Na contramão de outros países,
ministro propõe mais “austeridade” para enfrentar pandemia. Privilegia
empresários e oferece migalhas aos 30 milhões de informais. Revogar a EC 95,
que congela gastos públicos por 20 anos, é crucial
Paulo Kliass | Outras Palavras
A obsessão do superministro da
economia com a manutenção da opção austericida é algo que impressiona até mesmo
setores que estavam com ele até anteontem, um pouco antes da eclosão da crise
do coronavírus. Os analistas não sabem se a explicação para esse comportamento
caminha mais pelo lado da psiquiatria ou se esse distúrbio tem origem em sua
formação ortodoxa e na desastrosa vivência no meio do financismo impiedoso.
Enfim, para o que interessa no
artigo de hoje, pouco importa as causas que levam Guedes a externar posições
que só poderiam mesmo emanar de indivíduos propensos a cometer maldades sem o
menor ressentimento. Porém, o que torna o quadro ainda mais grave é que ele não
apenas emite opiniões destrambelhadas e equivocadas. Ele convence o Presidente
da República a torná-las realidade, por meio de atos oficiais. Ou então, ele
mesmo, Paulo Guedes, implementa as diretrizes de aprofundamento do austericídio
radical.
Até poucas semanas atrás, o
arsenal de maldades guedesianas se apresentava sob o rótulo das “reformas
estruturais” e sob o comando aos integrantes de sua equipe para arrocharem cada
vez mais os parafusos perversos da austeridade. O nome sofisticado para tanto
era “austeridade fiscal”, embalado em torno das mentiras a respeito da suposta
falta de recursos do Estado. Já vimos que essa narrativa nada mais fazia senão
oferecer tudo o que o sistema financeiro e as elites dominantes precisavam.
Trata-se de direcionamento de recursos para seus cofres por meio da garantia do
pagamento das despesas financeiras associadas aos juros da dívida pública e a
implementação das políticas de destruição do Estado e de desmonte das políticas
públicas.
Essa era a desculpa, inclusive, a
que recorriam os mais “famosos” especialistas em economia ligados ao sistema
financeiro para manter seu apoio envergonhado ao governo Bolsonaro. O discurso
incluía uma espécie de desconforto com as políticas todas do entorno do
ex-capitão, mas sempre uma defesa ardorosa do Paulo Guedes, pelos bons serviços
no campo da economia. Afinal, na visão desse povo da finança ele seria um
técnico competente, estava privatizando tudo o que podia e não escondia de
ninguém seu desejo obstinado de acabar com os últimos resquícios de algum sonho
de bem-estar social ainda incluído em nossa Constituição.
Terraplanismo e austericídio
Pois 2019 passou e o Pibinho
deixou muita gente frustrada e incomodada. Afinal, o crescimento de mísero 1,1%
colocou Bolsonaro atrás dos dois anos de Michel Temer, com o Ministério da
Fazenda sob o comando de Henrique Meirelles. A verdade é que Paulo Guedes
prometeu muito e entregou quase nada. E, ao que tudo indica, o péssimo
desempenho da economia vai cobrar sua fatura em algum momento logo mais ali na
frente.
As evidências das consequências
graves que seriam trazidas pela emergência do coronavírus foram desde sempre
negadas ou negligenciadas pelo governo. Desde a eclosão do fenômeno na China e
seu alastramento em velocidade acelerada pelo resto do mundo, o fato é que
deveria ter acendido a luz vermelha de nossas autoridades por aqui. Tivemos
todo o tempo para preparar mecanismo mais sérios e eficazes de prevenção de
saúde pública. Porém, juntou-se o negacionismo terraplanista do Presidente da
República com a obsessão austericida de Paulo Guedes. O resultado foi o
imobilismo e a paralisia governamentais ao longo das semanas em que se podia
ter minorado os efeitos graves que estão chegando agora.
Por diversas ocasiões, Bolsonaro
cometeu crimes de responsabilidade. Além de fazer chacota das pesquisas
científicas e das recomendações da Organização Mundial de Saúde e organismos
multilaterais semelhantes, ele se apresenta publicamente abraçando
correligionários quando deveria estar em quarentena. Enquanto eu terminava de
escrever este artigo, já havia 13 pessoas de seu entorno com resultado positivo
para o vírus. E ele ainda acaba por estimular seu séquito a desrespeitar as
orientações do nosso Ministro da Saúde e dos órgãos públicos encarregados de
combater a pandemia aqui dentro.
Frente a tal comportamento
leviano e irresponsável do chefe, Paulo Guedes não se sentiu em nada
pressionado a mudar de forma radical sua orientação de política econômica.
Manteve o rame-rame de exigir do Congresso Nacional a aprovação das
suas propostas de reformas, pois seriam elas a forma de acabar com os efeitos
perversos do coronavírus. Mentira!
Guedes e a passividade
irresponsável
O agravamento da situação tem
levado políticos e especialistas do campo conservador a divergir publicamente
de Paulo Guedes por sua timidez e passividade. O quadro já dramático da crise
social dos últimos cinco anos foi fortemente condimentado pela urgência do
covid-19. E isso tem feito com que figuras como Rodrigo Maia e Monica de Bolle
venham elevando cada vez mais o tom contra o superministro.
O pacote apresentado no início da
semana converteu-se em mais uma oportunidade perdida. Além de tentar alguma
mudança de imagem, Guedes poderia conseguir de alguma maneira se redimir junto
a esse pessoal. Mas nem mesmo isso ele ousou fazer. Trata-se de medidas
requentadas e tímidas, que não se propõem a encarar de frente a gravidade, a
profundidade e a amplitude da crise. Como sempre, Guedes alivia a situação das
empresas. Quando aceita alguma flexibilização em seu rigor fiscal, é para
aliviar a carga tributária do capital e para oferecer benefícios para que suas
perdas não sejam comprometedoras.
Guedes diz que pretende proteger
os “empregos”. Nada mais enganador! Ele elenca medidas de gastos públicos para
as empresas apenas. Nada foi apresentado para solucionar a situação dos mais de
30 milhões de pessoas que estão na informalidade ou no trabalho precário,
intermitente ou “uberizado”. Os valores liberados para o Ministério da Saúde
estão longe de resolver os problemas imediatos, que começarão a explodir na
semana que vem com a inescapável pressão sobre leitos de UTIs em hospitais pelo
Brasil afora e que não existem atualmente.
A aparente falta de seriedade e
amadorismo são, na verdade, a estratégia de ignorar o problema. Afinal,
trata-se de uma invenção da grande imprensa. Coronavírus é um simples resfriado
e não mata ninguém. Quando essas palavras são proferidas pelo Presidente da
República, o espaço para a maldade austericida encontra toda a sua
tranquilidade.
O SUS e a incrível rede de
profissionais envolvidos e comprometidos com a questão da saúde pública estão
aí, a pedir a liberação de recursos para poderem trabalhar. Combater a pandemia
e preparar o terreno para o momento posterior exige muito dinheiro. Felizmente,
o Brasil tem esse recurso. Falta vontade política e orientação para que ele
seja bem aplicado. Ao longo dos anos 1980/1990 conseguimos desenvolver uma
competência e excelência no combate à crise da Aids que são exemplo no mundo
até os dias de hoje.
Revogar a EC 95 e liberar os
recursos
O que estavam fazendo as Forças
Armadas ao longo dessas semanas e não foram orientadas a construir hospitais de
campanha por todo o território nacional para minorar os efeitos da crise que se
aproxima. Elas têm experiência no tema e sua rede de capilaridade podem ser
muito úteis para mais essa missão. Impressiona que um governo com mais generais
em seu primeiro escalão do que na época da ditadura ainda não tenha movido uma
palha nessa linha.
Guedes se recusa a rever seu
dogma fiscalista e pretende manter o rigor do teto de gasto “imexível”. Com
isso, o país não vai conseguir os recursos necessários para a saúde e demais
políticas sociais em situação de emergência. O momento exige de todos que
empunhemos a bandeira pela revogação da EC 95, que congelou os gastos sociais
por 20 anos.
A grande maioria dos países já
adotaram essa mudança de orientação. O momento é de expandir o gasto
governamental para evitar que a tragédia seja ainda mais grave do que como se
apresenta no momento atual. A sociedade tem de vencer essa batalha contra o
dragão da maldade austericida.
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