Com o passar das horas, sem que um vencedor saia claro dos apuramentos realizados, a possibilidade de Trump continuar na Casa Branca ganha consistência, diante de um mundo estupefacto, senão horrorizado. O risco parecia afastado, prometiam as sondagens, incapazes de detectar diferenças marginais do sentido de voto nos Estados que podem inclinar-se para qualquer dos lados, e que são afinal em maior número do que se pensava
Sérgio Sousa Pinto | Expresso | opinião
Dependentes da contagem de votos postais, o resultado permanece incerto, mas o semblante dos jornalistas das grandes cadeias televisivas vale mil palavras.
A abismal fractura que divide os Estados Unidos literalmente a meio é a única certeza que temos, uma fractura que não iniciou sequer, sabemo-lo agora, a sua cicatrização, mas que antes se acentuou, convertendo-se numa chaga ainda maior, uma chaga de polarização extrema, que não admite dialogo nem compromisso democráticos.
Como chegou a América a isto?
“Why it has to be Joe Biden”, foi a última capa da Economist, trombeta do centro-direita moderado e business friendly. A prestigiosa revista podia ter formulado uma pergunta retórica – “Why it has to be Joe Biden?” – para depois nos expor os seus argumentos, no que seria talvez a operação de persuasão mais fácil da história do proselitismo jornalístico. Mas não. O que a Economist faz é dizer aos americanos o que um jornal de Boston poderia declarar aos patriotas, por volta de 1775: “Why you have to fight the british”, se queres ser um bom americano. Trump é o inimigo interno e “a América precisa de ti.” Este é o tom geral da imprensa, quanto mais respeitável mais exaltada e peremptória, no seu lancinante apelo. Do New York Times ao Washington Post, de ambos à National Review, liberais e conservadores acotovelam-se numa improvável barricada e, ombro com ombro, abrem fogo de barragem contra o thug de Brooklin, como se ele fosse a encarnação moderna de um casaca vermelha da guerra da independência, ou de um escravocrata da Confederação. A própria campanha de Biden reúne financiamentos inauditos, que deixam Trump, o intocável (no sentido hindu), para trás, exprimindo a força da América respeitável e próspera, das duas costas e das cidades.
Para nós, europeus, a questão nunca ofereceu dúvidas: Trump revolve-nos as tripas, o seu chauvinismo bronco e a sua indiferença em relação à verdade e à mentira, atira-o para fora dos nossos consensos há muito estabelecidos, é insuportável ao palato delicado do velho continente; é um ser rude, primário, vulgar e cor de laranja.
As políticas de Trump, apesar da algazarra, são menos controversas que o personagem que por elas dá a cara; podemos lamentar o abandono do tratado com o Irão ou o famoso muro fronteiriço, aliás começado por Clinton; podemos não gostar do fracking e da denúncia dos acordos do clima. Mas, cá como lá, o verdadeiro objeto da execração geral é o homem em si, os modos, a boçalidade desenvolta de novo-rico grosseiro - o que ele representa.
No entanto, o populista desbocado arrasta consigo metade da América. Porquê?
Podemos começar pela razão mais superficial: Joe Biden não entusiasmou ninguém. Mantê-lo armazenado em casa foi prudente, mas era preciso mais do que isso para vencer. A escolha de Biden não pode ser perdoada ao establishment democrata. Sleepy Joe, como lhe chama Trump, que nos seus comícios se socorreu de um ecrã gigante para exibir gafes, confusões e observações taralhoucas do seu adversário, que, digamos assim, não está na força da idade. Mas a razão fundamental do entusiasmo furioso que Trump gera na sua heteróclita tribo não se deve à decrepitude do adversário. Paul Auster, dinamizador de um movimento de escritores anti-Trump pôs dolorosamente o dedo na ferida: o partido democrata desertou dos trabalhadores, da América humilde excluída da prosperidade, dos que têm ficado para trás, sobretudo os brancos pobres e oficialmente invisíveis de um país em processo de desindustrialização.
É o globalismo que verdadeiramente foi a votos nestas eleições, um enfrentamento entre a América dos vencedores e a América dos esquecidos. Chamar o povo de Trump de canalha e ralé (“deplorables”,”irredeemables”), como fez Hillary, nunca ajudou. A globalização reduziu as desigualdades entre os países, agravando-as dentro de cada país. Talvez os Estados Unidos sejam a caricatura disso mesmo, vítimas da sua fractura abissal, com os magnatas de Sillicon Valley a acumularem fortunas inauditas, sobre os despojos da América da General Motors, industrial e sindical, criadora de empregos e de classe média, agora deslocalizada.
Obama, o mais inspirador e brilhante político do nosso tempo, ele próprio expressão do melhor da América, batalhou penosamente, de comício em comício, para pôr fim ao pesadelo boçal e ultra-conservador. Há algo de trágico nisto de ver um homem que encarnou uma das mais decentes versões do futuro americano a apelar ao voto num idoso saído do seu pantanoso passado, com pouco a dizer, que tem apenas para oferecer o regresso a uma normalidade sem Trump.
O bilionário de Brooklin tem uma intuição politica assassina: não quer unir o seu grande país continental, onde o declínio relativo convive com novas fortunas, as maiores que a história conheceu; quer dividir, explorando fracturas que há demasiado tempo Democratas e Republicanos fazem por não ver; Trump empenhou-se em mobilizar a sua parte do país, que acredita maioritária, mobilizando indecorosamente os resíduos mais abjectos da América profunda, reabrindo feridas antigas e infectadas, convidando o racismo subterrâneo e larvar, eterna chaga nacional, a subir com ele ao palco, para participar, com os seus votos, na construção da sua tortuosa concepção da grandeza americana.
Não é preciso ser um génio para perceber as contradições que a globalização engendrou, e que Trump tão bem sabe navegar: como é possível os gigantescos colossos da HigTec e de Wall Street votarem ao lado dos sindicatos democratas, unidos em torno de um qualquer programa comum? Talvez seja essa a grande intuição de Trump: os políticos do globalismo transitaram para um paradigma do futuro, um paraíso pós-industrial, pós trabalho manual, pós-ferrugem; mas o mundo antigo morre devagar, numa agonia lenta e dolorosa. Ainda está lá, humilhado, declinante, mas talvez ainda maioritário. Quer levantar uma vez mais a cabeça para se vingar, confusamente, inarticuladamente, em nome da segunda emenda ou de outra coisa qualquer, tirar desforço de um mundo novo e assustador, que não contempla um lugar para eles. Obama não teve tempo, talvez porque lhe negaram cedo a maioria nas câmaras. Não sabemos se teria sido bem-sucedido. Desse drama emergiu o ogre de Brooklin, com as suas frases de cinco palavras.
O pobre Biden é um embaraço mantido em bom recato. No fundo é um adereço anacrónico, uma promessa desvitalizada de regresso a um business as usual passado, a uma era pré-Trump, mas também pré-Obama. Estas eleições foram, efetivamente, um plebiscito a Trump. No meio de tantos erros e incúrias, ainda há, dizem os analistas e peritos, esperança. Resta aguardar até a fim do escrutínio, com o coração pesado. Com ou sem Trump, a América mudou, e não foi notoriamente para melhor.
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