segunda-feira, 27 de julho de 2020

EUA | Uma crise com duas frentes


A crise epidémica e económica, combinada com uma vaga de manifestações populares pela justiça social e racial, gera condições de grande tensão social e política que irão manter-se até ao final das eleições.

André Levy | AbrilAbril | opinião

O combate à epidemia nos EUA tem-se revelado desastroso no último mês e meio. O número de casos vem subindo de forma continua, batendo recordes diários que ultrapassam já os 70 mil, e mais recentemente registando também um aumento no número de mortes, que ultrapassam já um total de 140 mil. Na última semana, o número de mortes per capita nos EUA é dez vezes superior ao da UE. A recente subida tem sido mais pronunciada em estados do Sul, como a Flórida, Texas ou Alabama, onde os governadores (republicanos) demonstraram relutância em impor medidas preventivas, preferindo «reabrir a economia».

A falta de uma estratégia nacional de combate à epidemia continua a fomentar a expansão do surto, a reforçar desigualdades e a permitir o aproveitamento predador das empresas, incluindo a forma como vários estados e o próprio governo federal competem na compra de ventiladores e testes (encarecendo os mesmos). A falta de regulação permite a venda e proliferação de testes de má qualidade. Muitos centros de testes não estavam preparados para o aumento de casos, havendo falta crónica do material e reagentes básicos para realizar os testes, e consequente atraso na realização de testes.

A Casa Branca persiste em desvalorizar a epidemia e as medidas preventivas, colocando-se em notória oposição às recomendações de entidades científicas da sua própria administração e, inclusive, a vários congressistas republicanos que se vêem pressionados pelos seus círculos eleitorais. Trump tem promovido ideias sem fundamento científico (como o uso de hidroxicloroquina), feito pouco de medidas preventivas como o uso de máscara, mas também dirigido uma campanha de ataque contra Anthony Fauci, director do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, e lançado dúvidas injustificadas sobre os dados do Centro para Controlo e Prevenção de Doenças (CDC). Quatro ex-directores do CDC, sob administrações Democratas e Republicanas, alertaram recentemente que nunca um presidente manipulou e politizou a ciência como Trump. A semana passada, houve mesmo tentativa de controlar os números oficiais. A Administração Trump deu ordem aos hospitais para enviaram os dados epidemiológicos para uma base de dados central em Washington, em vez de para o CDC, como é habitual, sendo que vários dados deixaram assim de ser públicos. Tal não só dificulta o trabalho de investigadores e jornalistas, como abre portas à manipulação de dados, algo já praticado por diversas vezes e sistematicamente desmascarado.

Simultaneamente, uma Casa Branca que tem uma relação hostil para com a ciência (e os factos) e uma promiscuidade com as grandes empresas atribuiu já mais de 4 mil milhões de dólares a empresas para o desenvolvimento acelerado de uma vacina, numa operação sem qualquer transparência quanto aos detalhes sobre a escolhas das empresas ou os acordos com elas celebrados. Duas das empresas que receberam fundos, a Moderna Therapeutics e a Novavax, nunca lançaram um produto no mercado. Esta última recebeu 1,6 mil milhões de dólares para produzir 100 milhões de doses no primeiro trimestre de 2021. Tais despesas contrastam com o bloqueio da Casa Branca à proposta do Congresso, apoiada inclusivamente com republicanos, de dar fundos adicionais ao CDC, assim como para realizar testes e rastreio de contactos.

A lógica de La Palice «temos mais casos positivos, porque testamos mais» transformou-se agora no paradoxo «muitos dos casos nem deviam ser casos». Trump substituiu ciência pelo jogo de palavras, a prevenção criteriosa pelo optimismo cego, o foco nos problemas de saúde pública e economia pela preocupação com a sua popularidade e reeleição. A economia, ponto central da sua campanha antes da epidemia, perde também o anterior potencial e o seu fôlego.

À medida que o número de infectados voltou a subir, os estados foram forçados a tomar novas medidas restritivas, medidas que se poderão prolongar durante o Outono e Inverno, havendo indicações que as quebras económicas se vão prolongar. Os economistas vêm abandonando a perspectiva de uma «recuperação em V», alertando para o desaparecimento mais permanente de emprego e empresas, agravado pelo fim, em Julho, das medidas de apoio extraordinário previstas na Lei CARES. Uma expansão dos apoios foi aprovado na generalidade em Maio, mas está ainda sob discussão no Congresso, sendo incerto quais as medidas que possam ser aprovadas no Senado, onde os Republicanos detêm a maioria.

O número de desempregados subiu drasticamente no início do ano (ver caixa), superando os 40 milhões em Abril (ver caixa). Apesar de alguma recuperação em Maio e Junho, alimentado pela reabertura em alguns estados, em meados de Julho mais de 14 milhões ainda recebiam subsídio de desemprego vindo do programa especial de apoio, que deverá terminar no final de Julho. Aos exército de desempregados somam-se os 4 milhões de trabalhadores que sofreram cortes nos salários e os mais de 6 milhões forçados a trabalhar a tempo parcial. Um estudo indica que houve uma redução média de salários na ordem dos 10%. A resposta dos trabalhadores têm-se sentido, com cerca de 900 greves por todo o país desde o início de Março, sendo mais de 600 desde o início de Junho.

O final de Julho vai também marcar o fim de protecção contra despejos. Dos 120 milhões de agregados familiares nos EUA, cerca de 43 milhões são arrendatários. Quase metade destes (47%) gastam mais de 30% do seu rendimento em renda, e 23% gastam mais de 50% do seu rendimento (números anteriores à actual crise). A probabilidade de uma destas famílias ter sido afectada pela recente vaga de desemprego foi o dobro da família arrendatária média. Segundo um estudo, tal implica que quase 7 milhões de famílias possam vir a enfrentar despejo em Agosto. Um outro estudo indica que 20 milhões de pessoas (um quinto da população) está em risco de despejo até finais de Setembro.

A má gestão por parte da Presidência e as consequências para a saúde pública têm tido reflexos negativos na popularidade de Trump – 60% reprovam a forma como Trump tem gerido a epidemia – e nas sondagens para as eleições de Novembro. O esperado candidato do Partido Democrata, o ex-vice-presidente Joe Biden, apresenta vantagens consistentes não só nas sondagens nacionais, como em vários estados críticos para obter a maioria no Colégio Eleitoral, estados como Florida, Pensilvânia, Michigan e Virgínia. E outros estados, como o Texas e Ohio, encontram-se em aberto. Mas, após a surpresa de 2016, os oponentes de Trump guardam um optimismo hesitante. Face à maré negativa, o discurso do presidente – manifesto no comício de Tulsa a 20 de Junho, frente a Monte Rushmore a 3 de Julho, e na «conferência de imprensa» no Rose Garden a 14 de Julho – revela um Trump cada vez mais divisivo, hostil e alienado dos verdadeiros desafios que o país enfrenta.

As eleições de Novembro – para a presidência, mas também para as duas câmaras do Congresso, e inúmeros cargos estaduais e locais – deverá ser marcada por um aumento do recurso ao voto por correspondência, como aliás já se vem verificando nos últimos meses em eleições primárias ou em algumas eleições extraordinárias. Nestas eleições, a relutância em facilitar o voto por correspondência resultou na supressão de locais de voto (por falta de quem os opere, geralmente voluntários de idade mais avançada) e em filas de espera longas e demoradas, promovendo a taxa de abstenção. A relutância em alargar o voto por correspondência é apenas mais um instrumento num historial diversificado de exclusão e supressão de eleitores, em particular eleitores das classes mais desfavorecidas e das minorias.

Em 2016 já um quarto dos eleitores votou por correspondência, e em alguns estados a votação é feita exclusivamente por correspondência. Mas apesar de inúmeros estudos terem demonstrado que a incidência de fraude neste contexto é rara (um estudo indica abaixo de 0,0009%), e do próprio Presidente e Vice-presidente terem votado desta forma em 2018, Trump e o seu procurador-geral, Bill Barr, têm sistematicamente atacado esta forma de votação, alegando o perigo de fraude e de intervenção estrangeira, e têm pressionado os Governadores republicanos para não facilitarem o acesso ao voto por correspondência. Com esta campanha, Trump prepara já o terreno para disputar os resultados em Novembro, cujo escrutínio final deverá demorar mais tempo que habitual, devido ao aumento de votos por correspondência. Mantendo-se as actuais previsões, a margem de Biden poderá ser suficientemente dilatada para que não se venham a repetir as recontagens automáticas e contestações judiciais que em 2000 fizeram tardar em 36 dias o resultado final. De qualquer forma, na entrevista com Chris Wallace, Trump já deixou em aberto se irá reconhecer os resultados. É por isso particularmente preocupante a forma como nas últimas semanas os agentes federais têm reprimido violentamente manifestações nas ruas de Portland, levando pessoas em veículos não identificados.

O contexto de crise epidémica e económica, combinado com uma vaga de manifestações populares pela justiça social e racial e com um presidente narcísico cujo discurso recrudesce num maniqueísmo manipulador, geram condições de grande tensão social e política que irão durante até pelo menos até ao concluir das eleições.

Imagem: Trabalhadores dos estaleiros navais da Bath Iron Works (General Dynamics), há mais de um mês em greve, gritam palavras de ordem durante um comício sindical realizado em Bath, Maine, EUA, a 25 de Julho de 2020. A esmagadora maioria dos 4300 trabalhadores rejeitou, a 22 de Junho passado, a proposta de contrato patronal e decidiu avançar para a greve, num dos mais antigos centros da indústria naval do país. // Robert F. Bukaty / AP Photo

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