quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Portugal | Eutanásia ativa, eutanásia passiva e suicídio assistido. Afinal, o que está em causa?


A crescente sofisticação dos tratamentos médicos, paradoxalmente, é um dos motivos que forçam a evolução dos valores sociais. E das leis

Se Portugal aprovar a legalização da eutanásia, fará aquilo que Espanha também se prepara para fazer, após um processo não muito diferente do português no essencial. Tal como em Portugal, em Espanha o debate opõe a Igreja Católica e outras confissões e grupos conservadores a uma coligação de forças de esquerda que parece refletir a opinião da maioria da população na matéria.

A lei espanhola deverá legalizar tanto a eutanásia como o suicídio assistido. A diferença entre as duas figuras está em quem faz o gesto decisivo para provocar a morte. No suicídio assistido, é o próprio doente (estes casos respeitam sempre a um doente em situação de intenso sofrimento), embora auxiliado por terceiros, que ingere o comprimido ou ativa outro mecanismo que lhe introduz uma substância letal no corpo. Já na eutanásia, é o médico ou outra pessoa que o faz. A distinção não é apenas teórica, podendo representar para o outro envolvido a diferença entre praticar um ato ilegal ou cometer um crime.

Em relação à eutanásia, convém notar a diferença entre dois tipos básicos: a eutanásia ativa, na qual é administrada uma substância com o propósito de causar a morte, e a passiva, onde são retirados determinados recursos que mantinham a pessoa viva. Esta última pode às vezes confinar com a recusa da chamada 'obstinação terapêutica', isto é, do prolongamento de tratamentos quando já não existe esperança para o doente e aqueles não têm o menor efeito benéfico.

Hoje em dia, aliás, um cidadão tem o poder de decidir antecipadamente que isso não lhe acontecerá. A Diretiva Antecipada de Vontade, geralmente conhecida como testamento vital, é a declaração através da qual o cidadão determina que tratamentos que não deseja receber se algum dia estiver na situação referida. No mesmo documento, pode designar um alguém - o seu Procurador de Cuidados de Saúde - que tomará essas decisões no caso de a pessoa estar incapacitada de o fazer. A declaração pode ser entregue num dos 85 balcões do Registo Nacional de Testamento Vital que existem em Portugal. Perto de 25 mil portugueses já o fizeram, a maioria dos quais mulheres.


EUTANÁSIA DE CRIANÇAS

A eutanásia passiva é praticada há muito, de forma assumida ou não, e muitos países autorizam-na. Já a eutanásia ativa só é permitida em três países europeus - Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Quanto ao suicídio assistido, é legal na Suíça. Nos jornais ingleses surgem com certa regularidade notícias sobre pessoas que vão à Suíça terminar a sua vida numa de duas instituições que operam no país com esse fim, tornando públicas as suas histórias como forma de pressão para fazer com que a lei inglesa mude. O facto de essas histórias serem com frequência precedidas de processos judiciais em que a pessoa tentou conseguir autorização para ser ajudada a morrer também contribui para lhes dar publicidade.

Se a eutanásia passiva e o suicídio assistido põem questões complexas, a eutanásia ativa ainda os põe mais, pela participação ativa de profissionais de saúde. Na Holanda, o país que se tornou símbolo da legalização dessa prática, verificam-se anualmente quase sete mil mortes por eutanásia, o que representa perto de quatro por cento do total de mortes no país. Não se trata, portanto, de um evento raro, nem em termos absolutos nem em percentagem.

O regime legal, em vigor desde 2002, tem a particularidade de ser uma codificação daquilo que nas duas décadas anteriores tinha sido construído pelos tribunais, nomeadamente em relação aos requisitos que se exigem: sofrimento intenso do doente, pedido da eutanásia feito por ele em plena consciência da situação e das opções que lhe restam, acordo de pelo menos dois médicos (o do doente e um outro, independente). A idade mínima são os 12 anos.

Se a Holanda se tornou a 'bête noire' dos inimigos da eutanásia, a vizinha Bélgica vai por vezes ainda mais longe. Em 2014, passou a autorizar a eutanásia de crianças sem limite de idade com doenças incuráveis e terminais que lhes provoquem dor física "constante e insuportável", desde que elas "tenham capacidade de discernimento e estejam conscientes no momento do pedido". Também se exige o consentimento dos pais. A lei foi aplicada pela primeira vez em 2016, num menor de 17 anos.

O ARGUMENTO DA RAMPA DESLIZANTE

Quase todas as igrejas, cristãs e outras, se opõem à eutanásia. Numa perspetiva religiosa, só quem deu a vida - isto é, Deus - tem o direito de a tirar. Mas este argumento tem cada vez menos peso numa sociedade secular onde o aparecimento constante de novos tratamentos médicos permite o prolongamento da vida não raro para além do ponto em que ela ainda tem um mínimo de qualidade - e a um custo incomportável para a maioria das pessoas. Nos últimos anos, tem-se constatado que muitas pessoas invocam questões de dignidade e o desejo de não perderem o controle de si mesmas, mais do que sofrimento físico, como motivo para desejarem terminar a vida.

Uma das principais objeções à eutanásia tem justamente a ver com controle. Não haverá por vezes o risco de os idosos e os doentes serem pressionados para morrer - digamos, por um parente na expectativa de uma herança, ou por outros interessados? Como avaliar a autonomia da vontade no caso de uma pessoa que está em intenso sofrimento ou com dificuldade em refletir claramente sobre as coisas? O potencial de manipulação não será real?

Este argumento entronca numa linha de objeções mais ampla que é conhecida pela expressão 'rampa deslizante'. Uma vez permitida a eutanásia em situações restritas, é praticamente certo que com o tempo essas situações irão sendo progressivamente alargadas. Por outro lado, mesmo que a lei estabeleça condições claras para a eutanásia e defina um processo exigente para as garantir, como garantir que essas condições e esse processo são sempre aplicados?

COMPRIMIDO LETAL A PARTIR DOS 70 ANOS?

O exemplo dos países que já autorizam a eutanásia poderá dar alguma razão ao argumento da rampa deslizante. Nalguns já se fala em permitir a eutanásia sempre que alguém achar que a sua vida está completa, ou até em fornecer um comprimido letal a todos os maiores de 70 anos. Por outro lado, em termos numéricos, se nos anos iniciais da lei holandesa não houve um grande aumento de casos de eutanásia com participação do médico, em anos recentes verificou-se uma grande subida.

Estes dados, porém, devem ser analisados com cuidado. Como os pedidos de eutanásia continuam a ser submetidos a um processo exigente de verificação, o aumento de casos pode ter simplesmente a ver com uma maior consciência da possibilidade e com o desaparecimento do tabu, ou talvez existam outros fatores em jogo. Quanto ao comprimido letal a partir dos 70 anos, a verdade é que ainda não está disponível em lado algum.

Em suma, tal como acontece na generalidade das questões 'sociais' (aborto e casamento gay são outras duas), não existe um argumento conclusivo capaz de encerrar o debate. Confrontam-se sistemas de valores diferentes, concepções diferentes do mundo que em última análise são irreconciliáveis. Embora a eutanásia ativa apenas seja legal em muito poucos países - além dos acima referidos, também o Canadá e a Colômbia a autorizam - a direção da História parece ir hoje nesse sentido.

Em assuntos como estes, as mudanças legais tendem a acompanhar uma certa evolução dos valores sociais, e uma vez mudada a lei os valores costumam evoluir ainda mais. Em suma, a única certeza agora é a de que, se a eutanásia for legalizada, dificilmente se voltará atrás.

Luís M. Faria | Expresso

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