quinta-feira, 30 de julho de 2020

O culto ao egoísmo está matando os EUA

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A direita transformou o comportamento irresponsável em um princípio fundamental

Paul Krugman | Carta Maior* 

A resposta americana ao coronavírus tem sido um projeto perde-perde.

O governo Trump e governadores como Ron DeSantis, da Flórida, insistiram que não havia contradição entre crescimento econômico e o controle da pandemia, e estavam certos – mas não da forma que imaginavam.

A reabertura prematura levou a um aumento de infecções: em números ajustados à população, a taxa de americanos morrendo atualmente de Covid-19 é cerca de 15 vezes a da União Europeia ou do Canadá. No entanto, a recuperação em forma de "foguete" prometida por Donald Trump se espatifou e está em chamas: o crescimento do emprego parece ter estagnado ou estar sendo revertido, especialmente nos estados que relaxaram de forma mais agressiva as medidas de distanciamento social, e as primeiras indicações apontam que a economia dos EUA está ficando para trás das economias das principais nações europeias.

Estamos, portanto, fracassando tristemente tanto na frente epidemiológica quanto na econômica. Mas por quê?

A primeira razão é que Trump e seus aliados estavam tão ansiosos para ver crescer o número de empregos que ignoraram tanto os riscos de infecção quanto a forma como uma ressurgência da pandemia minaria a economia. Como eu e outros dissemos, eles não passaram no teste do marshmallow, sacrificando o futuro porque não se dispuseram a ter um pouco de paciência.

Certamente há bastante verdade nessa explicação. Mas há mais fatores nessa história.


As pessoas realmente decididas a retomar a economia, por exemplo, deveriam ter defendido medidas que limitassem as infecções sem prejudicar os negócios – principalmente exigindo que os americanos usassem máscaras. Em vez disso, Trump ridicularizou quem as usava, chamando-os de "politicamente corretos", enquanto governadores republicanos não apenas se recusaram a tornar obrigatório o uso de máscaras, mas ainda impediram os prefeitos de impor normas locais para o uso.

Além disso, políticos ansiosos pela retomada econômica deveriam buscar sustentar o poder de compra do consumidor até que os salários tivessem sido recuperados. Em vez disso, os senadores republicanos ignoraram a iminente expiração, em 31 de julho, de benefícios especiais para os desempregados, o que significa que dezenas de milhões de trabalhadores estão prestes a sofrer uma imensa redução em sua renda, prejudicando a economia como um todo.

Então o que aconteceu? Nossos líderes foram estúpidos, simplesmente? Bem, talvez. Mas há uma explicação mais profunda para o comportamento profundamente autodestrutivo de Trump e seus aliados: todos eles são fieis do culto americano ao egoísmo.

Veja, a direita moderna dos EUA está alinhada à visão da ganância como algo positivo e à ideia de que todos ganhamos quando os indivíduos se lançam na busca sem limites de seus próprios interesses. Em sua visão, a maximização irrestrita do lucro pelas empresas e a escolha do consumidor sem regulamentação são a receita para uma boa sociedade.

As bases que sustentam essa visão, se é que existem, são mais emocionais do que intelectuais. Há muito me impressiona a intensidade da raiva que a direita nutre contra regulamentações relativamente triviais, como a proibição de fosfatos em detergentes e os padrões de eficiência para lâmpadas. O princípio é que muitos à direita ficam furiosos com qualquer sugestão de que suas ações possam levar o bem-estar de outras pessoas em consideração.

Essa raiva, às vezes, é retratada como amor à liberdade. Mas as pessoas que insistem no direito de poluir não se incomodam quando, digamos, agentes federais jogam gás lacrimogêneo em manifestantes pacíficos. O que eles chamam de "liberdade" é, na verdade, ausência de responsabilidade.

A política racional durante uma pandemia, no entanto, tem tudo a ver com assumir responsabilidades. O principal motivo para você não ir a um bar e usar uma máscara não é a autoproteção, embora isso faça parte; o ponto é que se reunir em espaços barulhentos e lotados ou expelir gotículas no ar põem outras pessoas em risco. E esse é o tipo de coisa que os EUA odeiam ouvir.

Realmente, às vezes parece que os direitistas fazem questão de se comportar de forma irresponsável. Lembram como o senador Rand Paul, quando estava preocupado com a possibilidade de estar infectado com o Covid-19 (ele estava), andou pelo Senado e até usou a academia enquanto esperava pelo resultado dos testes?

A raiva por qualquer sugestão de responsabilidade social também ajuda a explicar a catástrofe fiscal que se anuncia. É impressionante como muitos republicanos reagem de forma irracional em oposição ao aumento temporário do auxílio-desemprego; o senador Lindsey Graham, por exemplo, declarou que esses benefícios só seriam estendidos "por cima de nossos cadáveres". Por que tanto ódio?

Não é porque os benefícios estejam fazendo os trabalhadores recusarem empregos. Não há provas de que isso esteja acontecendo – os republicanos apenas querem acreditar nisso. E, de qualquer forma, argumentos econômicos não podem explicar a raiva.

De novo, trata-se de um princípio. Ajudar os desempregados, mesmo que a falta de emprego não seja culpa deles, é uma admissão tácita de que americanos de sorte devem ajudar seus concidadãos menos afortunados. E isso é algo que a direita não quer admitir.

Só para deixar claro: não estou dizendo que os republicanos são egoístas. Estaríamos muito melhor se a questão fosse essa. O ponto é que eles sacralizaram o egoísmo, prejudicando suas próprias perspectivas políticas, ao insistir no direito de agir de forma egoísta mesmo causando danos aos outros.

O que o coronavírus revelou é o poder do culto ao egoísmo nos EUA. E esse culto está nos matando.

*Publicado originalmente em 'New York Times' | Tradução de Clarisse Meireles

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