segunda-feira, 23 de março de 2020

Moscovo e a desinformação na crise do coronavírus


Relatório da União Europeia enumera dezenas de casos de notícias falsas de origem russa sobre a covid-19. Tática para confundir opinião pública segue o mesmo modelo usado pela União Soviética na época da Guerra Fria.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já fala numa "infodemia" em conexão com a crise do coronavírus. Não apenas o vírus, mas também uma quantidade crescente de informações circula pelo mundo. No entanto, muitas informações são pura desinformação e são usadas como um meio de exercer influência política.

A Rússia é particularmente ativa nessa área. Um relatório da divisão para comunicação estratégica do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE) divulgado nesta semana relata dezenas de casos de desinformação em relação ao vírus. Somente entre 22 de janeiro e 19 de março de 2020, os "caçadores de desinformação" da UE listam mais de 110 casos de notícias falsas de origem russa sobre o coronavírus. Os autores e as mensagens são sempre as mesmas – e têm uma longa tradição no sistema russo de interferência no exterior.

Segundo o relatório da UE, a atual campanha de desinformação russa se concentra em uma coisa: uma suposta origem artificial do vírus que seria usado para um propósito político menor. Plataformas como "southfront.org" ou RT e Sputnik são particularmente citadas pela UE como originadoras e multiplicadoras deste tipo de mensagem.

As versões das notícias falsas variam. Algumas falam em "elites secretas" que seriam responsáveis pelo vírus, outras acusam os EUA e a indústria farmacêutica. Mas eles têm uma característica em comum: sugerem que nada é o que parece ou como relatado por governos, as autoridades de saúde e mídia.


A UE avalia que os objetivos por trás disso é criar confusão, enfraquecer a confiança nos governos, na mídia, nas autoridades e no "sistema", criar desconfiança e discórdia entre a UE, os Estados-membros ou os EUA. Bem-vindo ao reino das teorias da conspiração, bem-vindo de volta à propaganda da Guerra Fria!

Não apenas a UE, mas também cientistas como Thomas Rid, da Universidade John Hopkins, notam que a interferência russa quase não mudou desde os dias da Guerra Fria. Na crise atual, isso oferece uma oportunidade para se investigar os mecanismos usados pelo sistema russo de desinformação.

Basicamente, a máquina de propaganda da União Soviética usava três tipos de desinformação: branca, cinza e negra. A "propaganda branca" vinha e vem de canais estatais reconhecidos abertamente, como o Departamento de Estado, comunicados de imprensa ou departamentos de informações de instituições estatais. Exemplos de "propaganda cinza" são a emissora internacional russa RT e o portal de notícias Sputnik, que são meios regulares de mídia, mas são considerados porta-vozes não oficiais.

A "propaganda negra" é, de longe, a mais complicada porque ocorre de forma secreta. Na linguagem russo-soviética, era chamada de "medidas ativas". Idealmente, consistem em informações falsas, semiverdadeiras ou distorcidas, lançadas deliberadamente, sem que a fonte russa da notícia seja visível.

Os organizadores dessas "medidas ativas" eram e são principalmente serviços secretos. Um grande número de recursos é disponibilizado: na era analógica, eram criados editoras, escritórios de informação; jornais, revistas e brochuras eram impressos, distribuídos ou enviados por correio. No entanto, a forma mais refinada era espalhar a desinformação por canais secretos, como "agentes de influência" ou pessoas de contato. Para esse fim, eram recrutadas fontes da mídia ocidental regular, que depois divulgavam informações do modo desejado pela fonte russa.

Na era digital, esse método elaborado e lento de influenciar se tornou menos importante. Em vez disso, por exemplo, a agência de inteligência doméstica russa FSB conta com "fábricas de trolls". Em empresas de fachada, são empregados softwares automatizados de um lado e pessoas, de outro, para "plantar", "curtir", compartilhar e enviar informações e mensagens no amplo universo da internet.

Desinformação como elemento estratégico

Sergei Ivanov, ex-chefe do serviço de desinformação "A" do serviço secreto soviético KGB, descrevia a implementação de tais "medidas ativas" como uma "arte". Porque o conteúdo tem que ser adaptado às situações, público e ao meio. Além disso, a origem soviética tinha que ficar encoberta sob qualquer circunstância. Somente então, as medidas ativas da KGB não poderiam ser reconhecidas à primeira vista como desinformação soviética.

Um objetivo importante era conseguir com que veículos de mídia ou personalidades ocidentais assumissem um ou mais conteúdos da desinformação. Quando isso funcionava, era possível apontar a fonte ocidental como uma suposta origem da notícia. Pois propaganda secreta e aberta eram vistas como uma unidade e se complementavam. Medidas ativas lançavam mão de conteúdo da propaganda cinza e vice-versa. Desse modo, a verdadeira autoria era ocultada, as interações eram criadas, e era integrado um maior número possível de multiplicadores involuntários.

Qual o motivo disso tudo? A complexidade da desinformação soviética e russa mostra quanto o Kremlin está investindo neste tipo de política de informação. Muito antes de os termos "guerra híbrida" ou "guerra da informação" se tornarem conhecidos, as autoridades de Moscou usavam a desinformação como elemento estratégico de sua política externa. E nisso ainda parece valer a lógica extrema da Guerra Fria: já que os interesses da Rússia no mundo sempre são contrários aos dos EUA, da Otan e da UE, todos os meios são justificados para enfraquecer o inimigo, confundi-lo e dividir sua sociedade. Disso, também fazem parte fenómenos apolíticos, como doenças, mesmo que informações incorretas possam custar vidas.

Christopher Nehring (md) | Deutsche Welle

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