de África,
por que as veias abertas pelo neoliberalismo desde os anos 70 do século XX,
trazem o sinal duma avassaladora servidão e por isso é preciso, com os homens
que vão subindo a penosa escada da liberdade mesmo com os pulmões a rebentar,
alcançar os cumes enevoados das utopias, nos Andes como no Quilimanjaro, pois
as utopias estão aí mesmo à mão, feitas de democracia, participativa,
protagonismo social, digna e solidária, nos horizontes que nos absorvem na
esponja medular imensa de que é feito este século XXI!...
Martinho Júnior -- Luanda, 4 de fevereiro de2020
Imagens:
Quartel da Montanha, Mausoléu de
Agostinho Neto, Sarcófago do Comandante Hugo Chavez e Sarcófago de Agostinho
Neto; honra e glória aos alicerces do transatlântico Círculo 4F!
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