Não posso ficar preso em casa porque há uma pessoa que me vai atacar por racismo [disse Bruno Candé ao amigo Sadja Dama dois meses antes do assassinato]. [Disse] que ele era preto, que tinha que estar na sanzala, que ele ia violar a mãe dele. -- Marcos Rodrigues, dono do café
O
assassinato ocorreu
Depois
do acidente de bicicleta que lhe deixou o lado esquerdo do corpo com limitações
motoras, o actor Bruno Candé Marques, de 39 anos, andava bastante a
pé. Já durante a pandemia de covid-19 era frequente ir ao café na Avenida
de Moscavide, perto de casa. Precisava de ver pessoas, conta a
sobrinha, Andreia. Esta segunda-feira, o banco onde se costumava
sentar com a cadela Pepa, de raça labrador, tem flores e bilhetes de
homenagem a lembrar o homem, o pai de três filhos, o irmão de cinco, o actor.
Bruno
Candé Marques foi assassinado no sábado pelas 13h, alegadamente por um homem de
76 anos que terá disparado três tiros de uma arma em pleno dia, segundo fonte
policial. O alegado homicida, que está em prisão preventiva por homicídio quali
fi cado e posse de arma ilegal, seria imobilizado por dois homens até a PSP
chegar ao local. Casado, o arguido era auxiliar de acção médica e irá fi car na
cadeia de Lisboa, tendo como advogada o fi ciosa Alexandra Bordalo Gonçalves,
presidente do conselho de deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados.
Os
testemunhos recolhidos pelo PÚBLICO no local dão conta de que o homem começou,
na quarta-feira, por implicar com a cadela Pepa até terminar num rol de
insultos racistas: “Preto, vai para a tua terra!” e “volta para a sanzala!”. A
família, em comunicado enviado no sábado, falava de antecedentes quanto a
insultos e alegava “que fi ca evidente o carácter premeditado e racista deste
crime hediondo”. A rua
Rodrigues,
dono de um café ao qual o actor costumava ir, relata que, na quarta-feira, o
actor estava sentado no banco com a sua cadela. Ouviu o alegado homicida a
“insultá-lo”. Como? Disse “que ele era preto, que ele tinha que estar na
sanzala, que ele ia violar a mãe dele.” Isto aos berros, recorda. Foi aí que
Marcos viu Bruno a levantar-se e a dizer: ‘“Você não fala mais assim da minha
mãe!” O dono do café não tem qualquer dúvida de que foram insultos racistas:
“Com certeza que é racista”, a fi rma. “O Bruno nunca fez mal a ninguém.”
Também a mulher, Vânia Rodrigues, viu Bruno Candé e o suspeito envolvidos numa discussão nessa mesma quarta-feira. Conhecia Bruno Candé, por ser cliente habitual, mas nunca tinha visto o alegado homicida: “O Bruno estava mais calmo, o velhote andava com a bengala para cima”, relata, de máscara, fazendo o gesto. Vânia Rodrigues até disse a Bruno: “Tem calma, que ele é mais velhote e, se acontece alguma coisa, vais perder a razão.” Bruno contou-lhe os insultos racistas que ouviu do homem: “Fui à tua mãe e àquelas pretas de merda todas!”, terá dito.
Nos
dias seguintes, Vânia Rodrigues começou a reparar que o alegado homicida andava
a passear pela zona, com ar de quem estava à procura de Bruno, “e à procura de
confusão”. “Até comentei com os clientes. Mas nunca pensei que fosse para
isto.” No sábado, Bruno foi ao café pelas 10h30/11h, depois sentou-se no banco
com a cadela. Eram cerca das 13h e “só ouvi barulho”, conta Vânia. “Algumas
clientes de cor, com medo, puseram-se atrás da porta, escondidas. Eu só
telefonei para a polícia e nem saí porque tive medo.” Mas a ameaça de morte já
tinha sido feita nessa quarta-feira, igualmente acompanhada de insultos
racistas, relata Júlio Martins, que trabalha na ourivesaria ao lado do café e
do banco onde ele foi assassinado. Ouviu uma discussão na rua, saiu da loja e
foi separar os dois homens. “Estavam só a agarrar-se. O Bruno tinha um problema
numa perna e o senhor andava de bengala, por isso nenhum tinha a mobilidade
toda. Enquanto o Bruno está a entrar no carro, o homem manda-o embora e diz:
‘Tenho armas do Ultramar em casa e vou-te matar!’.” Houve mais insultos: ‘Preto
do caralho, vai para a tua terra!’, coisas que ouvimos chamar normalmente”,
diz.
O
funcionário conta que até comentou com o colega, em tom de brincadeira: “Ele
agora diz que vai matar o rapaz...” Nunca pensou testemunhá-lo no sábado,
quando viu o homem “a descer a rua, a passar a esquina, a apontar com o dedo, a
meter a mão ao bolso e ‘pum! pum! pum!’”, descreve. “Entrámos para dentro da
loja. Toda a gente fugiu para o café.” Foi um dos colegas da ourivesaria que o
imobilizou — mas este não quis prestar declarações ao PÚBLICO.
Da
porta de uma garrafeira que fica mesmo em frente ao banco onde Bruno Candé foi
morto, Maria Silva, uma funcionária, viu o alegado homicida a caminhar na
direcção de Bruno, que conhecia como cliente. “Só ouço estalos, olhei em frente
e ainda vi o senhor com a arma apontada. Não conseguia ver o Bruno porque
estava tapado pelo canteiro. Depois surgem mais dois tiros. A cadela desata aos
pulos. Com a arma na mão, muito calmamente, o homem vai à sua vida, como se
nada fosse, de uma frieza incrível. Ainda olhou duas vezes para trás.”
Os
insultos racistas do arguido datam de há pelo menos dois meses, relata Sadja
Dama, um amigo do actor que o testemunhou. Segundo conta, foi por causa da
A cadela
que o alegado homicida começou a discutir com Bruno. Os insultos a que assistiu
num episódio, dois meses antes, eram parecidos com os que foram ouvidos na
quarta-feira por outras pessoas: “Volta para a tua terra, a tua mãe merece
estar na sanzala!” Bruno respondia que tinha direito de ali estar. Aliás, Sadja
Dama até o aconselhou a não ir àquele sítio. “Não posso ficar preso em casa
porque há uma pessoa que me vai atacar por racismo”, respondeu-lhe Bruno Candé.
“Estou cansado”, referiu, o que fez Sadja pensar que aquela não seria a
primeira vez.
Segundo
a PSP referiu no domingo, inquiriu testemunhas e nenhuma apontou motivos
raciais. Ontem, o porta-voz da direcção nacional esclarece que foram
questionadas testemunhas e a PSP não chegou à conclusão de que tenha havido
“algum tipo de ofensa racista imediatamente antes dos disparos”. O porta-voz da
PSP não sabe concretamente o que as testemunhas responderam e que perguntas exactas
foram feitas para originar aquela conclusão, mas neste momento a PSP alega que,
como a investigação transitou para a PJ, não irá fazer mais comentários. Tal
como a PSP, também o presidente da Junta de Moscavide e Portela, Ricardo Lima
(PS), ouviu aos habitantes relatos que descartam a tese de homicídio de origem
racista.
Ontem
de manhã, dois dias depois da tragédia, as irmãs do actor Olga e Betty
(Elisabete) depositavam flores e falavam aos jornalistas, respondem a
moradores que as abordam com palavras de consolo e de indignação. Estão
Há
cerca de dois anos, Bruno ficou em coma durante meses depois do acidente de
bicicleta. Foi “uma luta muito dura ter conseguido sair dessa”, conta a irmã
Betty, de 42 anos. “Ele estava quase paralisado do lado esquerdo, por isso é
que tinha a Pepa, era uma segurança para ele, uma cadela mansinha”, acrescenta.
Com o susto dos tiros no sábado, Pepa fugiu e apareceu depois em casa do dono.
“Quando
este senhor começou com as ameaças, há dois meses, pensámos que era uma mania”,
diz a irmã Olga, de 52 anos. Olga vive em Inglaterra, onde trabalha nas
limpezas, e veio para Portugal mal soube do sucedido, assim como outros
elementos da família.
Olga
foi uma figura decisiva na vida de Bruno. Criou-o, assim como aos irmãos. Ele
costumava enchê-la de beijos, ela reclamava e hoje recorda-o com tristeza na
voz e no rosto. A mãe emigrou para Espanha para a apanha da fruta e Olga
cuidava dos cinco irmãos. O pai, “alentejano branco”, faz questão de dizer,
está neste momento com uma doença degenerativa. “Tanta luta e sofrimento para
isto… não é justo”, comenta. Betty sublinha que Bruno nunca fumou droga, nunca
esteve preso, sempre andou na linha. Deixou três filhos: de sete, cinco e
quatro anos.
Actor
na telenovela A Última Mulher, estava a preparar uma peça de teatro com a Casa
Conveniente. Mónica Calle contou no sábado que tinham estado a preparar um
espectáculo iniciado como homenagem a Bruno pelo que passou. Bruno Candé foi elogiado
por todos os que trabalharam com ele. A Casa Conveniente era como uma segunda
família, dizem as irmãs, que o recordam como alguém divertido e carinhoso. Nem
Olga nem a sobrinha Andreia o viram no palco. “Disso é que estou tão
arrependida”, confessa Olga.
A
sobrinha Andreia, de 35 anos, auxiliar de saúde que apoia idosos, era uma das
suas grandes amigas. “Bom homem, bom pai, bom tio”, descreve. Foi Andreia quem
o ajudou a tomar banho e lhe levou comida quando Bruno teve o acidente. “Ele
era uma pessoa que tinha muita força de vontade, era muito alegre. Passava
muito tempo na rua porque a médica disse que tinha de andar.” No sábado,
ligou-lhe duas vezes de manhã. “Não atendi, estava a dormir”, conta com os
olhos em lágrimas.
Bruno
ainda chegou a estudar Mecânica na Casa Pia, onde esteve durante alguns anos,
pois a mãe queria que ele tivesse formação escolar. Fez um curso de Teatro no
Chapitô e a paixão pelo teatro começou a desenvolver-se profissionalmente. “O
Bruno sempre gostou disto. Nunca pensei que o meu irmão fosse tão bom actor”,
refere a irmã Betty, que o lembra como inspector na telenovela A Última Mulher.
Estava
a escrever um livro sobre a sua vida, porque “tinha muito que contar, muita
experiência de luta e sobrevivência”, conta Olga.
Bruno
Candé era católico. No carro, a caminho para casa em Chelas, Olga aponta para
uma estátua do Santo António, o padrinho do irmão. No apartamento onde entram e
saem familiares a apoiar, a mãe está sentada em frente a uma mesa com uma foto
de Bruno Candé, o Santo António, Nossa Senhora de Fátima e uma vela. A família
apoia-se. “Não tenho palavras”, desabafa.
A
família aguarda o resultado da autópsia para decidir onde e quando será feito o
velório e o funeral.
Joana Gorjão Henriques | Público | Imagens: Diogo Ventura
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