André Levy | AbrilAbril | opinião
O
combate à epidemia nos EUA tem-se revelado desastroso no último mês e meio. O
número de casos vem subindo de forma continua, batendo recordes diários que
ultrapassam já os 70 mil, e mais recentemente registando também um aumento no
número de mortes, que ultrapassam já um total de 140 mil. Na última semana, o número de mortes per capita nos EUA é dez vezes superior ao
da UE. A recente subida tem sido mais pronunciada em estados do Sul, como a
Flórida, Texas ou Alabama, onde os governadores (republicanos) demonstraram
relutância em impor medidas preventivas, preferindo «reabrir a economia».
A
falta de uma estratégia nacional de combate à epidemia continua a fomentar a
expansão do surto, a reforçar desigualdades e a permitir o aproveitamento
predador das empresas, incluindo a forma como vários estados e o próprio
governo federal competem na compra de ventiladores e testes (encarecendo os
mesmos). A falta de regulação permite a venda e proliferação de testes de má
qualidade. Muitos centros de testes não estavam preparados para o aumento de
casos, havendo falta crónica do material e reagentes básicos para realizar os
testes, e consequente atraso na realização de testes.
A Casa Branca persiste em desvalorizar a epidemia e as medidas preventivas, colocando-se em notória oposição às recomendações de entidades científicas da sua própria administração e, inclusive, a vários congressistas republicanos que se vêem pressionados pelos seus círculos eleitorais. Trump tem promovido ideias sem fundamento científico (como o uso de hidroxicloroquina), feito pouco de medidas preventivas como o uso de máscara, mas também dirigido uma campanha de ataque contra Anthony Fauci, director do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, e lançado dúvidas injustificadas sobre os dados do Centro para Controlo e Prevenção de Doenças (CDC). Quatro ex-directores do CDC, sob administrações Democratas e Republicanas, alertaram recentemente que nunca um presidente manipulou e politizou a ciência como Trump. A semana passada, houve mesmo tentativa de controlar os números oficiais. A Administração Trump deu ordem aos hospitais para enviaram os dados epidemiológicos para uma base de dados central em Washington, em vez de para o CDC, como é habitual, sendo que vários dados deixaram assim de ser públicos. Tal não só dificulta o trabalho de investigadores e jornalistas, como abre portas à manipulação de dados, algo já praticado por diversas vezes e sistematicamente desmascarado.
Simultaneamente,
uma Casa Branca que tem uma relação hostil para com a ciência (e os factos) e uma promiscuidade com as grandes empresas atribuiu já mais de 4
mil milhões de dólares a empresas para o desenvolvimento acelerado de uma
vacina, numa operação sem qualquer transparência quanto aos detalhes sobre
a escolhas das empresas ou os acordos com elas celebrados. Duas das empresas
que receberam fundos, a Moderna Therapeutics e a Novavax, nunca lançaram um
produto no mercado. Esta última recebeu 1,6 mil milhões de dólares para
produzir 100 milhões de doses no primeiro trimestre de 2021. Tais despesas
contrastam com o bloqueio da Casa Branca à proposta do Congresso, apoiada
inclusivamente com republicanos, de dar fundos adicionais ao CDC, assim como
para realizar testes e rastreio de contactos.
A
lógica de
À medida que o número de infectados voltou a subir, os estados foram forçados a tomar novas medidas restritivas, medidas que se poderão prolongar durante o Outono e Inverno, havendo indicações que as quebras económicas se vão prolongar. Os economistas vêm abandonando a perspectiva de uma «recuperação em V», alertando para o desaparecimento mais permanente de emprego e empresas, agravado pelo fim, em Julho, das medidas de apoio extraordinário previstas na Lei CARES. Uma expansão dos apoios foi aprovado na generalidade em Maio, mas está ainda sob discussão no Congresso, sendo incerto quais as medidas que possam ser aprovadas no Senado, onde os Republicanos detêm a maioria.
O
número de desempregados subiu drasticamente no início do ano (ver caixa),
superando os 40 milhões em Abril (ver caixa). Apesar de alguma recuperação em
Maio e Junho, alimentado pela reabertura em alguns estados, em meados de Julho
mais de 14 milhões ainda recebiam subsídio de desemprego vindo do programa
especial de apoio, que deverá terminar no final de Julho. Aos exército de
desempregados somam-se os 4 milhões de trabalhadores que sofreram cortes nos
salários e os mais de 6 milhões forçados a trabalhar a tempo parcial. Um
estudo indica que houve uma redução média de salários na ordem dos 10%.
A resposta dos trabalhadores têm-se sentido, com cerca de 900 greves por todo o país desde o início de
Março, sendo mais de 600 desde o início de Junho.
O
final de Julho vai também marcar o fim de protecção contra despejos. Dos 120
milhões de agregados familiares nos EUA, cerca de 43 milhões são arrendatários.
Quase metade destes (47%) gastam mais de 30% do seu rendimento em renda, e 23%
gastam mais de 50% do seu rendimento (números anteriores à actual crise). A
probabilidade de uma destas famílias ter sido afectada pela recente vaga de
desemprego foi o dobro da família arrendatária média. Segundo um estudo, tal implica que quase 7 milhões de
famílias possam vir a enfrentar despejo em Agosto. Um outro estudo indica que 20 milhões de pessoas (um
quinto da população) está em risco de despejo até finais de Setembro.
A
má gestão por parte da Presidência e as consequências para a saúde pública têm
tido reflexos negativos na popularidade de Trump – 60% reprovam a forma como Trump tem gerido a epidemia –
e nas sondagens para as eleições de Novembro. O esperado
candidato do Partido Democrata, o ex-vice-presidente Joe Biden, apresenta
vantagens consistentes não só nas sondagens nacionais, como em vários estados
críticos para obter a maioria no Colégio Eleitoral, estados como Florida,
Pensilvânia, Michigan e Virgínia. E outros estados, como o Texas e Ohio,
encontram-se
As
eleições de Novembro – para a presidência, mas também para as duas câmaras do
Congresso, e inúmeros cargos estaduais e locais – deverá ser marcada por um
aumento do recurso ao voto por correspondência, como aliás já se vem
verificando nos últimos meses em eleições primárias ou em algumas eleições
extraordinárias. Nestas eleições, a relutância em facilitar o voto por
correspondência resultou na supressão de locais de voto (por falta de quem os
opere, geralmente voluntários de idade mais avançada) e em filas de espera
longas e demoradas, promovendo a taxa de abstenção. A relutância em alargar o
voto por correspondência é apenas mais um instrumento num historial
diversificado de exclusão e supressão de eleitores, em particular eleitores das
classes mais desfavorecidas e das minorias.
Em
2016 já um quarto dos eleitores votou por correspondência, e em alguns estados
a votação é feita exclusivamente por correspondência. Mas apesar
de inúmeros estudos terem demonstrado que a incidência de fraude neste
contexto é rara (um estudo indica abaixo de 0,0009%), e do próprio
Presidente e Vice-presidente terem votado desta forma em 2018, Trump e o seu
procurador-geral, Bill Barr, têm sistematicamente atacado esta forma de votação,
alegando o perigo de fraude e de intervenção estrangeira, e têm pressionado os
Governadores republicanos para não facilitarem o acesso ao voto por
correspondência. Com esta campanha, Trump prepara já o terreno para disputar os
resultados em Novembro, cujo escrutínio final deverá demorar mais tempo que
habitual, devido ao aumento de votos por correspondência. Mantendo-se as
actuais previsões, a margem de Biden poderá ser suficientemente dilatada para
que não se venham a repetir as recontagens automáticas e contestações judiciais
que em 2000 fizeram tardar em 36 dias o resultado final. De qualquer forma, na entrevista com Chris Wallace, Trump já deixou em aberto
se irá reconhecer os resultados. É por isso particularmente preocupante a forma
como nas últimas semanas os agentes federais têm reprimido violentamente manifestações
nas ruas de Portland, levando pessoas em veículos não identificados.
O
contexto de crise epidémica e económica, combinado com uma vaga de
manifestações populares pela justiça social e racial e com um presidente
narcísico cujo discurso recrudesce num maniqueísmo manipulador, geram condições
de grande tensão social e política que irão durante até pelo menos até ao
concluir das eleições.
Imagem:
Trabalhadores dos estaleiros navais da Bath Iron Works (General Dynamics), há
mais de um mês em greve, gritam palavras de ordem durante um comício sindical
realizado em Bath, Maine, EUA, a 25 de Julho de
Leia
em AbrilAbril:
O golpe na Bolívia e a luta do povo de Uyuni para salvar o lítio
Após acosso a voo civil, Irão agirá legalmente contra «acto de terrorismo» dos EUA
Sem comentários:
Enviar um comentário