segunda-feira, 30 de março de 2020

O toque a finados do neoliberalismo? (1)


Michael Hudson entrevistado por Ellen Brown e Walt McRee

O presente texto resulta de uma entrevista dada por Michael Hudson à advogada e ativista social, Ellen Bronw e a Walt McRee, fundador e dirigente do Public Banking Institute, (instituição não lucrativa), disponível em It's Our Money podcast. Michael Hudson é um dos mais importantes e clarividentes economistas atuais. O interesses das suas afirmações é reforçado pelo facto de que, no que se refere à Reserva Federal dos EUA, à finança e ao neoliberalismo, se aplica ao BCE e ao sistema socioeconómico vigente, ou antes, imposto, na UE.

Walt McRee – A devastação económica global produzida pela especulação originada pelo mercado livre, teve como resultado cidadãos angustiados e espoliados indo para as ruas às centenas de milhares nas cidades de todo o mundo, sendo prosseguida a exploração destrutiva dos recursos do planeta. O culpado é um sistema económico neoliberal envelhecido que produz uma desigualdade social histórica enquanto consolida o poder nas mãos de poucos. O nosso convidado, o conceituado economista Michael Hudson, diz que esse sistema é mais neofeudal do que neoliberal – e que os seus inerentes excessos estão prestes a derrubá-lo. Ellen relata que um exemplo de sua morte pode estar no México, onde o seu novo presidente está a criar novos bancos públicos para ajudar a resolver algumas de desigualdades neoliberais.

Michael Hudson – Há um reconhecimento de que os bancos comerciais se tornaram disfuncionais e que a maioria dos empréstimos dos bancos comerciais são baseados em ativos, inflacionando os preços de imóveis, ações e títulos ou empréstimos para adquirir ou tomar posição em empresas.

A economia de baixo rendimento não foi ajudada pelo sistema financeiro atual. Na cidade de Nova York, são sistematicamente negados vários serviços por agências governamentais federais, governos locais e setor privado, aos residentes de bairros pobres ou comunidades específicas – principalmente negros – uma classe visceralmente odiada pela alta finança. Do topo à base, eles foram muito claros: não iriam emprestar dinheiro para locais com minorias raciais como o Lower East Side. O Chase Manhattan Bank disse-me que o motivo era explicitamente étnico e que eles não queriam lidar com pessoas pobres.

Muitas pessoas nesses bairros costumavam ter bancos de poupança. Havia 135 bancos de poupança mútua na cidade de Nova York com nomes como o Bowery Savings Banks, o Dime Savings Bank, o Immigrant Savings Bank. Como os seus nomes mostram, deveriam servir especificamente os bairros de baixo rendimento. Mas nos anos 80 os bancos comerciais convenceram os bancos de poupança mútua a deixarem-se adquirir. As reservas de capital dos bancos de poupança acabaram por ser saqueadas pela Wall Street. O património dos depositantes foi esbulhado (mantendo os seus depósitos, como garantia). Sheila Bair, ex-presidente da Federal Deposit Insurance Corporation, disse-me que a narrativa de cobertura contada pelos bancos comerciais era que seriam suficientemente grandes e terem mais reservas de capital para concederem empréstimos nos bairros de baixo rendimento. A realidade foi que, em vez disso, simplesmente extraíram receita desses bairros. Grandes partes das maiores cidades da América, de Chicago a Nova York e outras, estão sem bancos devido à transformação de bancos comerciais de prestadores de hipotecas a apenas coletores de receita. Isso deixa como principal recurso nesses bairros os credores do dia do pagamento, que aplicam taxas de juros usurárias. Esses credores tornaram-se novos grandes clientes dos banqueiros de Wall Street, não os pobres que não têm acesso comparável ao crédito.

Além dos bancos de poupança também havia os serviços bancários dos correios. Quando fui trabalhar para a Wall Street na década de 1960, 3% da poupança dos EUA dava-se em poupanças nos correios. A vantagem, é claro, é que os correios estavam em todos os bairros. Então, na verdade, havia um banco comunitário local como bancos de poupança – não como os bancos comunitários de hoje, que são bancos comerciais, emprestando amplamente a especuladores imobiliários para capitalizar apartamentos de aluguer em cooperativas pesadamente hipotecadas, com encargos financeiros muito mais altos. Agora há uma privação de serviços bancários básicos em boa parte da economia, combinada com um sistema bancário comercial cada vez mais disfuncional e predatório.

A questão é: o que acontecerá na próxima vez que houver um colapso bancário? Sheila Bair escreveu após o crash de 2008, que o banco mais corrupto era o Citibank – não apenas corrupto, mas incompetente. Ela queria assumir o controlo. Mas Obama e seu secretário do Tesouro, Tim Geithner, atuaram como lobistas do Citibank desde o início, protegendo-o de ser adquirido.

Mas imagine o que teria acontecido se o Citibank se tornasse um banco público – ou outros bancos que estão prestes a ter património líquido negativo havendo uma queda no mercado de ações e títulos e imóveis. Imagine o que aconteceria se fossem transformados em bancos públicos. Seriam capazes de fornecer o tipo de crédito que o sistema bancário comercial se recusou a fornecer, crédito a negros, hispânicos e pessoas pobres que acabaram de se alinhar no que está a tornar-se uma dupla economia polarizada financeiramente, uma para os ricos e outra para todos os demais.

Walt McRee – O poder desse domínio, é claro, está no cartel bancário. Eles consideram os bancos públicos uma ameaça. Ao que parece eles odeiam qualquer tipo de competição.

Michael Hudson – Claro que são uma ameaça.

Walt McRee – E mesmo quando dizemos que não vamos perseguir os negócios que eles já fazem, porque não estão a emprestar às pequenas, médias empresas e assim por diante, – queremos apenas ocupar-nos das infraestruturas que vocês não querem financiar, mesmo assim resistim. Como seremos capazes de superar isto?

Michael Hudson – Acho que se teria de dizer que é claro que não se retirariam os negócios deles, porque o banco público da comunidade ou o banco do governo não faria empréstimos a grandes empresas ou aquisições especulativas de produtos derivados. Isto não criaria uma sobrecarga disfuncional no crédito e dívida que se vem a expandir desde 1999, quando o governo Clinton mudou as regras bancárias.

O problema é que os grandes bancos comerciais não querem empréstimos do tipo produtivo que os bancos públicos dariam. Por exemplo, a razão pela qual eles não quiseram estender o crédito para o Lower East Side ou o Hudson Yards, no oeste de Nova York, era porque queriam expulsar os seus residentes, fornecendo dinheiro às grandes empresas do imobiliário que demoliram socialmente esses bairros. A política deles é expulsar o maior número possível de locatários ou proprietários de baixo rendimento e substituí-los, aumentando os alugueres de 50 dólares por mês para 5 000 dólares por mês. Foi o que aconteceu no Lower East Side desde que lá morei até hoje.

Há uma luta do setor improdutivo da economia contra as pessoas que desejam usar o crédito de maneira produtiva que na realidade ajuda a economia. Eu acho que é uma luta entre o bem e o mal, pelo menos entre a economia produtiva e improdutiva, entre a economia para as pessoas e a economia para o 1%.

Ellen Brown – Eu pergunto-me, no entanto, se o Fed vai permitir que os bancos entrem em colapso novamente, com o que fizeram no mercado de derivados. Eles podem intervir a qualquer momento para salvar algum. Não sei se o Congresso tem alguma palavra a dizer. O que acha?

Michael Hudson – Acho que está certa. Conversei com Paul Craig Roberts e discutimos se eles podem continuar a manter vivos esses bancos zumbis. Poderão manter a economia zumbi super endividada, viva pela Reserva Federal manipulando os mercados de ações e títulos a prazo para apoiar os preços? Na verdade, o Fed não precisa comprar ações e títulos além dos 4 milhões de milhões que já foram investidos no Quantitative Easing. Pode simplesmente manipular o mercado a prazo. Isso realmente não custa nada até que o grande acidente ocorra. Então, acho que se deve discutir o que o presidente Trump diz ser o boom que ele criou com o mercado de ações a subir. Isso significa que a economia está ficando mais rica? Estaremos bem com os bancos comerciais da forma como funcionam, para não precisarmos de um banco público?

Acho que é preciso expor o facto de que o que aconteceu é uma intervenção artificial do Estado. O que temos, em nome do apoio ao mercado livre dos bancos, não é um mercado livre. É um mercado altamente centralizado para apoiar a riqueza do setor financeiro predatório contra o resto da economia. A riqueza do sector financeiro assume a forma de crédito para a restante economia, extraindo juros e amortizações, ao mesmo tempo que realiza empréstimos simplesmente para aumentar os preços de ativos de imóveis e títulos financeiros, não colocando novos meios de produção que permitiriam criar empregos. Então tem que se ir além da questão dos bancos públicos e examinar o contexto político. Por fim, a maneira de se defender os bancos públicos é mostrar como a economia funciona e como os bancos públicos podem desempenhar um papel positivo na economia, como esta deveria funcionar.

Ellen Brown – Pode explicar-nos o que quis dizer com empréstimos a prazo?

Michael Hudson – Não se trata de empréstimos a prazo, mas de muitas compras. Em relação à média Dow Jones do mercado de ações, eles lançam ordens de compra para todas as suas ações ou as da S&P 500 num mês, numa semana ou qualquer que seja o prazo, pelo valor X – digamos, 2% sobre a cotação de hoje. Bem, quando a equipa de proteção contra quedas emitir uma garantia de compra, o mercado aumentará os preços de oferta dessas ações até ao que o Fed e o Tesouro prometam pagar por elas. Quando os preços sobem, o Fed não precisa comprar essas ações, porque todos tinham previsto que o Fed as compraria até esses 2% de ganho. Portanto, é uma profecia auto-realizável. Estamos lidando com um governo administrado pelos bancos e com o poder dos credores para aumentar artificialmente os preços dos ativos, pelo crédito. Isso mantém vivo um sistema que se apresenta como criador de prosperidade. Mas não cria prosperidade para os 99%. A banca pública visaria a prosperidade para os 99%, não apenas para o 1%.

Ellen Brown – Estou a escrever sobre Andrés Lopez Obrador, presidente do México, que anunciou em janeiro que construirá 2 700 agências de um banco público nos próximos dois anos. Esperam ter 13 mil agências no final, por isso será o maior banco do país. O raciocínio deles é exatamente o que está a dizer, que os bancos faliram e não atenderam os pobres. O seu mandato é ajudar os pobres, e ele não pode fazer isso se não tiverem serviços bancários.

Michael Hudson – Esse banco é nacional?

Ellen Brown – Sim, em todo o país.

Walt McRee – Sabemos que uma fonte monetária pública é uma utilidade pública. A nossa visão é criar uma rede de bancos públicos locais e estaduais. Isso nos leva à visão de que o que realmente precisamos ter como alvo é a Reserva Federal, para transformá-la numa entidade pública. Isto é loucura ou...

Michael Hudson – Acho que a maneira de levar as pessoas a apoiar isso é entenderem como a Reserva Federal foi criada. Há alguns anos, publiquei um artigo numa revista económica indiana (acho que está no meu site), sobre como o Fed foi criado. Houve uma luta da Wall Street liderada por J.P. Morgan. Os Estados Unidos tiveram um banco central federal até 1913 – o Tesouro. Até 1913, o Tesouro fazia tudo o que o Fed começou a fazer. A ideia de criar a Reserva Federal foi tirar poder ao Tesouro. O Tesouro nem sequer ficou autorizado a participar na Administração como proprietário de ações. A ideia era afastar a tomada de decisões de Washington e da política democrática, isolando o sistema financeiro do sistema político democrático, transferindo o controlo para os centros financeiros privados – Wall Street, Chicago e outros distritos da Reserva Federal, que eram os mesmos distritos em que o Tesouro já havia dividido o país. Lembre-se, essas foram as décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial, quando houve uma revolução social-democrata [1] da Europa para os Estados Unidos. Uma ideia condutora era democratizar o sistema bancário.

Wall Street desenvolveu muito rapidamente uma contra-estratégia. E a contra-estratégia foi o Fed. Nós, ambos, pretendemos reverter a contra-revolução montada contra a economia clássica e a social-democracia. A entidade da qual está falando provavelmente estaria sob a égide do Tesouro. A economia seria colocada novamente na direção em que o mundo estava a mover-se antes da Primeira Guerra Mundial, que destruiu esses esforços.

Pode falar-se em nacionalizar o Fed. Eu sei que as pessoas não gostam da palavra nacionalização. Que tal desprivatizar ou desqualificar o Fed? É preciso apresentar o Fed como tendo roubado políticas económicas e financeiras do domínio público. Tornou-se parte do projeto neoliberal que se formou na Áustria na década de 1930. Você está tentando restaurar a visão económica clássica de crédito produtivo versus improdutivo, trabalho produtivo versus improdutivo e dinheiro público em oposição ao dinheiro privado. Essas distinções foram apagadas pela contra-revolução neoliberal censitária.

Não é que você seja radical, essas pessoas é que fizeram uma revolução radical para afastar o sistema financeiro da democracia. Você procura restaurar a visão clássica de democracia, redemocratizando finanças e bancos.

Walt McRee – Quero agradecer-lhe por dizer isso, Michael, porque a privatização da Reserva Federal é muito mais precisa e poderosa. Lembra-se de trocarmos uma frase quando eu disse "engano institucionalizado". Mas digamos que antes disso, Stephanie Kelton entra para lá, ou alguém da Moderna Teoria Monetária (MMT) [2] entra num novo governo antes de desprivatizar o Fed. O MMT tem um lugar para se concretizar ou emergir nesse ambiente?

Michael Hudson – Pode-se deixar os bancos comerciais fazer o que estão fazendo, mas não seria fornecido crédito ao Fed para eles sobrecarregarem a economia com dívida improdutiva. A questão é: se se criar um banco comunitário real num setor bancário público, onde conseguirá o dinheiro para emprestar? Como fornecemos dinheiro para as áreas mais restritas da economia, para realmente financiar investimentos na economia real e necessidades das pessoas, não apenas empréstimos predatórios? O modo como a MMT entra é muito parecido com o plano de Chicago para reservas de 100%. Esses bancos comunitários precisarão de crédito criado pelo Tesouro além dos depósitos que levantam nas suas áreas locais.

Eles precisam de mais dinheiro. A MMT concede crédito a esses bancos em troca das origens dos valores de caráter produtivo, em condições que os mutuários possam pagar, com hipotecas realistas, mesmo para construir habitações. O novo Fed de que estamos a falar será um dos principais depositantes e será o provedor dos depósitos e reservas de capital aos bancos. De momento, forneceu 4 milhões de milhões em crédito Quantitative Easing aos bancos, não para investir na economia, mas apenas para inflacionar o mercado de ações e títulos e tornar a habitação mais cara. Não seria muito melhor conceder crédito aos bancos comunitários que realmente disponibilizariam crédito para fins económicos produtivos – e não empréstimos para aquisição de empresas, ações e especulação de ativos?

Crédito produtivo era o que todos esperavam que os bancos desenvolvessem no final do século XIX. A Alemanha e a Europa Central estavam a liderar o caminho. Foi chamado de sistema bancário europeu, em oposição ao bancário anglo-americano. (Discuto esse contraste em Killing the Host ). Isto foi essencialmente feito seguindo o modelo clássico, tal como todos esperavam que os bancos evoluíssem antes da Primeira Guerra Mundial.

Ellen Brown – Foi sobre isso que escrevi no meu último livro. O Fed é onde se deve obter crédito, para que não se precise pedi-lo de outro lugar. As pessoas acham que isso de recompra é artificial. É re-hipotecar. Uma parte possui as garantias à noite, a outra parte durante o dia. Não passa de ilusão parecer que obtiveram algo que realmente não existe. Então, vamos simplesmente reconhecer que todo dinheiro é apenas crédito. E, como diz, se se tem um bom empréstimo, um bom projeto a ser monetizado, esse é o objetivo de um banco. Isso transformará a produtividade futura em algo que se poderá despender no mercado. E o banco central estará aí para fornecer o crédito.

Michael Hudson – Está certo. A minha maneira de descrevê-lo é olhar a história, mostrar que essa não é uma ideia utópica. Foi o que tornou os bancos alemães e da Europa Central muito mais produtivos nas décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial. Portanto, na verdade, temos exemplos históricos de bons serviços bancários versus maus bancos. Mas os predadores, no final, venceram.

Ellen Brown – Bem, em relação a todo esse processo de recompra, um grande problema que temos com os bancos públicos é a exigência de garantia de 110% na Califórnia. Como é que um banco pode fazer empréstimos se tiver que usar os seus depósitos para comprar títulos – algo seguro e com juros baixos para garantir os depósitos? Parece-me que o que os grandes bancos fazem – e acho que poderíamos fazer – é pegar nesses depósitos e comprar títulos federais a 1,5%, e então usar os títulos como garantia no mercado de recompra, onde eles pagam 1,5%. Por outras palavras, eles pagam 1,5% e ganham 1,5%. Eles recebem o dinheiro de graça. Eu acho que nós poderíamos fazer isso também. Ou apenas alguns jogadores estão autorizados a jogar esse jogo e não podemos entrar?

Michael Hudson – Penso que uma das coisas que você e outros progressistas recomendam é que o Fed pare de pagar aos bancos pelos seus depósitos de reserva. Pare de dar-lhes a oferta gratuita. Pode-se dizer: "Somos contra os maiores beneficiários de assistência social do país. Mas esses não são as pessoas em que se pensa. São os bancos da Wall Street. Esses hipócritas querem limitar a Previdência Social para equilibrar o orçamento. Querem limitar os cuidados médicos e os serviços sociais e tornarem-se os únicos beneficiários da assistência social".

(continua)

NT
[1) O que quer que a social-democracia tenha feito ou defendido então (Lenine e Rosa Luxemburgo escreveram sobre isso) nada tem que ver com a social-democracia atual (seja de direita ou dita de esquerda) que defende e pratica o neoliberalismo e apoia o poder da finança privada. Quando muito limita-se a propor medidas cosméticas de propaganda, deixando intocável o essencial.
[2] O MMT é uma teoria macroeconómica que considera que a emissão de moeda deve constituir um monopólio público. O governo deve também usar a política fiscal para alcançar o pleno emprego, criando dinheiro novo para financiar as compras e os investimentos do sector público..

O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/54045.htm . Tradução de DVC.

Este artigo encontra-se em https://resistir.info

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