Fuga de informação de relatórios
mostra que as polícias da UE estão a planear uma rede pan-europeia de bases de
dados de reconhecimento facial
A marcha da UE no sentido de um
super-Estado prossegue também no plano da articulação entre forças de
repressão, em estreita colaboração com as suas congéneres dos EUA. Trata-se de
expandir a toda a UE o monstruoso mecanismo de fichagem de muitos milhões de
pessoas - passando por cima dos direitos individuais, nomeadamente à
privacidade - que já vigora nos EUA e em vários dos países membros, com
cobertura legal ou sem ela.
Uma investigadora policial em
Espanha está a tentar solucionar um crime, mas só tem uma imagem do rosto de um
suspeito, captado por uma camara de segurança próxima. A polícia europeia tem
há muito tempo acesso a bases de dados de impressões digitais e DNA nos 27
países da União Europeia e, em certos casos, dos Estados Unidos. Mas em breve
essa investigadora poderá também pesquisar uma rede de bases de dados policiais
abrangendo toda a Europa e os EUA.
De acordo com documentos internos
da União Europeia de que houve fuga de informação, a UE poderá em breve criar
uma rede de bases de dados policiais nacionais de reconhecimento facial. Um
relatório elaborado pelas forças policiais nacionais de 10 estados membros da
UE, liderado pela Áustria, apela à aprovação de legislação da UE para
introduzir e interconectar essas bases de dados em todos os estados membros. O
relatório, que The Intercept obteve de um funcionário europeu preocupado com o
desenvolvimento dessa rede, circulou entre autoridades da UE e nacionais em
Novembro de 2019. Se acordos anteriores de partilha de dados constituem um
guia, a nova rede de reconhecimento facial estará provavelmente conectada a
bases de dados semelhantes nos EUA, criando o que os investigadores sobre
privacidade estão a chamar consolidação transatlântica maciça de dados
biométricos.
O relatório foi produzido como
parte das discussões sobre a expansão do sistema Prüm, uma iniciativa em toda a
UE que conecta bases de dados de DNA, impressões digitais e registo de veículos
para pesquiza mútua. Existe um sistema semelhante entre os EUA e qualquer país
que faça parte do Programa de Isenção de Vistos, que inclui a maioria dos
países da UE; acordos bilaterais permitem que agências dos EUA e da Europa
acedam umas e outras às respectivas bases de dados de impressões digitais e de
DNA.
Embora a nova legislação que dê
seguimento à recomendação do relatório não esteja ainda em agenda, o trabalho
preparatório está em andamento. Informação fornecida pela Comissão Europeia ao
Parlamento Europeu em Novembro passado mostra que quase 700.000 euros (cerca de
US $ 750.000) estão a ser atribuídos a um estudo da empresa de consultoria
Deloitte sobre possíveis alterações no sistema Prüm, com parte do trabalho
visando a tecnologia de reconhecimento facial. A Comissão Europeia pagou também
separadamente 500.000 euros a um consórcio de agências públicas liderado pelo
Instituto de Ciência Forense da Estónia para “inventariar a situação actual do
reconhecimento facial em investigações criminais em todos os Estados-Membros da
UE”, com o objectivo de avançar “em direção a uma possível troca de dados
faciais”, de acordo com uma apresentação do projecto enviada a representantes
nacionais em Bruxelas.
“Isto é preocupante a nível
nacional e europeu, principalmente porque alguns países da UE se tende para
governos mais autoritários”, disse Edin Omanovic, director de advocacia da
Privacy International. Omanovic preocupa-se com o facto de uma base
pan-europeia de dados faciais ser usada para “vigilância politicamente motivada”
e não apenas para o trabalho policial normal. A possibilidade de vigilância
generalizada, injustificada ou ilegal é uma das muitas críticas à tecnologia de
reconhecimento facial. Outra é que é notoriamente imprecisa, principalmente
para pessoas de cor.
“Sem a transparência e as
garantias legais para a tecnologia de reconhecimento facial ser lícita”, disse
Omanovic, “deveria haver nela uma moratória “.
A UE deu grandes passos no
sentido de conectar uma série de bases de dados de migração e segurança nos
últimos anos. Nova legislação aprovada em Abril passado estabeleceu uma base de
dados que conterá as impressões digitais, imagens faciais e outros dados
pessoais de até 300 milhões de cidadãos de fora da UE, fundindo dados de cinco
sistemas separados. Segundo o relatório de 10 forças policiais, os consultores
da Deloitte propuseram fazer o mesmo com imagens faciais da polícia, mas a
ideia deparou-se com a oposição unânime dos agentes das forças de segurança.
No entanto, o relatório recomenda
ligar todas as bases de dados faciais de todos os estados membros da UE, o que
pareceria ter o mesmo efeito prático. Em outro relatório policial interno da UE
- este de um grupo de trabalho sobre Prüm que analisou o intercâmbio de dados
da carteira de motorista - a polícia observa que “uma rede de registos
nacionais interconectados pode ser considerada um registo europeu virtual”.
Para a polícia, as vantagens das
bases de dados de reconhecimento facial interligadas são claras. O relatório
liderado pela Áustria vê a tecnologia como uma ferramenta biométrica “altamente
adequada” para identificar suspeitos desconhecidos e sugere que os bancos de
dados sejam criados e ligados “o mais rápido possível”. Também reconhece a
necessidade de salvaguarda da protecção de dados, como a verificação humana de
quaisquer mecanismos automáticos, mas especialistas em privacidade argumentam
que a criação de qualquer sistema desse tipo é o primeiro passo para uma maior
partilha e ligação de dados onde tais controlos são inadequados.
As movimentações europeias no
sentido consolidar dados policiais de reconhecimento facial assemelham-se a
esforços semelhantes nos EUA, disse Neema Singh Guliani, consultora legislativa
sénior da American Civil Liberties Union. Muitas agências policiais dos EUA trabalham
em “centros de fusão”, onde estão co-localizadas e em condições de partilhar
dados. Se se tem um contrato de partilha de informações com o FBI ou o
Departamento de Segurança Interna, disse Guliani, “existe o risco de que as
informações possam funcionalmente ser partilhadas com níveis adicionais das
forças de segurança nos EUA”.
“Isso levanta muitas questões”,
acrescentou. “Como está a polícia a usar o reconhecimento facial e a colectar
imagens, bem como, nos EUA, relativamente à legalidade devida e à expressão da
Primeira Emenda. Dadas as relações de partilha de informações existentes, é
muito provável que os EUA desejem aceder a essas informações.”
Já em 2004, a Embaixada dos EUA
em Bruxelas apelava um relacionamento com a UE que permitisse “trocas alargadas
e partilha de todas as formas de dados, incluindo dados pessoais”. Em anos
recentes, os esforços para atingir esse objectivo intensificaram-se. De acordo
com um relatório do Government Accountability Office, em 2015 o Departamento de
Segurança Interna começou a exigir a implementação dos acordos de partilha de
dados exigida aos países do Programa Visa Waiver. Isso incluiu o FBI prestar
assistência a outros estados para configurar as redes de computadores
necessárias.
A Áustria, por exemplo, começou a
confrontar impressões digitais com as bases de dados criminais do FBI em
Outubro de 2017, explicou Reinhard Schmid, alto funcionário do serviço de
informações criminais austríaco. Desde então, as impressões de cerca de 12.000
pessoas foram objecto de verificação cruzada, resultando em 150
correspondências. “Cerca de 20 dessas pessoas identificadas estavam sob
investigação e suspeitas de pertencerem a organizações terroristas”, enquanto
em 56 casos os indivíduos tinham tentado usar uma identidade falsa, disse
Schmid.
“Aqui a lógica deles é: ‘Quando
tenho um crime grave e quero confrontar a foto de alguém sobre uma base de
dados, por que é que não deveria dispor disso?’”, disse Guliani. No entanto,
acrescentou ela, as implicações de privacidade são enormes. “Uma vez que tenhas
acesso, podes em última análise identificar quase qualquer pessoa, em qualquer
lugar.”
O relatório de 10 forças
policiais apela à Europol, à agência da UE para a partilha de informações e
análises policiais, a que desempenhem um papel no intercâmbio de reconhecimento
facial e outros dados biométricos com países não pertencentes à UE. Isso faz
eco das recomendações dos próprios governos europeus: uma declaração de Julho
de 2018 apelava a que a comissão considerasse “ampliar o âmbito” da rede Prüm e
que a Europol assumisse a liderança na partilha de dados com países terceiros.
O FBI e a Europol não responderam
a perguntas sobre acordos de partilha de dados entre a UE e os EUA. Um
porta-voz da Comissão Europeia reconheceu a perspectiva de adicionar dados de
reconhecimento facial à rede Prüm, mas recusou-se a entrar em mais detalhes.
Fonte:
https://theintercept.com/2020/02/21/eu-facial-recognition-database/
*em O Diário.info
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