Miguel Guedes* | Jornal de Notícias
| opinião
Emergência, use mas não abuse. A
primeira concretização (porque outras haverá) do histórico, doloroso mas
necessário segundo estado de excepção da democracia portuguesa é bem revelador
de quanto o Governo dispensava que o presidente da República o tivesse declarado.
A aproximação temerária ao
"lockdown" reflecte as preocupações de um Governo em emergência
preventiva e que espera para ver. De alguma forma, sendo contemplativos, exerce
um princípio de confiança nos portugueses. No reverso da medalha, e como dizia
James Carville, assessor da campanha de Clinton em 1992, "É a economia,
estúpido". Ninguém duvida das boas intenções mas todos nos questionamos
sobre se os recursos e capacidade instalada serão suficientes para fazer face
aos picos de Abril e Maio. É também dessa confiança que a economia precisa.
Precisamos todos de uma certeza que seja suficiente.
Se exceptuarmos um ou outro
discurso de burrice pandémica, o debate na Assembleia da República esteve à
altura do momento de calamidade que vivemos. Sente-se alinhamento, consenso e
uma perspectiva de resposta comum. É o que se espera de quem lidera e decide,
sem negacionismos. O Reino Unido, nos antípodas, persistiu numa política cega
de irresponsabilidade, permitindo a propagação do vírus numa dimensão cuja
gravidade só apreenderemos daqui a algumas semanas. Tratado de arrogância dos
que julgam ser possível pensar só pela nossa cabeça. Agora, encostado à parede
pela percepção do desastre, Boris Johnson liga-se à vertigem e tenta inflectir
caminho. Sente-se o desespero dos cidadãos britânicos, num ensaio sobre a
perplexidade, a questionarem se as medidas e o caminho tomado pelo Governo têm,
pelo menos, alguma base científica. Mas o mais assustador são os números.
Negação da realidade, é isto.
Se fisicamente devemos usar de
distanciamento social, racionalmente devemos fazer precisamente o contrário:
exercer pensamento de proximidade, ensaiar lógicas de reflexão comunitária, não
ceder a experimentalismos negacionistas que nos arrastem para o
exemplo-a-não-seguir. Sendo um dos últimos países europeus a assinalar casos de
infecção, o destino entregou-nos a oportunidade de começar esta corrida no
carro-vassoura. Temos condições para evitar o pelotão da frente dos números de
mortalidade na Europa, caso saibamos olhar para os exemplos de Itália e
Espanha, China e Macau, e aprender com isso. As curvas não mentem e as
injecções à economia também não. Teremos de decidir se os estímulos à economia
são menos para confiar do que os apelos à confiança. A Itália injecta 2% da sua
percentagem do PIB na actividade económica, comparativamente aos 20% de
Espanha. Onde pode ficar Portugal, quando já se percebeu que esta crise não é
igual para todos?
*Músico e jurista
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
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