Carvalho da Silva | Jornal de Notícias
| opinião
As consequências da Covid-19 são
muito mais do que sanitárias. O maior risco que corremos é o de uma infeção
generalizada que leve de arrasto o emprego e o rendimento de imensos
portugueses e por um longo período. É tempo de tratarmos da organização da comunidade,
de impor soluções justas para graves problemas sociais, de tratar da economia
antes que o seu rumo seja entregue, de novo e em absoluto, à finança.
Estamos ainda dominados pelo
ambiente das solidariedades instrumentais, aquelas com que até os neoliberais
concordam e reclamam (em particular do Estado), perante as premências da luta
pela sobrevivência. Mas, tantos milhares de trabalhadores cinicamente "dispensados",
e muitos outros milhares de cidadãos com as suas atividades inviabilizadas,
estão a acentuar as desigualdades, a alargar os caminhos para a pobreza, a
aumentar o exército de mão de obra disponível que alimenta a queda dos salários
e a exploração. No mundo do trabalho está em marcha uma tremenda alteração das
relações de forças que é preciso travar.
Concentremo-nos, pois, nos
principais riscos do momento.
O primeiro é a armadilha de
descurar o emprego e de não o proteger efetivamente, seja qual for o tipo de
contrato de trabalho, assumindo-se a proteção social como a solução. A proteção
social é importante, mas não há ajuda que substitua o salário digno adquirido
pelo trabalho, que tem também um extraordinário potencial criativo no momento
do regresso à vida normal.
A Segurança Social suporta alguns
esforços acrescidos na situação de emergência, mas não nos esqueçamos que o
sistema depende essencialmente da dimensão do emprego e do valor dos salários.
O Estado social - expressão da solidariedade como valor coletivo
institucionalizado que obriga a todos - não sobrevive sem pagamento de
impostos, coisa que os neoliberais rechaçam. Repugna ver grupos empresariais
publicitarem os seus atos solidários, quando têm as suas sedes em paraísos
fiscais para fugirem aos impostos e ampliam os seus lucros pagando mal a
trabalhadores e fornecedores.
O segundo é o de o Governo
sucumbir de novo, como em 2011, ao canto da sereia das "ajudas" da
União Europeia (UE). Elas escondem sempre, nas letras pequeninas dos acordos, a
cobrança a prazo e em duplicado do que supostamente é oferecido. Se ficarmos a
bater palmas, como ontem no final da reunião do Eurogrupo, seremos apanhados na
ratoeira.
O terceiro é a ilusão de que o
crédito é um substituto apropriado de transferências monetárias sem
contrapartidas. Uma explosão do crédito agora prenuncia problemas futuros de
incumprimento que se irão traduzir, a prazo, no acionamento em cadeia das
garantias do Estado aos bancos. Os bancos não são e jamais serão instituições
de solidariedade. Exijamos-lhes que cumpram as suas obrigações e não criemos
outras expectativas.
Pode perguntar-se então o óbvio:
de onde vem o dinheiro para se resolverem os problemas e a quem o entregar? Tem
de vir de onde sempre veio: dos bancos centrais. Mas quem não tem Banco Central
(como Portugal depois do euro) tem um problema complicado para resolver. O
dinheiro tem de chegar aos governos para que estes possam implementar políticas
económicas e sociais e fazê-lo chegar às pessoas.
Um cidadão perde a sua dignidade
quando fica dependente da caridade alheia. O mesmo acontece a um país.
*Investigador e professor
universitário
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