José Soeiro | Expresso | opinião
O governo espanhol aprovou esta
semana o seu plano para o que resta de 2020. Entre as prioridades, encontra-se a alteração da reforma laboral de Mariano Rajoy,
realizada em 2012. No interior do Executivo vizinho, as opiniões estavam longe
de ser unânimes, entre quem defende a revogação por inteiro da legislação da
direita e quem quer ficar-se pela alteração de alguns dos seus aspetos mais
graves. O que resultou dessa tensão foi a decisão de modificar alguns dos
elementos essenciais da transformação regressiva que o PP fez há cerca de 8
anos: i) acabar com a caducidade das convenções coletivas, ou seja, com a
possibilidade de a um contrato coletivo suceder o vazio, em lugar de um novo
acordo entre empregadores e trabalhadores; ii) acabar com a sobreposição dos
acordos de empresa ao contratos setoriais, contrariando assim a
descentralização da negociação entre patrões e sindicatos, que foi uma forma de
enfraquecer os trabalhadores; iii) fazer com que as regras dos contratos
coletivos se apliquem também aos trabalhadores subcontratados, para impedir que
os patrões utilizem o outsourcing como estratégia de baixar custos e fragmentar
as condições de trabalho dentro da mesma empresa; iv) alterar regras que dão
aos patrões o poder de alterar unilateralmente alguns termos dos contratos.
Pelo caminho fica, aparentemente, a reposição do valor das compensações por despedimento.
O caso espanhol deve ser
observado com atenção. Em plena crise pandémica, parece ter sido compreendido
que não há solução para a economia e para a saúde que não passe pelo
relançamento da procura e pelo reequilíbrio das relações de trabalho. Na realidade,
cá como lá, tem ficado evidente que a precariedade em tempos de crescimento se
transforma imediatamente em desemprego desprotegido em contexto de crise e que,
sem relações coletivas de trabalho, é impossível defender convenientemente
salários e mecanismos de proteção no mundo do emprego, desde logo face à
pandemia.
Teremos, em Portugal, o mesmo
debate: não pode haver discussão sobre o próximo Orçamento do Estado que não
passe pela política de salários e pelas regras do trabalho. De há uns anos para
cá, a precariedade tornou-se uma espécie de “novo normal”: em média, não saímos
de taxas de contratos a prazo superiores a 20% e os empregos precários são a
condição de 66% dos jovens até aos 24 anos. Continuamos a ter numa situação de
“falso recibo verde” uma boa parte das mais de 315 mil pessoas que são
exclusivamente trabalhadores independentes. O trabalho temporário atinge mais
de 100 mil pessoas. Os cerca de 70 mil que trabalham em plataformas (como
motoristas ou estafetas, seja da Uber, Glovo, ou outras) estão excluídos de
qualquer proteção social e não têm sequer acesso a um contrato. Em contexto de
crise, os precários e os trabalhadores em outsourcing foram as primeiras
vítimas dos despedimentos (até porque a lei não os protegeu, mesmo no caso das
empresas apoiadas pelo Estado) e da desproteção social – atualmente, cerca de
2/3 dos desempregados não consegue aceder às prestações de desemprego que
existem.
Como defender, neste contexto,
que continue a ser possível os patrões fazerem caducar unilateralmente os
contratos coletivos, que aliás não chegam sequer a 30% da força de trabalho no
nosso país? Como se aceita que seja possível negociar convenções coletivas de
trabalho com regras piores do que a lei geral em domínios decisivos da relação
de trabalho? Com que argumento se pode perpetuar a possibilidade, que está na
lei, de o trabalhador dar o seu “acordo individual” à eliminação, no seu
contrato, das regras que constam do código de trabalho, renunciando assim
antecipadamente, sob pressão patronal, aos poucos direitos que a lei lhe
confere? Como é possível defender que se mantenha na lei a facilitação e o
corte que a direita fez às compensações por despedimento, embaratecendo e
facilitando os despedimentos, justamente agora que era preciso evitá-los?
Alguém entende que se continue a fechar os olhos aos grandes modos de
precarização que têm sido desenvolvidos, como o outsourcing, ou a dissimulação
de relações de trabalho em relações entre supostas “empresas” e “empresários individuais”,
no caso dos estafetas das plataformas?
A discussão do próximo Orçamento
do Estado é, inevitavelmente, sobre as grandes opções que queremos para o tempo
que aí vem. É impossível o Governo fazer um debate sério com a Esquerda se não
estiver disponível para responder a quem trabalha, a quem é precário, a quem
foi despedido. Não apenas com apoios socais temporários que aproveitem o
dinheiro europeu prometido, mas com mudanças que toquem na estrutura da
exploração e no regime da precariedade: salários e lei do trabalho. Sem isso,
teremos apenas um orçamento gestionário, sem qualquer lampejo de transformação
e incapaz de nos preparar para os tempos difíceis que temos pela frente.
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