Em meio à pandemia, cresce a ansiedade por uma resposta da Ciência. Pode ser ilusão. Fraudes, subornos e sabotagens mostram a pesquisa sequestrada por corporações cuja lógica é o lucro máximo – inclusive às custas da Saúde
Maurício Abdalla* | Outras Palavras
Ciência,
poder e mercado
No
século XVII, o desejo por uma sociedade regida pelas leis do mercado compunha o
ideal revolucionário da burguesia europeia, cujo poder vinha crescendo cada vez
mais no interior do sistema feudal
Para
que esse desejo se tornasse realizável, era preciso substituir a cosmovisão
naturalista baseada na física e metafísica aristotélicas, que sustentava a
ordem feudal no plano intelectual, por um saber que reproduzisse na
subjetividade social as relações de mercado que já se estabeleciam
objetivamente na história. O estudo do mundo por meio da nova filosofia natural
cultivada na Renascença possuía um caráter de ruptura com toda a tradição de
conhecimento (amparada no aristotelismo cristão) que naturalizava e dava
suporte teórico às relações feudais. O nexo entre conhecimento e poder
caracterizava-se, naquela época, por esse contexto socioeconômico.
O
desenvolvimento da ciência moderna, em suas origens, estava profundamente
relacionado à ideia de um conhecimento libertador, em contraposição ao saber
submetido aos interesses das castas feudais dominantes. Enquanto o apego à
física aristotélica relacionava-se à postura conservadora, refratária às
mudanças na ordem social e econômica, a defesa de uma nova filosofia natural
(que hoje chamamos de ciência) compunha o ideal revolucionário, que em alguns
países, como a Inglaterra, já estava em vias de concretização.
Foi
nesse contexto que o filósofo inglês Francis Bacon, considerado o “profeta da
ciência moderna”, vislumbrou na ciência um instrumento para um novo poder. “Conhecimento
e poder humano são sinônimos”, escreveu o filósofo no terceiro aforismo de sua
obra Novum Organum, de 1620, acrescentando, no aforismo 129, que “Agora o
império do homem sobre as coisas está fundado unicamente nas artes e na
ciência, pois a natureza só é dominada obedecendo-a”.1
A
tese baconiana de que o poder decorre do saber e de que a ciência e sua
aplicação são os fundamentos últimos e únicos do domínio humano sobre o mundo
passou a compor a concepção moderna de ciência. O saber científico ainda tem
sido visto como a luz que deve guiar os seres humanos em suas decisões
cotidianas (individuais e sociais), como vislumbrado por Bacon em sua utopia da Nova
Atlântida.2
Bacon
acreditava em uma ciência sem sujeito. Para ele, a verdadeira ciência seria
aquela na qual todos os elementos subjetivos do pesquisador, relacionados à
vida social e econômica, interesses, concepções, crenças, linguagem etc. – que
ele chamou de ídolos – seriam eliminados para dar lugar à fala neutra
e direta da natureza. Seus agentes seriam capazes de se purificar totalmente
dos ídolos e de usar um método infalível baseado na observação e indução. Do
esforço desse grupo quase sacerdotal de pessoas purificadas e livres das
influências do contexto socioeconômico e cultural adviriam as verdades naturais
às quais o poder deveria submeter-se.
A
visão baconiana ainda compõe a ideia popular sobre a ciência. A sociedade ainda
a concebe como o resultado da prática de cientistas desinteressados e sem vida
social – representados na imagem mítica do “cientista louco” de cabelos
desgrenhados –, que realizam seus trabalhos em laboratórios próprios ou em
universidades livres, sem financiamento ou direcionamento de resultados. O
poder do qual gozam as decisões supostamente embasadas na ciência e o controle
que todo discurso cientificamente construído exerce sobre nossas vidas
amparam-se nessa visão idílica sobre a prática científica.
Entretanto,
no mundo real, a história revelou-se bem diferente. Tão logo as regras do
mercado e a classe social que as manipulam tornaram-se hegemônicas na sociedade
ocidental, a ciência foi perdendo sua característica de conhecimento
desbravador da natureza e de saber vinculado a um ideal libertário de poder
para reduzir-se a força produtiva, capaz de multiplicar os lucros das empresas
e ampliar a capacidade da indústria para transformar os elementos naturais em
produtos comercializáveis.
Embora
a ciência teórica ainda guarde a dimensão original do saber científico como
forma de conhecimento sobre a natureza – e talvez por isso seja cada vez mais
desprestigiada –, a ciência aplicada e sua conversão em tecnologia confundiu-se
com o próprio conceito de ciência.
O
ideal baconiano revelou-se um mito tanto pelas razões teóricas trazidas pela
filosofia da ciência do século XX, quanto pelo desenvolvimento real do
mundo. O que podemos afirmar, afastados do contexto
Sabemos
também que as relações reais de poder no capitalismo são determinadas pelo
dinheiro. Consequentemente, uma vez que os possuidores do dinheiro são os que
detêm o poder real no mundo capitalista, o saber da ciência, principalmente em
sua dimensão pragmática, revelou-se profundamente dependente do poder
econômico. Mesmo quando pensamos em investimentos públicos em pesquisa, devemos
ter em mente o controle que as grandes corporações privadas exercem cada vez
mais sobre a gestão dos Estados e de seus orçamentos – o que nos leva à
conclusão sobre a primazia do poder sobre o saber.
Atualmente,
não há investimento em ciência sem interesses mercantis. Os casos de
bilionários que doam recursos à ciência por meio de suas instituições sociais
são exceções, muito pouco frequentes para serem usadas como contraexemplo à
ideia da relação entre o financiamento da ciência e os interesses do mercado.
Ademais, a ciência que se faz com as doações de fundações também se insere em
um conjunto de outros interesses que envolvem cientistas e instituições que
recebem esses recursos.
No
mundo real, portanto, ao contrário da tese baconiana, o saber é decorrente
do poder, justamente pelo fato de que a dimensão pragmática da ciência necessita
de recursos e, ao mesmo tempo, seus resultados são direcionados e apropriados
pelos interesses mercantis que os financiam.
Poderíamos
exemplificar as afirmações acima com incontáveis exemplos. Por razões de
brevidade, tomemos apenas o caso conhecido como o “affair Séralini” como
ilustração mais recente. Ao refletir sobre esse episódio de intervenção direta
da indústria de biotecnologia na prática, conclusões e publicações científicas,
Fagan, Traavik & Bøhn afirmam:
Ao
contribuir para o avanço do bem estar da humanidade, a ciência tem sido a
galinha que pôs muitos ovos de ouro de grande proveito para o setor
empresarial. Porém, quando os resultados das pesquisas não estão em sintonia
com as prioridades comerciais de curto prazo, não parece haver qualquer
hesitação para tentarem interferir nos processos científicos e manipulá-los. 3
As
regras do mercado são fundadas na maximização dos lucros e na quantificação de
toda a realidade. Os mecanismos reais que possibilitam a obtenção de lucro
(comércio, indústria, serviços, atividade bancária, agricultura, pecuária etc.)
são apenas meios necessários para a obtenção de um único o fim: a reprodução do
capital. Como simples mediações, eles perdem toda sua concreticidade real e se
tornam meios abstratos direcionados a resultados monetários. Não há outra ética
no julgamento da manipulação dos meios que geram lucro que não seja a que se
rege pelo único princípio: se dá lucro é bom, se dá prejuízo é mau. “Bem“
e “mal” tornam-se conceitos subsumidos à ideia geral de mercado como princípio
absoluto.
Quando
as mediações para a produção de riqueza monetária estão diretamente
relacionadas ao equilíbrio da natureza e à saúde e sobrevivência do ser humano,
as consequências da utilização da ciência na prática industrial pautada apenas
na ética do mercado são enormes. Pois, quando a natureza e o mundo
microbiológico são transformados em meios abstratos quantitativamente
concebidos em sua potencialidade comercial, os diversos efeitos concretos de
sua manipulação não entram nos cálculos e planejamento de metas das
corporações. Importa apenas o seu potencial de geração de lucros para os
acionistas anônimos – para os quais pouco importa o que realmente fazem as
empresas nas quais investem: elas são apenas números e gráficos no mercado de
ações.
É justamente nesse campo que se insere a reflexão mais importante sobre a ciência como força produtiva e seu papel no desenvolvimento da sociedade.
As
ciências biológicas e a indústria de biotecnologia
O
papel fundamental das ciências biológicas como força produtiva começa com o
nascimento da engenharia genética na década de 1970, técnica que já surgiu
rodeada de controvérsias e preocupações. A engenharia genética consiste na
utilização de enzimas obtidas de bactérias que são capazes de cortar em pedaços
os ácidos nucleicos (DNA ou RNA) em locais específicos que têm a tendência a
unir-se novamente. Trata-se de uma técnica que manipula em laboratório um
fenômeno que já existe na natureza. Porém, no mundo natural os processos
ocorrem no tempo evolutivo e regulado por um sistema complexo de inter-relações
e autorregulação.
O
uso dessas enzimas torna possível inserir pedaços de DNA ou RNA diferentes no
material genético de vírus e bactérias ou nos elementos genéticos móveis que
fazem parte do genoma de animais e plantas. Esses hospedeiros são todos capazes
ou de infectar as células e multiplicarem-se dentro dela, ou de insertarem-se
em seus genomas e replicar-se junto com a célula receptora. O resultado são
organismos modificados geneticamente, cuja nova forma não existia na natureza. 4
Segundo
Sandín, os próprios cientistas envolvidos na aplicação da engenharia genética
alarmaram-se diante de suas possíveis implicações. Eles vislumbraram a
possibilidade de que um erro, ou mesmo uma ação deliberada, pudesse fazer
surgir novos vírus e bactérias com alto poder de contágio, capazes de provocar
doenças desconhecidas. Por isso, em 1974, os pesquisadores pioneiros nesse
campo concordaram em postergar voluntariamente vários tipos de experimentos que
poderiam ser arriscados.
Naquela
época, os conhecimentos sobre genética molecular eram incipientes, mas já se
tinha consciência de que os microrganismos utilizados como hospedeiros do DNA
ou RNA modificados (recombinados) poderiam tornar-se patógenos incontroláveis,
com poder de causar pandemias para as quais não estaríamos preparados.
Diversos
debates entre os maiores especialistas acompanharam o desenvolvimento da
engenharia genética. Mas, ao mesmo tempo, a utilização da técnica abria uma
ampla possibilidade de manipulação e modificação da natureza para fins
comerciais e logo foi apropriada pelas indústrias que atuavam nos setores de
agricultura e saúde.
Os
riscos da utilização da ciência (principalmente as ciências da vida) para fins
comerciais não são desconhecidos. Em junho de 1999 realizou-se em Budapeste a
“Conferência Mundial sobre a Ciência”, organizada conjuntamente pela UNESCO e o
Conselho Internacional para a Ciência, cujos participantes, em número de mais
de dois mil, redigiram um manifesto intitulado Declaração sobre a ciência
e a utilização do conhecimento científico. A declaração afirma que
Algumas
aplicações da ciência podem ser prejudiciais para indivíduos e sociedade, para
o meio ambiente e para a saúde humana, podendo até ameaçar a continuidade da
existência da espécie humana. Os cientistas […] têm uma responsabilidade
especial em procurar evitar as aplicações da ciência que sejam eticamente
erradas ou possuam efeitos adversos.5
Porém,
o apelo “aos cientistas” é insuficiente. Não são “os cientistas” que atualmente
tomam as decisões sobre o que irão pesquisar, mas sim as empresas que os
contratam ou que financiam as pesquisas em universidades e institutos. Claro
que se houvesse por parte dos cientistas uma corajosa atitude de negação aos
comandos da indústria, as aplicações da ciência que trazem “efeitos adversos”
não seriam realizadas. No entanto, parece que a maioria está mais preocupada
com seus salários ou com as verbas para seus laboratórios e institutos do que
com os possíveis resultados da apropriação de seu trabalho pela indústria. Isso
pode ser resultado tanto de uma cumplicidade consciente com o sequestro da
ciência pelas corporações privadas ou simplesmente de uma consciência ingênua
produzida pela falta de formação filosófica e sociológica dos cientistas
naturais.
O
domínio da engenharia genética permitiu um crescimento vertiginoso da indústria
de biotecnologia. Hoje, as corporações cujos lucros dependem de conhecimentos
científicos e experimentos nessa área tornaram-se gigantes transnacionais e
figuram entre as empresas mais lucrativas do planeta. Entre as 100 maiores
corporações mundiais, de todos os setores, que figuram no ranking da revista Forbes encontramos
sete empresas classificadas no ramo de “fármacos e biotecnologia” (drugs and
biotechnogy): Johnson & Johnson (34ª posição geral), Pfizer (49ª posição),
Cigna CI (63ª posição), Novartis (68ª posição), Roche Holding (74ª posição),
Merck & Co. (92ª posição) e GlaxoSmithKline (97ª posição).6
Juntas,
as sete representantes do setor de fármacos e biotecnologia da lista da Forbes geraram
US$ 158 bilhões em lucros em 2019 e valiam US$ 4,1 trilhões.7 As
previsões são de um crescimento maior em virtude da pandemia da Covid-19, ao
mesmo tempo em que gigantes de outros setores, como as petrolíferas,
encontram-se diante de perspectivas de queda brusca em seus valores de mercado
e na sua capacidade de gerar lucros.8
A
pandemia da Covid-19 e o crescimento da indústria de biotecnologia durante e por
causa dela nos alertam para a necessidade de duas reflexões que podem nos
ajudar a pensar as políticas públicas de agricultura, saúde e meio ambiente e o
papel da ciência no mundo pós-pandêmico. Uma diz respeito à possível
reconfiguração da hegemonia das grandes corporações mundiais e de sua forma de
interferirem na gestão dos Estados-nacionais e seus orçamentos. A outra é sobre
as consequências da submissão da ciência aos interesses comerciais de
indústrias gigantes, cujos lucros estão diretamente relacionados a pesquisas e
experimentos no campo da saúde e de processos naturais moldados por bilhões de
anos de evolução.
A
pandemia de 2020 e o papel do setor de fármacos e biotecnologia na hegemonia global do capital
No
capitalismo atual, a hegemonia global é exercida pelo setor financeiro, em um
período chamado por Ladislau Dowbor de A era do capital improdutivo.9 Porém,
o setor produtivo, liderado pelas corporações do setor de petróleo e gás, ainda
ocupa papel de destaque na definição dos rumos da política e economia globais.
A
capacidade de interferência das indústrias petrolíferas na política mundial,
nas economias nacionais e na vida social é bastante conhecida. Elas interferem
na gestão das riquezas naturais nacionais por meio do controle da política,
determinam legislações, promovem guerras genocidas, impedem acordos
internacionais e políticas nacionais para a preservação do meio ambiente,
travam uma batalha no campo científico para negar o desequilíbrio climático ou
a reponsabilidade da ação humana no aquecimento global etc.
Seu
papel no futuro pós-pandêmico começa, porém, a ser questionado por causa das
perspectivas de declínio. O crescimento acelerado do setor de fármacos e
biotecnologia em função da pandemia da Covid-19 pode levar as indústrias que
atuam nesse campo a ocupar o lugar das petrolíferas e exercer o segundo posto
da hegemonia no capitalismo global – cuja liderança ainda permanecerá exercida
pelo setor financeiro, caso o mundo não mude sua rota.
Embora
isso dependa de quão duradoura será a atual pandemia, da possibilidade de novas
e piores surgirem ou simplesmente do clima de medo que pode se estabelecer no
mundo pós-pandêmico, já se delineia no horizonte uma redefinição do papel do
setor de biotecnologia no mercado global.
Nos
últimos meses, a situação da pandemia da Covid-19 abalou o mercado de ações,
causando oscilações intensas em todos os setores. […]. Entretanto, um setor tem
se destacado: o de biotecnologia. Os investidores estão prestando especial
atenção às mudanças bruscas das ações das empresas de saúde e biotecnologia. O
destino de toda indústria depende, de uma forma ou de outra, do que irá
acontecer no setor de biotecnologia. A presente crise global irá acabar cedo ou
tarde, mas o que parece certo é que as ações do setor de biotecnologia jamais
serão as mesmas. […]. Comparando com muitas indústrias, notamos um relativo
poder nos setores de fármacos e biotecnologia no meio à atual instabilidade do
mercado.10
A
manutenção da posição atual desse setor no mercado mundial e a possível
conquista de uma nova colocação na hegemonia global do capital dependem de
novas pandemias ou, pelo menos, da ameaça constante de que novas e piores
venham a surgir. Se são um excelente negócio para essas empresas, o que
impediria que as pandemias se tornassem regras e não exceção? Ou que nossa
relação com a saúde, tanto no plano individual como no das políticas públicas,
se tornasse totalmente determinada por um clima de temor e constante ameaça,
advindo de uma concepção de natureza hostil, rodeada de perigos invisíveis para
os quais apenas a indústria de biotecnologia (usando “a ciência” como
porta-voz) nos fornece proteção?
Se
essas possibilidades podem soar conspiratórias demais para os leitores mais
crédulos – que acreditam que a gestão caótica e impessoal das gigantes
corporativas admite alguma ética, ou que ainda pensam que a ciência que se
realiza em seus laboratórios ou sob seu patrocínio é aquela do ideal idílico de
Bacon, feita dentro de compromissos inarredáveis com o conhecimento e o bem estar
da humanidade – as informações seguintes podem trazer-nos ao mundo real.
As
empresas de fármacos e biotecnologia que figuram entre as 100 maiores
corporações mundiais no ranking da Forbes (e outras gigantes que
estão em posições mais abaixo)possuem uma extensa história de denúncias e
processos de corrupção em diversos países, relacionados à lavagem de dinheiro,
suborno a médicos e autoridades públicas, venda de remédios não aprovados por
agências de regulação (como a FDA), promoção ilegal de medicamentos, tentativas
de proibição de produção de medicamentos genéricos mais baratos pelos países
pobres, interferência na concessão do Prêmio Nobel em função de interesses
comerciais e até financiamento a grupos terroristas. Não é difícil encontrar
nos principais jornais do mundo notícias como as que seguem.
“Johnson
& Johnson faz acordo de US$ 70 milhões por denúncia de suborno”11
“União
Europeia: Bruxelas acusa Johnson & Johnson e Novartis de atrasar
ilegalmente a comercialização de analgésicos genéricos”12
“Roche,
GlaxoSmithKlein (GSK) e Pfizer estão entre as farmacêuticas investigadas por
corrupção por autoridades romenas”13
“Novartis
sob investigação por suborno na Grécia”14
“Novartis
pagará US$ 678 milhões em acordo por acusação de suborno a médicos”15
“Johnson
& Johnson pagará US$ 2,2 bilhões em caso de fraude”.16
Nesta
última matéria informa-se que “As autoridades alegam que a gigante farmacêutica
ignorou as advertências da FDA e comercializou o Risperdal para idosos e
crianças, enquanto pagava propina para que os médicos o receitassem”.
“Pfizer
faz acordo com governo dos EUA no caso de suborno em países estrangeiros”
“Pfizer
é multada por uma década de corrupção”17
Conforme
esta última: “A Pfizer foi multada em US$ 60 milhões pelas agências reguladoras
dos EUA por subornar médicos e funcionários de governos em países do Leste
Europeu, Ásia e Oriente Médio por uma década até
“GSK
enfrenta acusações de corrupção na Romênia”.18
“GlaxoSmithKline
multada em US$ 490 milhões pela China por suborno”.19
“Merck
se declara culpada e paga US$ 950 milhões por promoção ilegal do Vioxx”.20
A
empresa AstraZeneca, que fechou recentemente um acordo com a Fiocruz para
testes de vacina contra o novo coronavírus, não figura na lista das 100 maiores
da Forbes de 2020. Ela ocupava o 237º lugar geral quando o ranking foi
divulgado. Se considerarmos que o ranqueamento inclui todos os setores da
economia e todas as corporações do planeta, sua posição é bastante vantajosa.
Mas suas ações aumentaram consideravelmente a partir da declaração da pandemia
de 2020 pela OMS e dispararam em função dos anúncios do possível
desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus em parceria com a
Universidade de Oxford. Em julho de 2020 os valores de suas ações atingiram os
maiores índices de toda a história da empresa:
Sobre
a AstraZeneca também pesam sérias denúncias de corrupção pelo mundo. Uma delas
é sobre interferência na concessão do Prêmio Nobel de 2008 para beneficiar-se
do recebimento de pagamentos pela patente na produção da vacina contra o HPV,
que pertencia a uma empresa que a AstraZeneca acabara de adquirir. Um dos
cientistas agraciados com o Nobel naquele ano, Harald Zur Hauser, recebeu o
prêmio pela pesquisa que relacionou o câncer do colo do útero com o vírus HPV.
Zur Hauser, investido da autoridade do Nobel, entrou em uma campanha mundial
para convencer governos sobre a necessidade de vacinação massiva contra o HPV.
A
AstraZeneca patrocina duas empresas da Fundação Nobel, a Nobel Media e
a Nobel Web e duas pessoas com relações com a empresa compunham o
instituto responsável pela indicação do premiado, sendo uma delas o próprio
presidente do comitê. A inclusão da vacina contra o vírus HPV no calendário de
vacinação de diversos países rendeu bilhões à empresa.21
Convencer
governos a comprar e aplicar vacinas por meio da manipulação de um prêmio que
confere a seu ganhador o carimbo máximo de autoridade na ciência não é a única
acusação na história da AstraZeneca. Vejamos algumas outras manchetes:
“Investigações
do Departamento de Justiça afirmam que a AstraZeneca subornou terroristas
iraquianos para ganhar contratos”.22
“AstraZeneca
pagará US$ 5,5 milhões por subornar médicos na China e na Rússia”.23
“AstraZeneca
é indiciada em caso de corrupção na Sérvia”.24
Para
concluir esse brevíssimo resumo (em comparação com a quantidade de notícias
sobre as atividades ilegais, ilícitas e antiéticas dessas empresas), prestemos
atenção à seguinte matéria do The New York Times:
“Departamento
de Justiça investiga alegações de que empresas farmacêuticas financiaram
terrorismo no Iraque”.25
As
empresas citadas na reportagem são: Johnson & Johnson, Pfizer, Roche e
AstraZeneca. Seria exageradamente conspiratório duvidar que empresas com uma
ficha tão extensa de ações criminosas e de redução da saúde humana a um mero
campo de negócios sem limites éticos hesitariam em lançar mão de qualquer
oportunidade para obtenção de lucros? Ou seria, na verdade, um excesso de
ingenuidade confiar que sua missão é evitar e combater pandemias e doenças em
uma aliança com “a ciência” para o “bem da humanidade”?
Uma
redefinição do papel do setor de fármacos e biotecnologia significaria a
ampliação do enorme poder que essas corporações já exercem sobre as políticas
públicas de agricultura, saúde e meio ambiente e o aumento de sua capacidade de
controlar a vida humana no planeta e modificar os ecossistemas.
Ciência
e sociedade
O
poder das empresas de biotecnologia está amparado tanto no plano objetivo (o
volume de capital que detêm em suas mãos), quanto no plano subjetivo, ou seja,
na manipulação do conhecimento científico e da utilização da autoridade
conquistada pela ciência como justificativa para o controle que exercem.
A
crença ainda existente no mito baconiano da neutralidade científica reduz o
senso crítico da sociedade em relação ao que as empresas de biotecnologia fazem
ao se apropriar da ciência. A interferência da indústria nas revistas
científicas, universidades e jornalismo científico cria um obstáculo para o
exercício da crítica, pois produz uma falsa identificação dos produtos de uma
ciência submetida a interesses comerciais com o próprio conhecimento científico
em si mesmo. Consequentemente, a crítica a um pode ser facilmente confundida
com a rejeição ao outro.
Por
essa razão, não temos dificuldades em acreditar e denunciar que a ganância das
mineradoras provocou as tragédias de Mariana e Brumadinho, nem que os interesses
das petrolíferas provocaram guerras nas quais morreram centenas de milhares de
pessoas pelo mundo. Tampouco hesitamos em atribuir o envenenamento de nossa
comida à indústria de alimentos e de pesticidas. Porém, quando se trata do
aparecimento de novos vírus e bactérias patógenos ou do lançamento de novas
vacinas e medicamentos, há uma tendência de se ver tudo isso como um campo
purificado de ação “da ciência”, sem perceber os interesses comerciais das
indústrias de fármacos e biotecnologia, cujo poder de controle sobre o fazer
científico tem crescido enormemente nas últimas décadas.26
Os
setores mais críticos da sociedade e a esquerda de modo geral ainda cultivam a
crença da burguesia revolucionária europeia em uma ciência independente como um
saber libertador. A manutenção dessa crença como um ideal futuro a ser
conquistado é positiva. O problema surge quando se acredita ele foi realizado
no mundo capitalista. O momento exige o abandono dessa inocência.
Não
se trata de reforçar a crítica obscurantista ao conhecimento científico em si
mesmo, mas de sermos críticos com o fazer real da ciência e termos uma
concepção menos romântica e mais realista sobre a importância e limites da
prática científica. Portanto, não há nenhuma contradição em defender as
ciências naturais como uma das maiores conquistas do ser humano no plano do
conhecimento e, ao mesmo tempo, compreendê-las como uma prática concreta
determinada pela realidade socioeconômica do mundo capitalista.
A
maneira como as empresas de biotecnologia vêm manipulando fenômenos naturais,
os riscos que isso representa para a humanidade e a forma como sequestraram a
prática científica para seus interesses devem ser pautas urgentes para o debate
social que procura pensar o mundo pós-pandemia.
A
ideia de um controle social público sobre a manipulação da ciência pela
indústria não é uma coisa nova, mas a proposta se torna mais urgente no cenário
criado pela pandemia atual. Em artigo já mencionado, Fagan et al. questionaram
o fato de que a permissão dada por órgãos de controle internacionais para a
comercialização de pesticidas e organismos geneticamente modificados pode ser
concedida apenas com as evidências e dados fornecidos pelos próprios
laboratórios das empresas de biotecnologia ou por laboratórios contratados por
elas, que atuam sob sua supervisão.
Para
solucionar esse problema, os autores reforçam a proposta de Séralini e outros
para a criação de um controle público sobre as pesquisas realizadas pelas
empresas:
Para
Séralini et al., os conflitos de interesses inerentes a essa situação poderiam
ser evitados se essas pesquisas fossem conduzidas por laboratórios
independentes. Os autores indicam que as empresas ainda pagam pela pesquisa, em
níveis comparáveis aos custos atuais, mas que uma chamada pública para realizar
a pesquisa independentemente das empresas que desenvolvem o produto contrataria
pesquisadores independentes. Outros sugerem uma abordagem semelhante para
avaliar as tecnologias biomédicas.27
No
mundo pós-pandêmico, as organizações da sociedade civil e os Estados deverão
assumir um papel fundamental no controle da prática científica e do que é feito
pelas indústrias que usam a ciência como força produtiva, a fim de que a saúde
humana não seja reduzida apenas a um mero fator de impacto nas bolsas de
valores mundiais
1 BACON,
Francis. Novum Organum. New York: P.F. Collier, 1902. Disponível em: https://oll.libertyfund.org/titles/bacon-novum-organum.
2 BACON,
Francis. Novum organum / Nova Atlântida. 3. Ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1984. (Os pensadores).
3 FAGAN,
J., TRAAVIK, T. & BøHN, T. The Seralini affair: degeneration of Science to
Re-Science? Environ Sci Eur 27, 19 (2015). Disponível em https://enveurope.springeropen.com/articles/10.1186/s12302-015-0049-2.
Para os que não conhecem o caso Séralini, recomendo fortemente a leitura desse
artigo.
4 SANDIN,
Máximo. Una nueva biologia para una nueva sociedade. Política y sociedade. Vol.
39 Núm. 3 (2002). Disponível em: http://www.somosbacteriasyvirus.com/nuevasociedad.pdf.
5 UNESCO.
“Declaration on science and the use of scientific knowledge”. World
Conference on Science. Budapest, 1999. § 20 e 21. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000116994.
6 MURPHY,
A.; TUCKER, H; COYNE, M; TOURYALAI, H. “The word’s lagerst public companies”. Forbes. 13/05/2020.
Disponível em https://www.forbes.com/global2000/.
7 HANSEN,
S. “Global 2000: as maiores empresas de medicamentos e biotecnologia do
mundo”. Forbes, 14/05/2020. Disponível em: https://forbes.com.br/listas/2020/05/global-2000-as-maiores-empresas-de-medicamentos-e-biotecnologia-do-mundo/.
8 NAFEEZ,
Ahmed. “Preparados para o mundo pós-petróleo?” Outras Palavras. 03/07/2020.
Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/preparados-para-o-mundo-pos-petroleo.
9 DOWBOR,
Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária;
Outras Palavras, 2017.
10 ROJAS,
Carlos de. “How Has Coronavirus Affected Europe’s Biotech Stocks?”. Labiotech.Eu.
20/04/2020. Disponível em: https://www.labiotech.eu/medical/biotech-stock-coronavirus.
Sobre o impacto da pandemia no crescimento das ações do setor de fármacos e
biotecnologia, ver também: RIORDAN, Primrose. “Biotech stock soars on debut as
coronavirus fuels investor boom”. Financial Times. 24/04/2020.
Disponível em: https://www.ft.com/content/ff9eda04-2d50-4dac-af5f-a8878d6aaa80 e
LANDAURO, I.; RAMNARAYAN, A. “Nasdaq’s $1.2 trillion biotech index draws Europe’s
COVID drug hunters”. Reuters. 03/06/2020. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-nasdaq-biotech/nasdaqs-1-2-trillion-biotech-index-draws-europes-covid-drug-hunters-idUSKBN24128Z.
11 HARRIS,
Gardiner. “Johnson & Johnson settles bribery complaint for $70 million in
fines”. The New York Times. 08/04/2011.Disponível em: https://www.nytimes.com/2011/04/09/business/09drug.html
12 EUROPA
PRESS. “UE: Bruselas acusa a J&J y Novartis de retrasar ilegalmente la
comercialización de analgésicos genéricos”. 31/01/2013. Disponível em: https://www.europapress.es/internacional/noticia-ue-bruselas-acusa-jj-novartis-retrasar-ilegalmente-comercializacion-analgesicos-genericos-20130131135805.html
13 THE
PHARMA LETTER. “Roche, GSK, Pfizer among drugmakers being investigated for
corruption by Romanian authorities”. 03/08/2015. Disponível em: https://www.thepharmaletter.com/article/roche-gsk-pfizer-among-drugmakers-being-investigated-for-corruption-by-romanian-authorities.
14 PAPADIMITRIOU,
J. “Novartis under investigation for bribery in Greece”. Deutche Welle.
22/01/2017. Disponível em: https://p.dw.com/p/2WDMs.
15 FEELEY,
J. “Novartis to Pay $678 Million to Settle Doctor-Bribe Claims”. Bloomberg.
1/07/2020. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-07-01/novartis-to-pay-678-million-to-resolve-doctor-kickback-claims.
16 KRANS,
Brian. “Johnson & Johnson to Pay $2.2 Billion in Fraud Case”. Helthline.
02/09/2014 Disponível em https://www.healthline.com/health-news/policy-johnson-and-johnson-to-pay-record-settlement-in-suit-110413#1.
17 JACK,
Andrew. “Pfizer fined for decade of bribery”. Financial Times. 07/08/2012.
Disponível em: https://www.ft.com/content/216d2e3e-e0aa-11e1-b465-00144feab49a
18 HIRSCHELER,
Bem. “Exclusive: GSK faces new corruption allegations, this time in Romania”. Reuters.
29/07/2015. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-gsk-romania-corruption-exclusive-idUSKCN0Q32A920150729.
19 BBC
NEWS. “GlaxoSmithKline fined $490m by China for bribery”. 19/09/2014.
Disponível em: https://www.bbc.com/news/business-29274822.
20 HUSTEN,
Larry. “Merck Pleads Guilty and Pays $950 Million for Illegal Promotion of
Vioxx”. Forbes. 22/11/2011. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/larryhusten/2011/11/22/merck-pleads-guilty-and-pays-950-million-for-illegal-promotion-of-vioxx/#62f4ccbe20f4
21 CHARTER,
D. “AstraZeneca row as corruption claims engulf Nobel prize”. The Times.
19/12/2008. Disponible en: https://www.thetimes.co.uk/article/astrazeneca-row-as-corruption-claims-engulf-nobel-prize-rv8l7mp0cbq.
22 SAGONOWSKY,
Eric. “Justice Department probes claims that AstraZeneca bribed Iraqi
terrorists to win contracts”. Fierce Pharma. 31/07/2018. Disponível em: https://www.fiercepharma.com/pharma/doj-probes-astrazeneca-over-allegations-corruption-iraq.
23 SILVERMAN,
Ed. “AstraZeneca to pay $5.5 million for bribing doctors in China and Russia”. Stat
News. 31/08/2016. Disponível em: https://www.statnews.com/pharmalot/2016/08/31/astrazeneca-bribes-china-russia/.
24 JACK,
A.; MACDONALD, N; CRABTREE, J. “AstraZeneca indicted in Serbian corruption
case”. Finatial Times. 27/10/2011. Disponível em: https://www.ft.com/content/d3589da8-0073-11e1-930b-00144feabdc0
25 HARRIS,
Gardner. “Justice Dept. investigating claims that drug companies funded
terrorism in Iraq”. The New York Times. 31/07/2018. Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/07/31/us/politics/drug-companies-iraq-terrorism.html.
26 Uma
reflexão sobre a relação da indústria de biotecnologia e a origem do novo
coronavírus pode ser encontrada em ABDALLA, M; SANDÍN, M. A ciência e a origem
do novo coronavírus: um debate necessário. Le Monde Diplomatique.
09/06/2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-ciencia-a-origem-do-novo-coronavirus-um-debate-necessario/
27 FAGAN
et al. op. cit.
Gostou
do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
MAURÍCIO ABDALLA - Filósofo e doutor em Educação, professor do departamento de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Também é membro da Rede Nacional de Assessores do Centro de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP/CNBB) e do Projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento (ABONG/ISER Assessoria).
TÍTULO
ORIGINAL:
A pandemia de
Sem comentários:
Enviar um comentário