domingo, 1 de março de 2020

Fuga de informação: Rede pan-europeia de bases de dados de reconhecimento facial


Fuga de informação de relatórios mostra que as polícias da UE estão a planear uma rede pan-europeia de bases de dados de reconhecimento facial


A marcha da UE no sentido de um super-Estado prossegue também no plano da articulação entre forças de repressão, em estreita colaboração com as suas congéneres dos EUA. Trata-se de expandir a toda a UE o monstruoso mecanismo de fichagem de muitos milhões de pessoas - passando por cima dos direitos individuais, nomeadamente à privacidade - que já vigora nos EUA e em vários dos países membros, com cobertura legal ou sem ela.

Uma investigadora policial em Espanha está a tentar solucionar um crime, mas só tem uma imagem do rosto de um suspeito, captado por uma camara de segurança próxima. A polícia europeia tem há muito tempo acesso a bases de dados de impressões digitais e DNA nos 27 países da União Europeia e, em certos casos, dos Estados Unidos. Mas em breve essa investigadora poderá também pesquisar uma rede de bases de dados policiais abrangendo toda a Europa e os EUA.

De acordo com documentos internos da União Europeia de que houve fuga de informação, a UE poderá em breve criar uma rede de bases de dados policiais nacionais de reconhecimento facial. Um relatório elaborado pelas forças policiais nacionais de 10 estados membros da UE, liderado pela Áustria, apela à aprovação de legislação da UE para introduzir e interconectar essas bases de dados em todos os estados membros. O relatório, que The Intercept obteve de um funcionário europeu preocupado com o desenvolvimento dessa rede, circulou entre autoridades da UE e nacionais em Novembro de 2019. Se acordos anteriores de partilha de dados constituem um guia, a nova rede de reconhecimento facial estará provavelmente conectada a bases de dados semelhantes nos EUA, criando o que os investigadores sobre privacidade estão a chamar consolidação transatlântica maciça de dados biométricos.




O relatório foi produzido como parte das discussões sobre a expansão do sistema Prüm, uma iniciativa em toda a UE que conecta bases de dados de DNA, impressões digitais e registo de veículos para pesquiza mútua. Existe um sistema semelhante entre os EUA e qualquer país que faça parte do Programa de Isenção de Vistos, que inclui a maioria dos países da UE; acordos bilaterais permitem que agências dos EUA e da Europa acedam umas e outras às respectivas bases de dados de impressões digitais e de DNA.

Embora a nova legislação que dê seguimento à recomendação do relatório não esteja ainda em agenda, o trabalho preparatório está em andamento. Informação fornecida pela Comissão Europeia ao Parlamento Europeu em Novembro passado mostra que quase 700.000 euros (cerca de US $ 750.000) estão a ser atribuídos a um estudo da empresa de consultoria Deloitte sobre possíveis alterações no sistema Prüm, com parte do trabalho visando a tecnologia de reconhecimento facial. A Comissão Europeia pagou também separadamente 500.000 euros a um consórcio de agências públicas liderado pelo Instituto de Ciência Forense da Estónia para “inventariar a situação actual do reconhecimento facial em investigações criminais em todos os Estados-Membros da UE”, com o objectivo de avançar “em direção a uma possível troca de dados faciais”, de acordo com uma apresentação do projecto enviada a representantes nacionais em Bruxelas.

“Isto é preocupante a nível nacional e europeu, principalmente porque alguns países da UE se tende para governos mais autoritários”, disse Edin Omanovic, director de advocacia da Privacy International. Omanovic preocupa-se com o facto de uma base pan-europeia de dados faciais ser usada para “vigilância politicamente motivada” e não apenas para o trabalho policial normal. A possibilidade de vigilância generalizada, injustificada ou ilegal é uma das muitas críticas à tecnologia de reconhecimento facial. Outra é que é notoriamente imprecisa, principalmente para pessoas de cor.

“Sem a transparência e as garantias legais para a tecnologia de reconhecimento facial ser lícita”, disse Omanovic, “deveria haver nela uma moratória “.

A UE deu grandes passos no sentido de conectar uma série de bases de dados de migração e segurança nos últimos anos. Nova legislação aprovada em Abril passado estabeleceu uma base de dados que conterá as impressões digitais, imagens faciais e outros dados pessoais de até 300 milhões de cidadãos de fora da UE, fundindo dados de cinco sistemas separados. Segundo o relatório de 10 forças policiais, os consultores da Deloitte propuseram fazer o mesmo com imagens faciais da polícia, mas a ideia deparou-se com a oposição unânime dos agentes das forças de segurança.

No entanto, o relatório recomenda ligar todas as bases de dados faciais de todos os estados membros da UE, o que pareceria ter o mesmo efeito prático. Em outro relatório policial interno da UE - este de um grupo de trabalho sobre Prüm que analisou o intercâmbio de dados da carteira de motorista - a polícia observa que “uma rede de registos nacionais interconectados pode ser considerada um registo europeu virtual”.

Para a polícia, as vantagens das bases de dados de reconhecimento facial interligadas são claras. O relatório liderado pela Áustria vê a tecnologia como uma ferramenta biométrica “altamente adequada” para identificar suspeitos desconhecidos e sugere que os bancos de dados sejam criados e ligados “o mais rápido possível”. Também reconhece a necessidade de salvaguarda da protecção de dados, como a verificação humana de quaisquer mecanismos automáticos, mas especialistas em privacidade argumentam que a criação de qualquer sistema desse tipo é o primeiro passo para uma maior partilha e ligação de dados onde tais controlos são inadequados.

As movimentações europeias no sentido consolidar dados policiais de reconhecimento facial assemelham-se a esforços semelhantes nos EUA, disse Neema Singh Guliani, consultora legislativa sénior da American Civil Liberties Union. Muitas agências policiais dos EUA trabalham em “centros de fusão”, onde estão co-localizadas e em condições de partilhar dados. Se se tem um contrato de partilha de informações com o FBI ou o Departamento de Segurança Interna, disse Guliani, “existe o risco de que as informações possam funcionalmente ser partilhadas com níveis adicionais das forças de segurança nos EUA”.

“Isso levanta muitas questões”, acrescentou. “Como está a polícia a usar o reconhecimento facial e a colectar imagens, bem como, nos EUA, relativamente à legalidade devida e à expressão da Primeira Emenda. Dadas as relações de partilha de informações existentes, é muito provável que os EUA desejem aceder a essas informações.”

Já em 2004, a Embaixada dos EUA em Bruxelas apelava um relacionamento com a UE que permitisse “trocas alargadas e partilha de todas as formas de dados, incluindo dados pessoais”. Em anos recentes, os esforços para atingir esse objectivo intensificaram-se. De acordo com um relatório do Government Accountability Office, em 2015 o Departamento de Segurança Interna começou a exigir a implementação dos acordos de partilha de dados exigida aos países do Programa Visa Waiver. Isso incluiu o FBI prestar assistência a outros estados para configurar as redes de computadores necessárias.

A Áustria, por exemplo, começou a confrontar impressões digitais com as bases de dados criminais do FBI em Outubro de 2017, explicou Reinhard Schmid, alto funcionário do serviço de informações criminais austríaco. Desde então, as impressões de cerca de 12.000 pessoas foram objecto de verificação cruzada, resultando em 150 correspondências. “Cerca de 20 dessas pessoas identificadas estavam sob investigação e suspeitas de pertencerem a organizações terroristas”, enquanto em 56 casos os indivíduos tinham tentado usar uma identidade falsa, disse Schmid.

“Aqui a lógica deles é: ‘Quando tenho um crime grave e quero confrontar a foto de alguém sobre uma base de dados, por que é que não deveria dispor disso?’”, disse Guliani. No entanto, acrescentou ela, as implicações de privacidade são enormes. “Uma vez que tenhas acesso, podes em última análise identificar quase qualquer pessoa, em qualquer lugar.”

O relatório de 10 forças policiais apela à Europol, à agência da UE para a partilha de informações e análises policiais, a que desempenhem um papel no intercâmbio de reconhecimento facial e outros dados biométricos com países não pertencentes à UE. Isso faz eco das recomendações dos próprios governos europeus: uma declaração de Julho de 2018 apelava a que a comissão considerasse “ampliar o âmbito” da rede Prüm e que a Europol assumisse a liderança na partilha de dados com países terceiros.

O FBI e a Europol não responderam a perguntas sobre acordos de partilha de dados entre a UE e os EUA. Um porta-voz da Comissão Europeia reconheceu a perspectiva de adicionar dados de reconhecimento facial à rede Prüm, mas recusou-se a entrar em mais detalhes.

Fonte: https://theintercept.com/2020/02/21/eu-facial-recognition-database/

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