A crescente sofisticação dos
tratamentos médicos, paradoxalmente, é um dos motivos que forçam a evolução dos
valores sociais. E das leis
Se Portugal aprovar a legalização
da eutanásia, fará aquilo que Espanha também se prepara para fazer, após um
processo não muito diferente do português no essencial. Tal como em Portugal,
em Espanha o debate opõe a Igreja Católica e outras confissões e grupos
conservadores a uma coligação de forças de esquerda que parece refletir a
opinião da maioria da população na matéria.
A lei espanhola deverá legalizar
tanto a eutanásia como o suicídio assistido. A diferença entre as duas figuras
está em quem faz o gesto decisivo para provocar a morte. No suicídio assistido,
é o próprio doente (estes casos respeitam sempre a um doente em situação de
intenso sofrimento), embora auxiliado por terceiros, que ingere o comprimido ou
ativa outro mecanismo que lhe introduz uma substância letal no corpo. Já na
eutanásia, é o médico ou outra pessoa que o faz. A distinção não é apenas
teórica, podendo representar para o outro envolvido a diferença entre praticar
um ato ilegal ou cometer um crime.
Em relação à eutanásia, convém
notar a diferença entre dois tipos básicos: a eutanásia ativa, na qual é
administrada uma substância com o propósito de causar a morte, e a passiva,
onde são retirados determinados recursos que mantinham a pessoa viva. Esta
última pode às vezes confinar com a recusa da chamada 'obstinação terapêutica',
isto é, do prolongamento de tratamentos quando já não existe esperança para o
doente e aqueles não têm o menor efeito benéfico.
Hoje em dia, aliás, um cidadão
tem o poder de decidir antecipadamente que isso não lhe acontecerá. A Diretiva
Antecipada de Vontade, geralmente conhecida como testamento vital, é a
declaração através da qual o cidadão determina que tratamentos que não deseja
receber se algum dia estiver na situação referida. No mesmo documento, pode designar
um alguém - o seu Procurador de Cuidados de Saúde - que tomará essas decisões
no caso de a pessoa estar incapacitada de o fazer. A declaração pode ser
entregue num dos 85 balcões do Registo Nacional de Testamento Vital que existem
em Portugal. Perto de 25 mil portugueses já o fizeram, a maioria dos quais
mulheres.
EUTANÁSIA DE CRIANÇAS
A eutanásia passiva é praticada
há muito, de forma assumida ou não, e muitos países autorizam-na. Já a
eutanásia ativa só é permitida em três países europeus - Holanda, Bélgica e
Luxemburgo. Quanto ao suicídio assistido, é legal na Suíça. Nos jornais
ingleses surgem com certa regularidade notícias sobre pessoas que vão à Suíça
terminar a sua vida numa de duas instituições que operam no país com esse fim,
tornando públicas as suas histórias como forma de pressão para fazer com que a
lei inglesa mude. O facto de essas histórias serem com frequência precedidas de
processos judiciais em que a pessoa tentou conseguir autorização para ser
ajudada a morrer também contribui para lhes dar publicidade.
Se a eutanásia passiva e o
suicídio assistido põem questões complexas, a eutanásia ativa ainda os põe
mais, pela participação ativa de profissionais de saúde. Na Holanda, o país que
se tornou símbolo da legalização dessa prática, verificam-se anualmente quase
sete mil mortes por eutanásia, o que representa perto de quatro por cento do
total de mortes no país. Não se trata, portanto, de um evento raro, nem em
termos absolutos nem em percentagem.
O regime legal, em vigor desde
2002, tem a particularidade de ser uma codificação daquilo que nas duas décadas
anteriores tinha sido construído pelos tribunais, nomeadamente em relação aos
requisitos que se exigem: sofrimento intenso do doente, pedido da eutanásia
feito por ele em plena consciência da situação e das opções que lhe restam,
acordo de pelo menos dois médicos (o do doente e um outro, independente). A
idade mínima são os 12 anos.
Se a Holanda se tornou a 'bête
noire' dos inimigos da eutanásia, a vizinha Bélgica vai por vezes ainda mais
longe. Em 2014, passou a autorizar a eutanásia de crianças sem limite de idade
com doenças incuráveis e terminais que lhes provoquem dor física "constante
e insuportável", desde que elas "tenham capacidade de discernimento e
estejam conscientes no momento do pedido". Também se exige o consentimento
dos pais. A lei foi aplicada pela primeira vez em 2016, num menor de 17 anos.
O ARGUMENTO DA RAMPA DESLIZANTE
Quase todas as igrejas, cristãs e
outras, se opõem à eutanásia. Numa perspetiva religiosa, só quem deu a vida -
isto é, Deus - tem o direito de a tirar. Mas este argumento tem cada vez menos
peso numa sociedade secular onde o aparecimento constante de novos tratamentos
médicos permite o prolongamento da vida não raro para além do ponto em que ela
ainda tem um mínimo de qualidade - e a um custo incomportável para a maioria
das pessoas. Nos últimos anos, tem-se constatado que muitas pessoas invocam questões
de dignidade e o desejo de não perderem o controle de si mesmas, mais do que
sofrimento físico, como motivo para desejarem terminar a vida.
Uma das principais objeções à
eutanásia tem justamente a ver com controle. Não haverá por vezes o risco de os
idosos e os doentes serem pressionados para morrer - digamos, por um parente na
expectativa de uma herança, ou por outros interessados? Como avaliar a
autonomia da vontade no caso de uma pessoa que está em intenso sofrimento ou
com dificuldade em refletir claramente sobre as coisas? O potencial de
manipulação não será real?
Este argumento entronca numa
linha de objeções mais ampla que é conhecida pela expressão 'rampa deslizante'.
Uma vez permitida a eutanásia em situações restritas, é praticamente certo que
com o tempo essas situações irão sendo progressivamente alargadas. Por outro
lado, mesmo que a lei estabeleça condições claras para a eutanásia e defina um
processo exigente para as garantir, como garantir que essas condições e esse
processo são sempre aplicados?
COMPRIMIDO LETAL A PARTIR DOS 70
ANOS?
O exemplo dos países que já
autorizam a eutanásia poderá dar alguma razão ao argumento da rampa deslizante.
Nalguns já se fala em permitir a eutanásia sempre que alguém achar que a sua
vida está completa, ou até em fornecer um comprimido letal a todos os maiores
de 70 anos. Por outro lado, em termos numéricos, se nos anos iniciais da lei
holandesa não houve um grande aumento de casos de eutanásia com participação do
médico, em anos recentes verificou-se uma grande subida.
Estes dados, porém, devem ser
analisados com cuidado. Como os pedidos de eutanásia continuam a ser submetidos
a um processo exigente de verificação, o aumento de casos pode ter simplesmente
a ver com uma maior consciência da possibilidade e com o desaparecimento do
tabu, ou talvez existam outros fatores em jogo. Quanto ao comprimido letal a
partir dos 70 anos, a verdade é que ainda não está disponível em lado algum.
Em suma, tal como acontece na
generalidade das questões 'sociais' (aborto e casamento gay são outras duas),
não existe um argumento conclusivo capaz de encerrar o debate. Confrontam-se
sistemas de valores diferentes, concepções diferentes do mundo que em última
análise são irreconciliáveis. Embora a eutanásia ativa apenas seja legal em
muito poucos países - além dos acima referidos, também o Canadá e a Colômbia a
autorizam - a direção da História parece ir hoje nesse sentido.
Em assuntos como estes, as
mudanças legais tendem a acompanhar uma certa evolução dos valores sociais, e
uma vez mudada a lei os valores costumam evoluir ainda mais. Em suma, a única
certeza agora é a de que, se a eutanásia for legalizada, dificilmente se
voltará atrás.
Luís M. Faria | Expresso
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