Teologia cartesiana quis torná-lo “transcendente”. Mas se foi Espinosa quem o compreendeu, ele é tão mundano como a natureza e seus próximos — sacrificados todos no altar do dinheiro e do poder. Eclosão do vírus denuncia este suplício
Boaventura de Sousa Santos | Outras Palavras
Deus
parece estar confinado. Pelo menos, desde que no século XVII se impôs a
separação absoluta entre a natureza, enquanto res extensa, e os seres
humanos, enquanto res cogitans. A prova da existência de deus está na
mente humana, porque só ela pode conceber um ser perfeitíssimo, infinito. Sendo
imperfeita, a mente humana só é capaz de tal concepção porque alguém a
inscreveu nela. Esse alguém é deus. A natureza é incapaz de uma tal concepção,
e aí reside a sua incomensurável inferioridade em relação à mente própria dos
humanos. Com a demonstração da existência de deus ficou provada a
impossibilidade da co-existência com ele no mesmo mundo. Deus é do “outro
mundo”, o seu “reino não é deste mundo”. Deus é a transcendência.
Assim
começou o confinamento de deus. Se até então já era difícil comunicar
directamente com ele, daí em diante tornou-se impossível. Só os místicos o
conseguiriam fazer, e sempre com altos custos pessoais. No mesmo processo em
que deus foi humanizado, foi também desnaturalizado e, com ele, os seres
humanos que o conceberam. E como não conseguem ser mente sem ser corpo natural,
ao mesmo tempo que provaram a existência de deus, os seres humanos deixaram de
o entender e deixaram de se entender entre si. Assim se desumanizaram. A
humanização de deus redundou na desumanização dos seres humanos. O homo
economicus (o homem económico) do capitalismo nascente, tal como o quase
contemporâneo homo lupus homini (o homem lobo do homem) de Hobbes,
são a expressão desta desumanização do humano. O ser competitivo, centrado no
seu interesse individual, é um ser anti-social que vê nos semelhantes (nunca
iguais) potenciais inimigos, e que só faz filantropia se dela resultar
benefício próprio.
A incompreensão abissal do ser divino permitiu aos humanos dizer de deus tudo o que queriam e consoante as conveniências. A teologia sofreu então uma transformação qualitativa. Passou a tentar resolver o mal-entendido cartesiano, multiplicando as mediações que humanizavam falsamente deus. As ficções do “deus feito homem” ou o “corpo de deus” foram levadas ao paroxismo. O nazareno cruxificado do século XVIII barroco é um espetáculo visceral de primeira ordem, o espetáculo de um corpo cuja máxima exaltação é a mortificação e a morte. A economia da morte, em que o colonialismo e a escravatura prosperavam, encontrava nessas imagens um espelho cruel e um consolo desesperado. A exuberância das imagens escondia eficazmente as ficções teológicas. Escondia sobretudo as consequências trágicas dessas ficções, tal como muito antes as tinha vivido o jovem nazareno, ao concluir na cruz que nenhuma ambulância divina o viria salvar e afastar dele aquele “cálice”.
O
confinamento do deus cartesiano a partir do século XVII foi fundamental para
que em nome dele se pudessem cometer as maiores atrocidades. O jovem nazareno
que morrera na cruz para “salvar o mundo” era agora invocado para justificar a
imensidão das mortes de escravos e de povos originários para “salvar a
economia”. Confinado, deus estava limitado à tele-presença. A presença real
passou a ser dos intermediários, missionários, pastores, catedrais. Tal como
hoje os entregadores de comida por aplicação ou aplicativo (os motoboys e
as motogirls) não escolhem os restaurantes pela qualidade da comida, mas
pelo valor da remuneração por entrega, os intermediários passaram a servir a
comida espiritual consoante as prebendas que recebiam. Não o faziam por opção,
faziam-no por necessidade. Serviam os senhores da terra que se serviam deles
para consolidar o seu domínio.
Mas
estaria o deus verdadeiramente confinado? Sendo infinito em todos os seus
atributos, é impossível imaginar outro confinamento que não seja um acto originário,
um auto-confinamento. Por outro lado, é um absurdo pensar que um ser infinito
se confine. E é também impossível imaginar um motivo divino para o
auto-confinamento. Medo de ser contaminado? Não é imaginável que deus corresse
o perigo de ser contaminado por seres tão infinitamente inferiores, até porque,
segundo a teologia cartesiana, os humanos não têm sequer o nanotamanho do vírus
para poder contaminar deus. Medo de contaminar? É um absurdo pensar que o deus
cartesiano temesse contaminar. Sendo infinito, tudo está contaminado e,
simultaneamente, purificado por ele. A hipótese mais credível é que os
teólogos, eles sim, tivessem medo que deus contaminasse o mundo. Talvez
soubessem que a desnaturalização de deus era uma imposição tão forte e tão frágil
quanto todas as outras imposições humanas. Para a consolidar tiveram que
recorrer a múltiplas artimanhas arquitetónicas, pictóricas, sermónicas,
teológicas que enganassem todos aqueles que não beneficiavam com o suposto
confinamento de deus. Tais artimanhas foram as máscaras usadas eficazmente para
supostamente proteger deus dos humanos, mas que realmente funcionavam para
permitir aos humanos realizar livremente os seus negócios sem incorrer no risco
que correram os “vendilhões do templo”. Podemos, pois, concluir que deus não
esteve confinado durante todos estes séculos. Esteve em toda a parte – como lhe
competia. Apenas esteve ausente do discurso humano sobre ele. Ou melhor, o
discurso predominante dos humanos sobre ele destinou-se a criar e a justificar a
sua ausência. Afinal, onde esteve deus durante estes séculos? Sugerirá esta
pergunta, em si, que deus deu algum sinal de que a teologia que nos impuseram
chegou ao fim?
As
chagas do nazareno do século XXI
No
século XVII ocorreu uma grande clivagem nas reflexões sobre deus. À teologia
cartesiana, que expus acima, opôs-se radicalmente a teologia espinosista.
Enquanto, para Descartes, deus é tão produto da mente humana quanto
transcendente, para Espinosa deus é a infinitude de tudo o que existe, a
substância, a natureza. “Deus sive Natura”. Deus, ou seja, a natureza, disse
Espinosa. Não se trata da natureza desqualificada de Descartes (“natura
naturata”) mas da natureza qualificante de tudo, a energia vital infinita que
anima o mundo e a vida (“natura naturans”) e de que os seres humanos dependem
em toda a sua finitude. Neste sentido, a natureza não nos pertence, nós é que
pertencemos à natureza. Deus não é personalizável (como se fosse um humano
potenciado ao infinito). Nem transcendente. Deus é deste mundo e de todos os
outros mundos possíveis. Para Espinosa, só assim se pode dizer com verdade que
deus é infinito e omnipresente. Distinguir entre aqui e além, dentro e fora, é
a limitação própria dos humanos. Deus é a imanência do mundo e os seus
infinitos atributos são os que explicam as limitações dos humanos. E não o
contrário.
Para
Espinosa, a humanização dos humanos não está na sua desnaturalização, mas, pelo
contrário, na sua naturalização qualificante. Ora o capitalismo, o colonialismo
e o patriarcado foram os motores modernos da desnaturalização. A natureza foi
cartesianamente desqualificada para que o capitalismo a transformasse num
recurso natural incondicionalmente disponível para os seres humanos. E foi
igualmente desqualificada para que o colonialismo e o patriarcado
transformassem em recurso humano subjugável e espoliável todos os seres humanos
considerados radicalmente inferiores por supostamente estarem mais próximos da
natureza, fossem eles negros, indígenas ou mulheres. Em suma, fossem eles corpos
racializados e sexualizados. No mundo cartesiano, a desnaturalização de alguns
só foi possível à custa da naturalização das grandes maiorias.
Esta
naturalização desqualificante de seres humanos foi o produto de uma ignorância
fatal em que vivemos desde o século XVII, a ignorância de que se alimentaram o
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Os dois últimos existiram antes do
capitalismo, mas foram reconfigurados por este para se transformarem em fontes
de trabalho altamente desvalorizado (da escravatura aos auto-escravos informais
ou uberizados) ou não pago (a economia submersa do cuidado quase totalmente a
cargo das mulheres). E deus? É impossível imaginar um jovem nazareno
espinosista. Mas se fosse possível, o sofrimento humano injusto e inabarcável
que a naturalização desqualificante causou e continua a causar em tanto ser
humano (escravatura, limpeza étnica, racismo, sexismo, homofobia) seriam chagas
infligidas na humanidade. E o desmatamento industrial das florestas, a
contaminação dos rios, a mineração a céu aberto, o fracking seriam
igualmente chagas desta vez infligidas na mãe terra. Em conjunto, tais chagas
constituiriam uma imensa e permanente crucifixão. Um segundo e muito mais
doloroso calvário.
A
pandemia do coronavírus é primeira notícia teológica do século XXI. Será que o
anúncio inaugural do Evangelho de S. João “e o verbo fez-se carne” terá de ser
substituído pelo anúncio crepuscular “e o verbo fez-se vírus”? Como quer que
seja, uma nova teologia se anuncia. Parte de uma proposição nova, a proposição
37 da Primeira Parte da Ética de Espinosa. Pode formular-se de muitas
maneiras nas diferentes línguas e cosmovisões do mundo e, à maneira
espinosista, pode ser seguida de demonstrações, explicações, axiomas, escólios
ou corolários. No mundo ainda eurocêntrico a proposição pode formular-se assim.
Proposição: a naturalização cartesiana de tanto ser humano, provocada pela
dominação capitalista, colonialista e patriarcal, ocorreu de par com a
naturalização cartesiana de toda a vida não humana, e redundou num sacrifício
imenso no altar global dos ídolos do dinheiro e do poder. Demonstração:
tal como a vida humana é uma ínfima parte da vida não humana do planeta, o
sacrifício da vida não humana foi imensamente mais vasto, mas foi ocultado com
êxito pelo pensamento dominante ao serviço dos ídolos. Explicação: o
sacrifício da vida não humana não encontrou outra forma de ser conhecido e
denunciado senão contagiando com as suas chagas os altares e os ídolos. Axioma: O
vírus é apenas a prova mais convincente neste século da existência de
deus. Corolário I: um deus desconfinado é um perigo fatal para os
ídolos do dinheiro e do poder. Corolário II: um deus desconfinado é
finalmente um consolo eficaz e perene para a mãe terra e para todos aqueles
que, por estarem mais próximos dela, foram juntamente condenados com ela, os
condenados da terra de Franz Fanon.
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