terça-feira, 28 de julho de 2020

Covid: a saída nas mãos de indústrias sem ética



#Escrito e publicado em português do Brasil

Em meio à pandemia, cresce a ansiedade por uma resposta da Ciência. Pode ser ilusão. Fraudes, subornos e sabotagens mostram a pesquisa sequestrada por corporações cuja lógica é o lucro máximo – inclusive às custas da Saúde

Maurício Abdalla* | Outras Palavras

Ciência, poder e mercado

No século XVII, o desejo por uma sociedade regida pelas leis do mercado compunha o ideal revolucionário da burguesia europeia, cujo poder vinha crescendo cada vez mais no interior do sistema feudal em crise. Acreditava-se que as relações sociais guiadas unicamente pelas regras mercantis possuíam um potencial libertário, capaz de construir o reino da liberdade em contraposição ao domínio fundado na hierarquia social.

Para que esse desejo se tornasse realizável, era preciso substituir a cosmovisão naturalista baseada na física e metafísica aristotélicas, que sustentava a ordem feudal no plano intelectual, por um saber que reproduzisse na subjetividade social as relações de mercado que já se estabeleciam objetivamente na história. O estudo do mundo por meio da nova filosofia natural cultivada na Renascença possuía um caráter de ruptura com toda a tradição de conhecimento (amparada no aristotelismo cristão) que naturalizava e dava suporte teórico às relações feudais. O nexo entre conhecimento e poder caracterizava-se, naquela época, por esse contexto socioeconômico.

O desenvolvimento da ciência moderna, em suas origens, estava profundamente relacionado à ideia de um conhecimento libertador, em contraposição ao saber submetido aos interesses das castas feudais dominantes. Enquanto o apego à física aristotélica relacionava-se à postura conservadora, refratária às mudanças na ordem social e econômica, a defesa de uma nova filosofia natural (que hoje chamamos de ciência) compunha o ideal revolucionário, que em alguns países, como a Inglaterra, já estava em vias de concretização.

Foi nesse contexto que o filósofo inglês Francis Bacon, considerado o “profeta da ciência moderna”, vislumbrou na ciência um instrumento para um novo poder. “Conhecimento e poder humano são sinônimos”, escreveu o filósofo no terceiro aforismo de sua obra Novum Organum, de 1620, acrescentando, no aforismo 129, que “Agora o império do homem sobre as coisas está fundado unicamente nas artes e na ciência, pois a natureza só é dominada obedecendo-a”.1

A tese baconiana de que o poder decorre do saber e de que a ciência e sua aplicação são os fundamentos últimos e únicos do domínio humano sobre o mundo passou a compor a concepção moderna de ciência. O saber científico ainda tem sido visto como a luz que deve guiar os seres humanos em suas decisões cotidianas (individuais e sociais), como vislumbrado por Bacon em sua utopia da Nova Atlântida.2

Bacon acreditava em uma ciência sem sujeito. Para ele, a verdadeira ciência seria aquela na qual todos os elementos subjetivos do pesquisador, relacionados à vida social e econômica, interesses, concepções, crenças, linguagem etc. – que ele chamou de ídolos – seriam eliminados para dar lugar à fala neutra e direta da natureza. Seus agentes seriam capazes de se purificar totalmente dos ídolos e de usar um método infalível baseado na observação e indução. Do esforço desse grupo quase sacerdotal de pessoas purificadas e livres das influências do contexto socioeconômico e cultural adviriam as verdades naturais às quais o poder deveria submeter-se.

A visão baconiana ainda compõe a ideia popular sobre a ciência. A sociedade ainda a concebe como o resultado da prática de cientistas desinteressados e sem vida social – representados na imagem mítica do “cientista louco” de cabelos desgrenhados –, que realizam seus trabalhos em laboratórios próprios ou em universidades livres, sem financiamento ou direcionamento de resultados. O poder do qual gozam as decisões supostamente embasadas na ciência e o controle que todo discurso cientificamente construído exerce sobre nossas vidas amparam-se nessa visão idílica sobre a prática científica.

Entretanto, no mundo real, a história revelou-se bem diferente. Tão logo as regras do mercado e a classe social que as manipulam tornaram-se hegemônicas na sociedade ocidental, a ciência foi perdendo sua característica de conhecimento desbravador da natureza e de saber vinculado a um ideal libertário de poder para reduzir-se a força produtiva, capaz de multiplicar os lucros das empresas e ampliar a capacidade da indústria para transformar os elementos naturais em produtos comercializáveis.

Embora a ciência teórica ainda guarde a dimensão original do saber científico como forma de conhecimento sobre a natureza – e talvez por isso seja cada vez mais desprestigiada –, a ciência aplicada e sua conversão em tecnologia confundiu-se com o próprio conceito de ciência.

O ideal baconiano revelou-se um mito tanto pelas razões teóricas trazidas pela filosofia da ciência do século XX, quanto pelo desenvolvimento real do mundo. O que podemos afirmar, afastados do contexto em que Bacon elaborou suas ideias, é que não existe saber sem sujeito e não há sujeito que não seja determinado pelas relações socioeconômicas e culturais que o envolvem. Tampouco existe ciência fora de um contexto socioeconômico, sem local ou recursos, nem laboratórios que não demandem volumosos investimentos financeiros para custear os gastos que a ciência avançada necessita para sua consecução.

Sabemos também que as relações reais de poder no capitalismo são determinadas pelo dinheiro. Consequentemente, uma vez que os possuidores do dinheiro são os que detêm o poder real no mundo capitalista, o saber da ciência, principalmente em sua dimensão pragmática, revelou-se profundamente dependente do poder econômico. Mesmo quando pensamos em investimentos públicos em pesquisa, devemos ter em mente o controle que as grandes corporações privadas exercem cada vez mais sobre a gestão dos Estados e de seus orçamentos – o que nos leva à conclusão sobre a primazia do poder sobre o saber.

Atualmente, não há investimento em ciência sem interesses mercantis. Os casos de bilionários que doam recursos à ciência por meio de suas instituições sociais são exceções, muito pouco frequentes para serem usadas como contraexemplo à ideia da relação entre o financiamento da ciência e os interesses do mercado. Ademais, a ciência que se faz com as doações de fundações também se insere em um conjunto de outros interesses que envolvem cientistas e instituições que recebem esses recursos.

No mundo real, portanto, ao contrário da tese baconiana, o saber é decorrente do poder, justamente pelo fato de que a dimensão pragmática da ciência necessita de recursos e, ao mesmo tempo, seus resultados são direcionados e apropriados pelos interesses mercantis que os financiam.

Poderíamos exemplificar as afirmações acima com incontáveis exemplos. Por razões de brevidade, tomemos apenas o caso conhecido como o “affair Séralini” como ilustração mais recente. Ao refletir sobre esse episódio de intervenção direta da indústria de biotecnologia na prática, conclusões e publicações científicas, Fagan, Traavik & Bøhn afirmam:

Ao contribuir para o avanço do bem estar da humanidade, a ciência tem sido a galinha que pôs muitos ovos de ouro de grande proveito para o setor empresarial. Porém, quando os resultados das pesquisas não estão em sintonia com as prioridades comerciais de curto prazo, não parece hav­er qualquer hesitação para tentarem interferir nos processos científicos e manipulá-los. 3

As regras do mercado são fundadas na maximização dos lucros e na quantificação de toda a realidade. Os mecanismos reais que possibilitam a obtenção de lucro (comércio, indústria, serviços, atividade bancária, agricultura, pecuária etc.) são apenas meios necessários para a obtenção de um único o fim: a reprodução do capital. Como simples mediações, eles perdem toda sua concreticidade real e se tornam meios abstratos direcionados a resultados monetários. Não há outra ética no julgamento da manipulação dos meios que geram lucro que não seja a que se rege pelo único princípio: se dá lucro é bom, se dá prejuízo é mau. “Bem“ e “mal” tornam-se conceitos subsumidos à ideia geral de mercado como princípio absoluto.

Quando as mediações para a produção de riqueza monetária estão diretamente relacionadas ao equilíbrio da natureza e à saúde e sobrevivência do ser humano, as consequências da utilização da ciência na prática industrial pautada apenas na ética do mercado são enormes. Pois, quando a natureza e o mundo microbiológico são transformados em meios abstratos quantitativamente concebidos em sua potencialidade comercial, os diversos efeitos concretos de sua manipulação não entram nos cálculos e planejamento de metas das corporações. Importa apenas o seu potencial de geração de lucros para os acionistas anônimos – para os quais pouco importa o que realmente fazem as empresas nas quais investem: elas são apenas números e gráficos no mercado de ações.

É justamente nesse campo que se insere a reflexão mais importante sobre a ciência como força produtiva e seu papel no desenvolvimento da sociedade.

As ciências biológicas e a indústria de biotecnologia

O papel fundamental das ciências biológicas como força produtiva começa com o nascimento da engenharia genética na década de 1970, técnica que já surgiu rodeada de controvérsias e preocupações. A engenharia genética consiste na utilização de enzimas obtidas de bactérias que são capazes de cortar em pedaços os ácidos nucleicos (DNA ou RNA) em locais específicos que têm a tendência a unir-se novamente. Trata-se de uma técnica que manipula em laboratório um fenômeno que já existe na natureza. Porém, no mundo natural os processos ocorrem no tempo evolutivo e regulado por um sistema complexo de inter-relações e autorregulação.

O uso dessas enzimas torna possível inserir pedaços de DNA ou RNA diferentes no material genético de vírus e bactérias ou nos elementos genéticos móveis que fazem parte do genoma de animais e plantas. Esses hospedeiros são todos capazes ou de infectar as células e multiplicarem-se dentro dela, ou de insertarem-se em seus genomas e replicar-se junto com a célula receptora. O resultado são organismos modificados geneticamente, cuja nova forma não existia na natureza. 4

Segundo Sandín, os próprios cientistas envolvidos na aplicação da engenharia genética alarmaram-se diante de suas possíveis implicações. Eles vislumbraram a possibilidade de que um erro, ou mesmo uma ação deliberada, pudesse fazer surgir novos vírus e bactérias com alto poder de contágio, capazes de provocar doenças desconhecidas. Por isso, em 1974, os pesquisadores pioneiros nesse campo concordaram em postergar voluntariamente vários tipos de experimentos que poderiam ser arriscados.

Naquela época, os conhecimentos sobre genética molecular eram incipientes, mas já se tinha consciência de que os microrganismos utilizados como hospedeiros do DNA ou RNA modificados (recombinados) poderiam tornar-se patógenos incontroláveis, com poder de causar pandemias para as quais não estaríamos preparados.

Diversos debates entre os maiores especialistas acompanharam o desenvolvimento da engenharia genética. Mas, ao mesmo tempo, a utilização da técnica abria uma ampla possibilidade de manipulação e modificação da natureza para fins comerciais e logo foi apropriada pelas indústrias que atuavam nos setores de agricultura e saúde.

Os riscos da utilização da ciência (principalmente as ciências da vida) para fins comerciais não são desconhecidos. Em junho de 1999 realizou-se em Budapeste a “Conferência Mundial sobre a Ciência”, organizada conjuntamente pela UNESCO e o Conselho Internacional para a Ciência, cujos participantes, em número de mais de dois mil, redigiram um manifesto intitulado Declaração sobre a ciência e a utilização do conhecimento científico. A declaração afirma que

Algumas aplicações da ciência podem ser prejudiciais para indivíduos e sociedade, para o meio ambiente e para a saúde humana, podendo até ameaçar a continuidade da existência da espécie humana. Os cientistas […] têm uma responsabilidade especial em procurar evitar as aplicações da ciência que sejam eticamente erradas ou possuam efeitos adversos.5

Porém, o apelo “aos cientistas” é insuficiente. Não são “os cientistas” que atualmente tomam as decisões sobre o que irão pesquisar, mas sim as empresas que os contratam ou que financiam as pesquisas em universidades e institutos. Claro que se houvesse por parte dos cientistas uma corajosa atitude de negação aos comandos da indústria, as aplicações da ciência que trazem “efeitos adversos” não seriam realizadas. No entanto, parece que a maioria está mais preocupada com seus salários ou com as verbas para seus laboratórios e institutos do que com os possíveis resultados da apropriação de seu trabalho pela indústria. Isso pode ser resultado tanto de uma cumplicidade consciente com o sequestro da ciência pelas corporações privadas ou simplesmente de uma consciência ingênua produzida pela falta de formação filosófica e sociológica dos cientistas naturais.

O domínio da engenharia genética permitiu um crescimento vertiginoso da indústria de biotecnologia. Hoje, as corporações cujos lucros dependem de conhecimentos científicos e experimentos nessa área tornaram-se gigantes transnacionais e figuram entre as empresas mais lucrativas do planeta. Entre as 100 maiores corporações mundiais, de todos os setores, que figuram no ranking da revista Forbes encontramos sete empresas classificadas no ramo de “fármacos e biotecnologia” (drugs and biotechnogy): Johnson & Johnson (34ª posição geral), Pfizer (49ª posição), Cigna CI (63ª posição), Novartis (68ª posição), Roche Holding (74ª posição), Merck & Co. (92ª posição) e GlaxoSmithKline (97ª posição).6

Juntas, as sete representantes do setor de fármacos e biotecnologia da lista da Forbes geraram US$ 158 bilhões em lucros em 2019 e valiam US$ 4,1 trilhões.7 As previsões são de um crescimento maior em virtude da pandemia da Covid-19, ao mesmo tempo em que gigantes de outros setores, como as petrolíferas, encontram-se diante de perspectivas de queda brusca em seus valores de mercado e na sua capacidade de gerar lucros.8

A pandemia da Covid-19 e o crescimento da indústria de biotecnologia durante e por causa dela nos alertam para a necessidade de duas reflexões que podem nos ajudar a pensar as políticas públicas de agricultura, saúde e meio ambiente e o papel da ciência no mundo pós-pandêmico. Uma diz respeito à possível reconfiguração da hegemonia das grandes corporações mundiais e de sua forma de interferirem na gestão dos Estados-nacionais e seus orçamentos. A outra é sobre as consequências da submissão da ciência aos interesses comerciais de indústrias gigantes, cujos lucros estão diretamente relacionados a pesquisas e experimentos no campo da saúde e de processos naturais moldados por bilhões de anos de evolução.

A pandemia de 2020 e o papel do setor de fármacos e biotecnologia na hegemonia global do capital

No capitalismo atual, a hegemonia global é exercida pelo setor financeiro, em um período chamado por Ladislau Dowbor de A era do capital improdutivo.9 Porém, o setor produtivo, liderado pelas corporações do setor de petróleo e gás, ainda ocupa papel de destaque na definição dos rumos da política e economia globais.

A capacidade de interferência das indústrias petrolíferas na política mundial, nas economias nacionais e na vida social é bastante conhecida. Elas interferem na gestão das riquezas naturais nacionais por meio do controle da política, determinam legislações, promovem guerras genocidas, impedem acordos internacionais e políticas nacionais para a preservação do meio ambiente, travam uma batalha no campo científico para negar o desequilíbrio climático ou a reponsabilidade da ação humana no aquecimento global etc.

Seu papel no futuro pós-pandêmico começa, porém, a ser questionado por causa das perspectivas de declínio. O crescimento acelerado do setor de fármacos e biotecnologia em função da pandemia da Covid-19 pode levar as indústrias que atuam nesse campo a ocupar o lugar das petrolíferas e exercer o segundo posto da hegemonia no capitalismo global – cuja liderança ainda permanecerá exercida pelo setor financeiro, caso o mundo não mude sua rota.

Embora isso dependa de quão duradoura será a atual pandemia, da possibilidade de novas e piores surgirem ou simplesmente do clima de medo que pode se estabelecer no mundo pós-pandêmico, já se delineia no horizonte uma redefinição do papel do setor de biotecnologia no mercado global.

Nos últimos meses, a situação da pandemia da Covid-19 abalou o mercado de ações, causando oscilações intensas em todos os setores. […]. Entretanto, um setor tem se destacado: o de biotecnologia. Os investidores estão prestando especial atenção às mudanças bruscas das ações das empresas de saúde e biotecnologia. O destino de toda indústria depende, de uma forma ou de outra, do que irá acontecer no setor de biotecnologia. A presente crise global irá acabar cedo ou tarde, mas o que parece certo é que as ações do setor de biotecnologia jamais serão as mesmas. […]. Comparando com muitas indústrias, notamos um relativo poder nos setores de fármacos e biotecnologia no meio à atual instabilidade do mercado.10

A manutenção da posição atual desse setor no mercado mundial e a possível conquista de uma nova colocação na hegemonia global do capital dependem de novas pandemias ou, pelo menos, da ameaça constante de que novas e piores venham a surgir. Se são um excelente negócio para essas empresas, o que impediria que as pandemias se tornassem regras e não exceção? Ou que nossa relação com a saúde, tanto no plano individual como no das políticas públicas, se tornasse totalmente determinada por um clima de temor e constante ameaça, advindo de uma concepção de natureza hostil, rodeada de perigos invisíveis para os quais apenas a indústria de biotecnologia (usando “a ciência” como porta-voz) nos fornece proteção?

Se essas possibilidades podem soar conspiratórias demais para os leitores mais crédulos – que acreditam que a gestão caótica e impessoal das gigantes corporativas admite alguma ética, ou que ainda pensam que a ciência que se realiza em seus laboratórios ou sob seu patrocínio é aquela do ideal idílico de Bacon, feita dentro de compromissos inarredáveis com o conhecimento e o bem estar da humanidade – as informações seguintes podem trazer-nos ao mundo real.

As empresas de fármacos e biotecnologia que figuram entre as 100 maiores corporações mundiais no ranking da Forbes (e outras gigantes que estão em posições mais abaixo)possuem uma extensa história de denúncias e processos de corrupção em diversos países, relacionados à lavagem de dinheiro, suborno a médicos e autoridades públicas, venda de remédios não aprovados por agências de regulação (como a FDA), promoção ilegal de medicamentos, tentativas de proibição de produção de medicamentos genéricos mais baratos pelos países pobres, interferência na concessão do Prêmio Nobel em função de interesses comerciais e até financiamento a grupos terroristas. Não é difícil encontrar nos principais jornais do mundo notícias como as que seguem.

“Johnson & Johnson faz acordo de US$ 70 milhões por denúncia de suborno”11

“União Europeia: Bruxelas acusa Johnson & Johnson e Novartis de atrasar ilegalmente a comercialização de analgésicos genéricos”12

“Roche, GlaxoSmithKlein (GSK) e Pfizer estão entre as farmacêuticas investigadas por corrupção por autoridades romenas”13

“Novartis sob investigação por suborno na Grécia”14

“Novartis pagará US$ 678 milhões em acordo por acusação de suborno a médicos”15

“Johnson & Johnson pagará US$ 2,2 bilhões em caso de fraude”.16

Nesta última matéria informa-se que “As autoridades alegam que a gigante farmacêutica ignorou as advertências da FDA e comercializou o Risperdal para idosos e crianças, enquanto pagava propina para que os médicos o receitassem”.

“Pfizer faz acordo com governo dos EUA no caso de suborno em países estrangeiros”

“Pfizer é multada por uma década de corrupção”17

Conforme esta última: “A Pfizer foi multada em US$ 60 milhões pelas agências reguladoras dos EUA por subornar médicos e funcionários de governos em países do Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio por uma década até 2006”.

“GSK enfrenta acusações de corrupção na Romênia”.18

“GlaxoSmithKline multada em US$ 490 milhões pela China por suborno”.19

“Merck se declara culpada e paga US$ 950 milhões por promoção ilegal do Vioxx”.20

A empresa AstraZeneca, que fechou recentemente um acordo com a Fiocruz para testes de vacina contra o novo coronavírus, não figura na lista das 100 maiores da Forbes de 2020. Ela ocupava o 237º lugar geral quando o ranking foi divulgado. Se considerarmos que o ranqueamento inclui todos os setores da economia e todas as corporações do planeta, sua posição é bastante vantajosa. Mas suas ações aumentaram consideravelmente a partir da declaração da pandemia de 2020 pela OMS e dispararam em função dos anúncios do possível desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus em parceria com a Universidade de Oxford. Em julho de 2020 os valores de suas ações atingiram os maiores índices de toda a história da empresa:

Sobre a AstraZeneca também pesam sérias denúncias de corrupção pelo mundo. Uma delas é sobre interferência na concessão do Prêmio Nobel de 2008 para beneficiar-se do recebimento de pagamentos pela patente na produção da vacina contra o HPV, que pertencia a uma empresa que a AstraZeneca acabara de adquirir. Um dos cientistas agraciados com o Nobel naquele ano, Harald Zur Hauser, recebeu o prêmio pela pesquisa que relacionou o câncer do colo do útero com o vírus HPV. Zur Hauser, investido da autoridade do Nobel, entrou em uma campanha mundial para convencer governos sobre a necessidade de vacinação massiva contra o HPV.

A AstraZeneca patrocina duas empresas da Fundação Nobel, a Nobel Media e a Nobel Web e duas pessoas com relações com a empresa compunham o instituto responsável pela indicação do premiado, sendo uma delas o próprio presidente do comitê. A inclusão da vacina contra o vírus HPV no calendário de vacinação de diversos países rendeu bilhões à empresa.21

Convencer governos a comprar e aplicar vacinas por meio da manipulação de um prêmio que confere a seu ganhador o carimbo máximo de autoridade na ciência não é a única acusação na história da AstraZeneca. Vejamos algumas outras manchetes:

“Investigações do Departamento de Justiça afirmam que a AstraZeneca subornou terroristas iraquianos para ganhar contratos”.22

“AstraZeneca pagará US$ 5,5 milhões por subornar médicos na China e na Rússia”.23

“AstraZeneca é indiciada em caso de corrupção na Sérvia”.24

Para concluir esse brevíssimo resumo (em comparação com a quantidade de notícias sobre as atividades ilegais, ilícitas e antiéticas dessas empresas), prestemos atenção à seguinte matéria do The New York Times:

“Departamento de Justiça investiga alegações de que empresas farmacêuticas financiaram terrorismo no Iraque”.25

As empresas citadas na reportagem são: Johnson & Johnson, Pfizer, Roche e AstraZeneca. Seria exageradamente conspiratório duvidar que empresas com uma ficha tão extensa de ações criminosas e de redução da saúde humana a um mero campo de negócios sem limites éticos hesitariam em lançar mão de qualquer oportunidade para obtenção de lucros? Ou seria, na verdade, um excesso de ingenuidade confiar que sua missão é evitar e combater pandemias e doenças em uma aliança com “a ciência” para o “bem da humanidade”?

Uma redefinição do papel do setor de fármacos e biotecnologia significaria a ampliação do enorme poder que essas corporações já exercem sobre as políticas públicas de agricultura, saúde e meio ambiente e o aumento de sua capacidade de controlar a vida humana no planeta e modificar os ecossistemas.

Ciência e sociedade

O poder das empresas de biotecnologia está amparado tanto no plano objetivo (o volume de capital que detêm em suas mãos), quanto no plano subjetivo, ou seja, na manipulação do conhecimento científico e da utilização da autoridade conquistada pela ciência como justificativa para o controle que exercem.

A crença ainda existente no mito baconiano da neutralidade científica reduz o senso crítico da sociedade em relação ao que as empresas de biotecnologia fazem ao se apropriar da ciência. A interferência da indústria nas revistas científicas, universidades e jornalismo científico cria um obstáculo para o exercício da crítica, pois produz uma falsa identificação dos produtos de uma ciência submetida a interesses comerciais com o próprio conhecimento científico em si mesmo. Consequentemente, a crítica a um pode ser facilmente confundida com a rejeição ao outro.

Por essa razão, não temos dificuldades em acreditar e denunciar que a ganância das mineradoras provocou as tragédias de Mariana e Brumadinho, nem que os interesses das petrolíferas provocaram guerras nas quais morreram centenas de milhares de pessoas pelo mundo. Tampouco hesitamos em atribuir o envenenamento de nossa comida à indústria de alimentos e de pesticidas. Porém, quando se trata do aparecimento de novos vírus e bactérias patógenos ou do lançamento de novas vacinas e medicamentos, há uma tendência de se ver tudo isso como um campo purificado de ação “da ciência”, sem perceber os interesses comerciais das indústrias de fármacos e biotecnologia, cujo poder de controle sobre o fazer científico tem crescido enormemente nas últimas décadas.26

Os setores mais críticos da sociedade e a esquerda de modo geral ainda cultivam a crença da burguesia revolucionária europeia em uma ciência independente como um saber libertador. A manutenção dessa crença como um ideal futuro a ser conquistado é positiva. O problema surge quando se acredita ele foi realizado no mundo capitalista. O momento exige o abandono dessa inocência.

Não se trata de reforçar a crítica obscurantista ao conhecimento científico em si mesmo, mas de sermos críticos com o fazer real da ciência e termos uma concepção menos romântica e mais realista sobre a importância e limites da prática científica. Portanto, não há nenhuma contradição em defender as ciências naturais como uma das maiores conquistas do ser humano no plano do conhecimento e, ao mesmo tempo, compreendê-las como uma prática concreta determinada pela realidade socioeconômica do mundo capitalista.

A maneira como as empresas de biotecnologia vêm manipulando fenômenos naturais, os riscos que isso representa para a humanidade e a forma como sequestraram a prática científica para seus interesses devem ser pautas urgentes para o debate social que procura pensar o mundo pós-pandemia.

A ideia de um controle social público sobre a manipulação da ciência pela indústria não é uma coisa nova, mas a proposta se torna mais urgente no cenário criado pela pandemia atual. Em artigo já mencionado, Fagan et al. questionaram o fato de que a permissão dada por órgãos de controle internacionais para a comercialização de pesticidas e organismos geneticamente modificados pode ser concedida apenas com as evidências e dados fornecidos pelos próprios laboratórios das empresas de biotecnologia ou por laboratórios contratados por elas, que atuam sob sua supervisão.

Para solucionar esse problema, os autores reforçam a proposta de Séralini e outros para a criação de um controle público sobre as pesquisas realizadas pelas empresas:

Para Séralini et al., os conflitos de interesses inerentes a essa situação poderiam ser evitados se essas pesquisas fossem conduzidas por laboratórios independentes. Os autores indicam que as empresas ainda pagam pela pesquisa, em níveis comparáveis aos custos atuais, mas que uma chamada pública para realizar a pesquisa independentemente das empresas que desenvolvem o produto contrataria pesquisadores independentes. Outros sugerem uma abordagem semelhante para avaliar as tecnologias biomédicas.27

No mundo pós-pandêmico, as organizações da sociedade civil e os Estados deverão assumir um papel fundamental no controle da prática científica e do que é feito pelas indústrias que usam a ciência como força produtiva, a fim de que a saúde humana não seja reduzida apenas a um mero fator de impacto nas bolsas de valores mundiais

1 BACON, Francis. Novum Organum. New York: P.F. Collier, 1902. Disponível em: https://oll.libertyfund.org/titles/bacon-novum-organum.

2 BACON, Francis. Novum organum / Nova Atlântida. 3. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os pensadores).

3 FAGAN, J., TRAAVIK, T. & BøHN, T. The Seralini affair: degeneration of Science to Re-Science? Environ Sci Eur 27, 19 (2015). Disponível em https://enveurope.springeropen.com/articles/10.1186/s12302-015-0049-2. Para os que não conhecem o caso Séralini, recomendo fortemente a leitura desse artigo.

4 SANDIN, Máximo. Una nueva biologia para una nueva sociedade. Política y sociedade. Vol. 39 Núm. 3 (2002). Disponível em: http://www.somosbacteriasyvirus.com/nuevasociedad.pdf.

5 UNESCO. “Declaration on science and the use of scientific knowledge”. World Conference on Science. Budapest, 1999. § 20 e 21. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000116994.

6 MURPHY, A.; TUCKER, H; COYNE, M; TOURYALAI, H. “The word’s lagerst public companies”. Forbes. 13/05/2020. Disponível em https://www.forbes.com/global2000/.

7 HANSEN, S. “Global 2000: as maiores empresas de medicamentos e biotecnologia do mundo”. Forbes, 14/05/2020. Disponível em: https://forbes.com.br/listas/2020/05/global-2000-as-maiores-empresas-de-medicamentos-e-biotecnologia-do-mundo/.

8 NAFEEZ, Ahmed. “Preparados para o mundo pós-petróleo?” Outras Palavras. 03/07/2020. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/preparados-para-o-mundo-pos-petroleo.

9 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária; Outras Palavras, 2017.

10 ROJAS, Carlos de. “How Has Coronavirus Affected Europe’s Biotech Stocks?”. Labiotech.Eu. 20/04/2020. Disponível em: https://www.labiotech.eu/medical/biotech-stock-coronavirus. Sobre o impacto da pandemia no crescimento das ações do setor de fármacos e biotecnologia, ver também: RIORDAN, Primrose. “Biotech stock soars on debut as coronavirus fuels investor boom”. Financial Times. 24/04/2020. Disponível em: https://www.ft.com/content/ff9eda04-2d50-4dac-af5f-a8878d6aaa80 e LANDAURO, I.; RAMNARAYAN, A. “Nasdaq’s $1.2 trillion biotech index draws Europe’s COVID drug hunters”. Reuters. 03/06/2020. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-nasdaq-biotech/nasdaqs-1-2-trillion-biotech-index-draws-europes-covid-drug-hunters-idUSKBN24128Z.

11 HARRIS, Gardiner. “Johnson & Johnson settles bribery complaint for $70 million in fines”. The New York Times. 08/04/2011.Disponível em: https://www.nytimes.com/2011/04/09/business/09drug.html

12 EUROPA PRESS. “UE: Bruselas acusa a J&J y Novartis de retrasar ilegalmente la comercialización de analgésicos genéricos”. 31/01/2013. Disponível em: https://www.europapress.es/internacional/noticia-ue-bruselas-acusa-jj-novartis-retrasar-ilegalmente-comercializacion-analgesicos-genericos-20130131135805.html

13 THE PHARMA LETTER. “Roche, GSK, Pfizer among drugmakers being investigated for corruption by Romanian authorities”. 03/08/2015. Disponível em: https://www.thepharmaletter.com/article/roche-gsk-pfizer-among-drugmakers-being-investigated-for-corruption-by-romanian-authorities.

14 PAPADIMITRIOU, J. “Novartis under investigation for bribery in Greece”. Deutche Welle. 22/01/2017. Disponível em: https://p.dw.com/p/2WDMs.

15 FEELEY, J. “Novartis to Pay $678 Million to Settle Doctor-Bribe Claims”. Bloomberg. 1/07/2020. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-07-01/novartis-to-pay-678-million-to-resolve-doctor-kickback-claims.

16 KRANS, Brian. “Johnson & Johnson to Pay $2.2 Billion in Fraud Case”. Helthline. 02/09/2014 Disponível em https://www.healthline.com/health-news/policy-johnson-and-johnson-to-pay-record-settlement-in-suit-110413#1.

17 JACK, Andrew. “Pfizer fined for decade of bribery”. Financial Times. 07/08/2012. Disponível em: https://www.ft.com/content/216d2e3e-e0aa-11e1-b465-00144feab49a

18 HIRSCHELER, Bem. “Exclusive: GSK faces new corruption allegations, this time in Romania”. Reuters. 29/07/2015. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-gsk-romania-corruption-exclusive-idUSKCN0Q32A920150729.

19 BBC NEWS. “GlaxoSmithKline fined $490m by China for bribery”. 19/09/2014. Disponível em: https://www.bbc.com/news/business-29274822.

20 HUSTEN, Larry. “Merck Pleads Guilty and Pays $950 Million for Illegal Promotion of Vioxx”. Forbes. 22/11/2011. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/larryhusten/2011/11/22/merck-pleads-guilty-and-pays-950-million-for-illegal-promotion-of-vioxx/#62f4ccbe20f4

21 CHARTER, D. “AstraZeneca row as corruption claims engulf Nobel prize”. The Times. 19/12/2008. Disponible en: https://www.thetimes.co.uk/article/astrazeneca-row-as-corruption-claims-engulf-nobel-prize-rv8l7mp0cbq.

22 SAGONOWSKY, Eric. “Justice Department probes claims that AstraZeneca bribed Iraqi terrorists to win contracts”. Fierce Pharma. 31/07/2018. Disponível em: https://www.fiercepharma.com/pharma/doj-probes-astrazeneca-over-allegations-corruption-iraq.

23 SILVERMAN, Ed. “AstraZeneca to pay $5.5 million for bribing doctors in China and Russia”. Stat News. 31/08/2016. Disponível em: https://www.statnews.com/pharmalot/2016/08/31/astrazeneca-bribes-china-russia/.

24 JACK, A.; MACDONALD, N; CRABTREE, J. “AstraZeneca indicted in Serbian corruption case”. Finatial Times. 27/10/2011. Disponível em: https://www.ft.com/content/d3589da8-0073-11e1-930b-00144feabdc0

25 HARRIS, Gardner. “Justice Dept. investigating claims that drug companies funded terrorism in Iraq”. The New York Times. 31/07/2018. Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/07/31/us/politics/drug-companies-iraq-terrorism.html.

26 Uma reflexão sobre a relação da indústria de biotecnologia e a origem do novo coronavírus pode ser encontrada em ABDALLA, M; SANDÍN, M. A ciência e a origem do novo coronavírus: um debate necessário. Le Monde Diplomatique. 09/06/2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-ciencia-a-origem-do-novo-coronavirus-um-debate-necessario/

27 FAGAN et al. op. cit.

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MAURÍCIO ABDALLA - Filósofo e doutor em Educação, professor do departamento de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Também é membro da Rede Nacional de Assessores do Centro de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP/CNBB) e do Projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento (ABONG/ISER Assessoria).

TÍTULO ORIGINAL:
A pandemia de 2020, a Ciência e a indústria de Biotecnologia

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