O Expresso tem publicado desde
segunda-feira um conjunto de artigos sobre aquilo a que os Médicos Sem
Fronteiras chamaram “um novo desastre humanitário”: a Turquia, país com quase
quatro milhões de refugiados, abriu as suas fronteiras e muitos desses refugiados
começaram a passar. Sobretudo rumo à Grécia, onde o Governo local chamou
“invasão” ao que está a acontecer. Este é o capítulo V e parte dele passa-se em
Lisboa
- Este não era o local onde havia
uma bandeira da União Europeia feita de arames?
- Está aqui.
- Nem a vi - Miguel levanta a cabeça - olha, pois está.
- Está aqui.
- Nem a vi - Miguel levanta a cabeça - olha, pois está.
Foi erguida por dois irmãos
iranianos, foi a sua primeira intervenção artística e representa as barreiras
que os migrantes enfrentam para tentarem chegar à Europa. Está ali, discreta,
quase invisível. Aliás, quando começar a cair a noite, o escuro vai comer
primeiro as estrelas dos 27 estados. Uma a uma. Depois tudo terá desaparecido.
Ficará apenas um mastro de alguma coisa que não se percebe bem o que é.
Há algo de metafórico nesta
discrição. Mas já lá vamos.
É na Praça Europa, em Lisboa, que
a Humans Before Borders (HuBB) organiza aquele que é um protesto contra uma
Europa que não querem. “Este não é o caminho que queremos seguir enquanto sociedade
e estamos aqui para exigir, finalmente, o descongestionamento das ilhas do mar
Egeu. É completamente incomportável e desumano”, explica Miguel Duarte, membro
da HuBB e também voluntário. “Queremos uma Europa solidária, não queremos
isto.” E em seguida enumera os vários acontecimentos nas fronteiras entre a
Grécia e a Turquia: fala dos relatos de violência física, dos tiros disparados
pelas autoridades gregos, do uso de gás lacrimogéneo para controlar os
migrantes, dos ataques de grupos associados à extrema-direita. “Já para não
falar da crescente criminalização do trabalho humanitário e da solidariedade.”
Miguel dirige-se para outro local
da Praça e pega num microfone. É a vez dele de discursar para todos aqueles que
escolheram passar o final da tarde de uma sexta-feira junto ao Tejo, em Lisboa,
em silêncio. Estendidos no chão, os cartazes cobrem-lhes os corpos: “Stay
human, take action!”, “Greek tragedies everyone’s responsibility”, “Shame on
EU”, “Fortress of EU is killing”, “EU this is u?”.
“Está muito vento, não sei se me
consigo deitar no chão”, diz uma jovem. “Anda, é por uma boa causa.” A jovem
ainda não está certa. Está mesmo muito frio. “Vamos, eu deito-me do lado do
vento e protejo-te.” E foram.
“E ISSO...” ANA PÁRA E SUSPIRA
Esta não é primeira concentração
deste género organizada pela HuBB. Mas agora está tudo mais caótico e é ainda
mais urgente mostrar a “desumanização” da Europa, que há uma semana mantém as
portas fechadas, fortemente patrulhadas enquanto do outro lado a Turquia
continua a não impedir a passagem de refugiados e migrantes. De acordo com os
números avançados ao Expresso pela embaixada da Grécia em Portugal, há quatro
mil pessoas em Edirne, a última cidade turca antes de se entrar por terra na
Europa. Há mais 10 mil nas praias da Turquia à espera da sua vez de embarcarem
rumo às ilhas gregas.
“Até esta sexta-feira de manhã
conseguiram atravessar ilegalmente a fronteira terrestre 352 pessoas, enquanto
1850 pessoas desembarcaram nas ilhas”, lê-se na nota enviada pela embaixada.
De Edirne há relatos e
fotografias de homens apenas em roupa interior. Diz a agência noticiosa da
Turquia que foram homens travados pelas autoridades gregas, forçados a
despirem-se e alguns deles foram mesmo espancados.
“As pessoas correm o risco de
ficar na terra de ninguém e de entrar num limbo em que, se olharmos para os
anos recentes, há o sério risco de nada ser feito”, defende Ana Farias Fonseca,
assistente de campanhas e mobilizações da Amnistia Internacional Portugal -
também eles se juntaram ao protesto desta sexta-feira. “Não é que seja um
problema sem solução, mas o acolhimento destas pessoas pode e deve ser feito
por outros países, nem que isso implique um grande trabalho de logística.
Estamos perante um momento em que todos os nossos esforços devem ser exímios e
nenhum deve ser poupado. É possível que número de chegadas continue a aumentar
e as respostas deveriam ser sobretudo ao nível humanitário.”
De um lado Evros, do outro
Edirne. Pelo meio uns metros de terra que pertencem a ninguém e que parecem um
campo de batalha com arames farpados, restos de objetos que foram atirados por
ambas as partes daquilo que também é um conflito. Os migrantes forçam a
passagem, as autoridades gregas respondem com força.
“Não tenho dúvidas que estas
ações do Governo grego são um grito de ajuda à Europa, mas isso não as torna
legítimas”, considera Ana Farias Fonseca. “Falta partilhar a solidariedade. A
vontade política tem de ir muito mais longe do que foi e o respeito pelos
direitos humanos está muito aquém do que é necessário. A parte humana nunca é
considerada. Temos de pensar que são milhares de pessoas: são pais, são mães,
são filhos, são avós e avôs que correm o risco de serem enviados de volta ao
país de origem. E isso...” Ana pára e suspira. Retoma: “é uma violação brutal
dos direitos humanos.”
ACUSADOS DE AMEAÇAREM VOLUNTÁRIOS
No mesmo dia em que um grupo de
militantes de movimentos de extrema-direita da Alemanha e Áustria (Identitare
Bewegung) aterrou em Mitilini, a principal cidade da ilha de Lesbos, dois
homens foram presentes a tribunal sob a acusação de ameaçarem trabalhadores
humanitários devido ao seu trabalho junto dos campos de refugiados na ilhas.
Os militantes, escreve o jornal
grego “Kathimerini”, foram expulsos da ilha pelas autoridades. Os
outros homens, que vivem em Lesbos, foram considerados culpados e vão cumprir
três meses de pena suspensa.
“Um dos grandes perigos daquilo
que as autoridades gregas tem estado a fazer é alimentar o que já acontece um
pouco por toda a Europa: os movimentos xenófobos e populistas”, sublinha Ana Farias
Fonseca, voltando a dar o exemplo dos vários relatos de grupos de locais que
impediram embarcações com refugiados e migrantes de desembarcarem nas ilhas.
“Há um medo de deixar estas
pessoas entrarem na Europa, mas é um medo engendrado e utilizado com fins
políticos”, considera Miguel Duarte. “São partidos e movimentos de
extrema-direita que instrumentalizam este medo e que o manipulam para chegar a
fins políticos baseados em pressupostos desonestos. Oferecem soluções simples
para a questão migratória, que é extremamente complexa. E não há soluções
simples para problemas complexos.”
No meio da concentração em
Lisboa, com mais de uma centena de pessoas a ouvirem os discursos (um dos quais
em Inglês), um homem ergue-se e grita em protesto: “Estamos em Portugal, falem
Português”. E todos eles viraram o olha para ele e entoaram apenas gritos pela
união e pelo fim das fronteiras. A polícia apareceu e afastou o homem.
“Vejo com muito maus olhos o rumo
da sociedade europeia”, diz Miguel Duarte. “Se há cinco anos nos dissessem que
a polícia de um Estado-membro da União Europeia estaria a usar gás lacrimogéneo
para afugentar migrantes das suas fronteiras, não acreditaríamos. E ainda
acreditaríamos menos se nos dissessem que a resposta da Comissão Europa seria
‘obrigado, Grécia, obrigado por serem o nosso escudo.”
Uma União que parece desaparecer,
diz Miguel. Tal como a bandeira ali junto ao Tejo, em Lisboa, com o cair da
noite.
Marta Gonçalves | Expresso
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