terça-feira, 28 de julho de 2020

Racismo luso | Testemunhas ouviram insultos racistas contra Bruno Candé


“Tenho armas do Ultramar e vou-te matar”

Não posso ficar preso em casa porque há uma pessoa que me vai atacar por racismo [disse Bruno Candé ao amigo Sadja Dama dois meses antes do assassinato]. [Disse] que ele era preto, que tinha que estar na sanzala, que ele ia violar a mãe dele. -- Marcos Rodrigues, dono do café

O assassinato ocorreu em plena Avenida de Moscavide, no sábado. Na quarta-feira, vários comerciantes da zona ouviram Bruno Candé ser alvo de insultos racistas proferidos pelo arguido, que terá também ameaçado matá-lo. Homem de 76 anos ficou em prisão preventiva, por homicídio qualificado e posse de arma ilegal.

Depois do acidente de bicicleta que lhe deixou o lado esquerdo do corpo com limitações motoras, o actor Bruno Candé Marques, de 39 anos, andava bastante a pé. Já durante a pandemia de covid-19 era frequente ir ao café na Avenida de Moscavide, perto de casa. Precisava de ver pessoas, conta a sobrinha, Andreia. Esta segunda-feira, o banco onde se costumava sentar com a cadela Pepa, de raça labrador, tem flores e bilhetes de homenagem a lembrar o homem, o pai de três filhos, o irmão de cinco, o actor.

Bruno Candé Marques foi assassinado no sábado pelas 13h, alegadamente por um homem de 76 anos que terá disparado três tiros de uma arma em pleno dia, segundo fonte policial. O alegado homicida, que está em prisão preventiva por homicídio quali fi cado e posse de arma ilegal, seria imobilizado por dois homens até a PSP chegar ao local. Casado, o arguido era auxiliar de acção médica e irá fi car na cadeia de Lisboa, tendo como advogada o fi ciosa Alexandra Bordalo Gonçalves, presidente do conselho de deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados.

Os testemunhos recolhidos pelo PÚBLICO no local dão conta de que o homem começou, na quarta-feira, por implicar com a cadela Pepa até terminar num rol de insultos racistas: “Preto, vai para a tua terra!” e “volta para a sanzala!”. A família, em comunicado enviado no sábado, falava de antecedentes quanto a insultos e alegava “que fi ca evidente o carácter premeditado e racista deste crime hediondo”. A rua em que Bruno Candé morreu tem sobretudo comércio — lojas de roupa, cafés, oculistas, ourivesarias, garrafeiras — por isso no sábado várias pessoas testemunharam o crime. Marcos

Rodrigues, dono de um café ao qual o actor costumava ir, relata que, na quarta-feira, o actor estava sentado no banco com a sua cadela. Ouviu o alegado homicida a “insultá-lo”. Como? Disse “que ele era preto, que ele tinha que estar na sanzala, que ele ia violar a mãe dele.” Isto aos berros, recorda. Foi aí que Marcos viu Bruno a levantar-se e a dizer: ‘“Você não fala mais assim da minha mãe!” O dono do café não tem qualquer dúvida de que foram insultos racistas: “Com certeza que é racista”, a fi rma. “O Bruno nunca fez mal a ninguém.”

Também a mulher, Vânia Rodrigues, viu Bruno Candé e o suspeito envolvidos numa discussão nessa mesma quarta-feira. Conhecia Bruno Candé, por ser cliente habitual, mas nunca tinha visto o alegado homicida: “O Bruno estava mais calmo, o velhote andava com a bengala para cima”, relata, de máscara, fazendo o gesto. Vânia Rodrigues até disse a Bruno: “Tem calma, que ele é mais velhote e, se acontece alguma coisa, vais perder a razão.” Bruno contou-lhe os insultos racistas que ouviu do homem: “Fui à tua mãe e àquelas pretas de merda todas!”, terá dito.

Nos dias seguintes, Vânia Rodrigues começou a reparar que o alegado homicida andava a passear pela zona, com ar de quem estava à procura de Bruno, “e à procura de confusão”. “Até comentei com os clientes. Mas nunca pensei que fosse para isto.” No sábado, Bruno foi ao café pelas 10h30/11h, depois sentou-se no banco com a cadela. Eram cerca das 13h e “só ouvi barulho”, conta Vânia. “Algumas clientes de cor, com medo, puseram-se atrás da porta, escondidas. Eu só telefonei para a polícia e nem saí porque tive medo.” Mas a ameaça de morte já tinha sido feita nessa quarta-feira, igualmente acompanhada de insultos racistas, relata Júlio Martins, que trabalha na ourivesaria ao lado do café e do banco onde ele foi assassinado. Ouviu uma discussão na rua, saiu da loja e foi separar os dois homens. “Estavam só a agarrar-se. O Bruno tinha um problema numa perna e o senhor andava de bengala, por isso nenhum tinha a mobilidade toda. Enquanto o Bruno está a entrar no carro, o homem manda-o embora e diz: ‘Tenho armas do Ultramar em casa e vou-te matar!’.” Houve mais insultos: ‘Preto do caralho, vai para a tua terra!’, coisas que ouvimos chamar normalmente”, diz.

O funcionário conta que até comentou com o colega, em tom de brincadeira: “Ele agora diz que vai matar o rapaz...” Nunca pensou testemunhá-lo no sábado, quando viu o homem “a descer a rua, a passar a esquina, a apontar com o dedo, a meter a mão ao bolso e ‘pum! pum! pum!’”, descreve. “Entrámos para dentro da loja. Toda a gente fugiu para o café.” Foi um dos colegas da ourivesaria que o imobilizou — mas este não quis prestar declarações ao PÚBLICO.

Da porta de uma garrafeira que fica mesmo em frente ao banco onde Bruno Candé foi morto, Maria Silva, uma funcionária, viu o alegado homicida a caminhar na direcção de Bruno, que conhecia como cliente. “Só ouço estalos, olhei em frente e ainda vi o senhor com a arma apontada. Não conseguia ver o Bruno porque estava tapado pelo canteiro. Depois surgem mais dois tiros. A cadela desata aos pulos. Com a arma na mão, muito calmamente, o homem vai à sua vida, como se nada fosse, de uma frieza incrível. Ainda olhou duas vezes para trás.”

Os insultos racistas do arguido datam de há pelo menos dois meses, relata Sadja Dama, um amigo do actor que o testemunhou. Segundo conta, foi por causa da

A cadela que o alegado homicida começou a discutir com Bruno. Os insultos a que assistiu num episódio, dois meses antes, eram parecidos com os que foram ouvidos na quarta-feira por outras pessoas: “Volta para a tua terra, a tua mãe merece estar na sanzala!” Bruno respondia que tinha direito de ali estar. Aliás, Sadja Dama até o aconselhou a não ir àquele sítio. “Não posso ficar preso em casa porque há uma pessoa que me vai atacar por racismo”, respondeu-lhe Bruno Candé. “Estou cansado”, referiu, o que fez Sadja pensar que aquela não seria a primeira vez.

Segundo a PSP referiu no domingo, inquiriu testemunhas e nenhuma apontou motivos raciais. Ontem, o porta-voz da direcção nacional esclarece que foram questionadas testemunhas e a PSP não chegou à conclusão de que tenha havido “algum tipo de ofensa racista imediatamente antes dos disparos”. O porta-voz da PSP não sabe concretamente o que as testemunhas responderam e que perguntas exactas foram feitas para originar aquela conclusão, mas neste momento a PSP alega que, como a investigação transitou para a PJ, não irá fazer mais comentários. Tal como a PSP, também o presidente da Junta de Moscavide e Portela, Ricardo Lima (PS), ouviu aos habitantes relatos que descartam a tese de homicídio de origem racista.

Ontem de manhã, dois dias depois da tragédia, as irmãs do actor Olga e Betty (Elisabete) depositavam flores e falavam aos jornalistas, respondem a moradores que as abordam com palavras de consolo e de indignação. Estão em choque. Repetem, em lágrimas: “O Bruno não merecia isto.”

Há cerca de dois anos, Bruno ficou em coma durante meses depois do acidente de bicicleta. Foi “uma luta muito dura ter conseguido sair dessa”, conta a irmã Betty, de 42 anos. “Ele estava quase paralisado do lado esquerdo, por isso é que tinha a Pepa, era uma segurança para ele, uma cadela mansinha”, acrescenta. Com o susto dos tiros no sábado, Pepa fugiu e apareceu depois em casa do dono.

“Quando este senhor começou com as ameaças, há dois meses, pensámos que era uma mania”, diz a irmã Olga, de 52 anos. Olga vive em Inglaterra, onde trabalha nas limpezas, e veio para Portugal mal soube do sucedido, assim como outros elementos da família.

Olga foi uma figura decisiva na vida de Bruno. Criou-o, assim como aos irmãos. Ele costumava enchê-la de beijos, ela reclamava e hoje recorda-o com tristeza na voz e no rosto. A mãe emigrou para Espanha para a apanha da fruta e Olga cuidava dos cinco irmãos. O pai, “alentejano branco”, faz questão de dizer, está neste momento com uma doença degenerativa. “Tanta luta e sofrimento para isto… não é justo”, comenta. Betty sublinha que Bruno nunca fumou droga, nunca esteve preso, sempre andou na linha. Deixou três filhos: de sete, cinco e quatro anos.

Actor na telenovela A Última Mulher, estava a preparar uma peça de teatro com a Casa Conveniente. Mónica Calle contou no sábado que tinham estado a preparar um espectáculo iniciado como homenagem a Bruno pelo que passou. Bruno Candé foi elogiado por todos os que trabalharam com ele. A Casa Conveniente era como uma segunda família, dizem as irmãs, que o recordam como alguém divertido e carinhoso. Nem Olga nem a sobrinha Andreia o viram no palco. “Disso é que estou tão arrependida”, confessa Olga.

A sobrinha Andreia, de 35 anos, auxiliar de saúde que apoia idosos, era uma das suas grandes amigas. “Bom homem, bom pai, bom tio”, descreve. Foi Andreia quem o ajudou a tomar banho e lhe levou comida quando Bruno teve o acidente. “Ele era uma pessoa que tinha muita força de vontade, era muito alegre. Passava muito tempo na rua porque a médica disse que tinha de andar.” No sábado, ligou-lhe duas vezes de manhã. “Não atendi, estava a dormir”, conta com os olhos em lágrimas.

Bruno ainda chegou a estudar Mecânica na Casa Pia, onde esteve durante alguns anos, pois a mãe queria que ele tivesse formação escolar. Fez um curso de Teatro no Chapitô e a paixão pelo teatro começou a desenvolver-se profissionalmente. “O Bruno sempre gostou disto. Nunca pensei que o meu irmão fosse tão bom actor”, refere a irmã Betty, que o lembra como inspector na telenovela A Última Mulher.

Estava a escrever um livro sobre a sua vida, porque “tinha muito que contar, muita experiência de luta e sobrevivência”, conta Olga.

Bruno Candé era católico. No carro, a caminho para casa em Chelas, Olga aponta para uma estátua do Santo António, o padrinho do irmão. No apartamento onde entram e saem familiares a apoiar, a mãe está sentada em frente a uma mesa com uma foto de Bruno Candé, o Santo António, Nossa Senhora de Fátima e uma vela. A família apoia-se. “Não tenho palavras”, desabafa.

A família aguarda o resultado da autópsia para decidir onde e quando será feito o velório e o funeral.

Joana Gorjão Henriques | Público | Imagens: Diogo Ventura

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